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1 de fevereiro de 2022

Arte negra nas Américas






A história da escravidão africana na América é um abismo

brutal de degradação e miséria que não se pode sondar....

–– Joaquim Nabuco (1849-1910).  
   


Resumindo: é um evento que não tem a pretensão de constituir um inventário completo sobre a abrangência do assunto nem de propor uma história da arte revisada com foco na obra de afro-americanos. Mas é uma novidade em sintonia com os novos tempos. Trata-se de uma exposição inédita apresentada na Universidade Pepperdine em Malibu, na Califórnia, reunindo obras e documentos que narram conquistas e contribuições de artistas afro-americanos nos últimos seis séculos – tanto nos Estados Unidos como em alguns países de América Latina. A exposição “The Cultivators: Highlights from the Kinsey African American Art & History Collection” (Os cultivadores: destaques da coleção de arte e história afro-americana de Kinsey), com curadoria de Khalil Kinsey e Larry Earl, está aberta no espaço mais nobre da universidade, o Frederick R. Weisman Museum of Art, e prossegue até 27 de março, quando terá agenda itinerante por instituições nos Estados Unidos e outros países.

Na interseção da arte e da história, a exposição cobre a vida, a produção cultural e as realizações de um grupo representativo de afro-americanos desde o século 16 até os tempos recentes, incluindo obras e ações relacionadas à Proclamação da Emancipação dos cidadãos mantidos em escravidão, assinada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln (a escravidão tornou-se ilegal nos Estados Unidos através da aprovação da 13ª Emenda Constitucional em 1865); às mobilizações contra o racismo e contra o linchamento de negros no decorrer do século 20; às mobilizações pela igualdade com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960; e aos recentíssimos eventos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) iniciados nos Estados Unidos desde 2013 com multidões em protestos contra a violência direcionada às pessoas negras. Em uma iniciativa que permanecia inédita no circuito de museus e galerias de arte, a exposição na Universidade Pepperdine celebra somente artistas afro-americanos, oferecendo uma contra-narrativa crucial ao colocá-los no centro, e não nas margens, da história norte-americana.












Arte negra nas Américas: no alto, Untitled, pintura
em óleo sobre tela de 1951 de Hughie Lee-Smith.
Acima, fotografia de Earnest Whiters de 1968 faz
um registro histórico da marcha em homenagem ao
pastor batista Martin Luther King Jr., liderança política
e ativista dos Direitos Civis que foi assassinado em abril
de 1968 em Memphis, Tennessee. Também acima,
"Primeiro voto", aquarela em policromia de
Gayle Hubbard na primeira página do jornal
"Harper's Weekly", de Nova York, na edição histórica
de 16 de novembro de 1867, que registrou a primeira
eleição nos EUA com pessoas negras na condição
de eleitores; e uma fotografia de Bernard Kinsey
em seu escritório de trabalho.

Abaixo, a família Kinsey: Bernard, Shirley e o filho do
casal, Khalil, atual curador e diretor da Fundação Kinsey;
e The Cultivators, pintura em óleo sobre tela de 2000
de Samuel Dunson que faz homenagem ao trabalho
dos Kinsey e que dá título à exposição aberta na
Universidade Pepperdine. Todas as imagens desta
postagem fazem parte do catálogo da exposição









A história da arte negra na América do Norte, assim como em toda a América Latina, e também em outros continentes, surge como uma história de resistência contra a violência, contra a opressão e contra o sofrimento das populações capturadas e negociadas no continente africano e levadas à força para o trabalho escravo do outro lado do oceano Atlântico. No informe sobre a exposição, a curadoria destaca a expressão “mito da ausência”, usada pelo historiador Lerone Bennett Jr. (1928-2018), que se dedicou a pesquisas sobre as relações raciais nos Estados Unidos, para se referir aos capítulos da história que tiveram afro-americanos como protagonistas e que foram por muito tempo ignorados.

A expressão "mito da ausência" é aplicada cada vez com mais frequência nos estudos acadêmicos, na educação e nas ciências sociais, como referência ao mascaramento do preconceito racial, pois tal mascaramento também configura uma prática racista de exclusão pelo "apagamento". O mito da ausência tornou invisível a trajetória de muitas gerações de artistas – que permaneceram anônimos em sua época e surgem agora, anos depois, ou décadas e séculos, em muitos casos, com obras que provocam impacto e impressionam. Pode-se reconhecer que foram silenciados, perdidos, roubados, humilhados, ignorados, deixados para trás, mas não esquecidos. Entre os artistas selecionados estão, entre outros, Ernie Barnes, John Biggers, Bisa Butler, Elizabeth Catlett, Robert Duncanson, Sam Gilliam, Jacob Lawrence, Norman Lewis, Augusta Savage, Laura Wheeler Waring, Lois Mailou Jones, Henry Ossawa Tanner, Alma Thomas, Hughie Lee-Smith, Romare Bearden e Charles White.











Arte negra nas Américas: no alto, Mulher vestindo
lenço laranja
, pintura 
em óleo sobre tela de 1940
de Laura Wheeler Waring. Acima, Duas mulheres
africanas
, desenho em técnica mista sobre pergaminho de
1942 de autoria de Eldzier Corter. Abaixo, Gamin Gamin,
escultura em bronze de 1930 de Augusta Savage;
e um retrato do escritor James Baldwin desenhado
por Romare Bearden em Paris, por volta de 1950,
quando Bearden foi um dos primeiros negros dos
Estados Unidos a frequentar como aluno os ateliers
de mestres como Brancusi, Giacometti e Matisse










Arte e resistência


A maioria dos artistas reunidos no acervo em exposição têm, pela primeira vez, destaque por sua produção artística, e poucos estão registrados nos livros didáticos de história e nos compêndios de história da arte. Vale lembrar que somente na década de 1980 um primeiro negro conquistou pleno reconhecimento nas artes plásticas nos Estados Unidos – ele foi Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nascido em Nova York com ascendência porto-riquenha por parte de mãe e haitiana por parte de pai. Quatro décadas depois da revelação que foi Basquiat, o acervo de peças originais agora reunido, com pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, estamparias e obras em suportes variados de madeira, papel, tecido e pedrarias, é celebrado e contextualizado por meio de documentos históricos, cartas e manuscritos garimpados em diversas instituições, livros raros e fotografias que contam a história das lutas, da resistência e da perseverança afro-americanas.

A extensa e variada seleção de obras de arte negra, na verdade, é uma monumental coleção particular: a coleção de arte da família Kinsey, iniciada na década de 1960, e que só agora ganha sua primeira grande retrospectiva. Todo o acervo também está reunido em um catálogo ilustrado da coleção e da exposição na Universidade Pepperdine. Quando o empresário Bernard Kinsey e Shirley Kinsey se casaram em 1967, depois de se conhecerem como estudantes na Universidade da Flórida, o casal estabeleceu a meta de visitar 100 países diferentes durante sua vida juntos. Enquanto viajavam e exploravam outros países e culturas, começaram a colecionar arte, documentos e artefatos de história da América como lembranças preciosas das experiências de viagem. À medida que a coleção crescia, eles perceberam que havia tantos aspectos sobre sua própria herança cultural que nem eles nem outros pesquisadores conheciam e que as peças reunidas tinham um grande valor não apenas como raridades, mas também como uma expressão legítima da presença e da importância dos afro-americanos na arte e na cultura.











Arte negra nas Américas: acima, Charleston,
South Carolina, aquarela
 datada de 1936 de
Ellis Wilson; e Brincadeira de criança,
aquarela com data de 1950 de Aaron Douglass.

Abaixo, Mt. Tacoma from Lake Washington,
pintura em óleo sobre tela com data de 1885 de
Grafton Tyler Brown; e uma gravura publicada
em 1863 pelo Harper's Weekly com o título
"Os efeitos da proclamação: negros libertos
entrando em nossa jurisdição em
Newbern, North Carolina"


 
 


           


            



Conquistas históricas


A paixão do casal Kinsey pela história, pela cultura e pelos até então desconhecidos artistas negros das Américas os levaria a criar a Bernard and Shirley Kinsey Foundation for Arts and Education, com foco em iniciativas para o desenvolvimento da história e da cultura afro-americana, incluindo arquivos, programas de pesquisa, bolsas de estudo, edição de livros, eventos e apoio a várias instituições, entre elas a Rosa Parks Foundation. A valiosa e incomparável coleção de arte e história afro-americana do casal Kinsey, agora gerenciada por seu filho Khalil Kinsey, curador da fundação e da exposição, celebra as conquistas e contribuições dos negros americanos desde antes da formação dos Estados Unidos até os tempos atuais.

Se você quer mudar uma pessoa”, anuncia uma frase do patriarca Bernard Kinsey destacada no informe sobre a exposição, “a primeira coisa que você deve fazer é mudar sua consciência de si mesma, começa com sua consciência. A Coleção Kinsey se esforça para dar voz, nome e personalidade aos nossos ancestrais, permitindo que o espectador entenda os desafios, obstáculos, triunfos e sacrifícios extraordinários dos afro-americanos.” Khalil Kinsey acrescenta: “Esta é uma história de família, ilustrando o que uma família fez para contar sua história. Mas também é sobre a América. Porque a maioria das pessoas só conhece metade da história.”







Arte negra nas Américas: acima, gravura em
litografia de 1863 retrata um regimento voluntário

de soldados negros em Camp William Penn, na
Pensilvânia, em treinamento para combater as
tropas de confederados dos estados escravagistas
do sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
ou Guerra de Secessão. Abaixo, litografia de 1872
registra os integrantes da primeira bancada de políticos
de ascendência afro-americana no Congresso dos
Estados Unidos, todos eles nascidos na escravidão.
Também abaixo, Hiram Rhoades Revels, o primeiro
cidadão negro a ser eleito para o Senado dos EUA,
em fotografia de 1870 feita por Mathew Brady;
e uma família de mulheres afro-americanas em
um daguerreótipo anônimo datado de 1855




      


 





Quebrando estereótipos


Além dos artistas que surgem com suas obras-primas na condição de obras inéditas para a maioria dos estudiosos e do público, contribuindo para dissipar mitos e quebrar preconceitos e estereótipos, há também na exposição documentos que registram momentos emblemáticos da história. Os destaques incluem documentos bizarros para os padrões atuais, como notas de venda, anúncios, cartas e certidões em manuscritos para o comércio de escravos. Há também raridades que são marcos da história da literatura e da imprensa, como livros e revistas originais com letras coloridas à mão da época da Guerra Civil; exemplares poucos conhecidos da arte, da música e da literatura do Harlem Renaissance, quando o bairro ao norte de Manhattan teve seu apogeu para a cultura negra (do começo do século 20 até o final da década de 1930); e itens que destacam personalidades e momentos-chave no Movimento dos Direitos Civis, a partir da década de 1960, incluindo panfletos originais, documentos e muitas fotografias que permaneciam inéditas.













     
   


Arte negra nas Américas: no alto, Quatro vacas
no campo, pintura em óleo sobre tela de 1893 de
Edward Mitchell Bannister. Acima, uma Paisagem
em pintura em óleo sobre tela de 1865 de
Robert S. Duncanson; e Porto, pintura de 1940 de
Allan Randall Freelon. Abaixo, litografia em base de
madeira de 1953 de Charles White com o título de
Cantor popular (Folk singer). Também abaixo,
Faces do meu povo, xilogravura de 1990 de
Marlon Burrows, seguida de Mãos do campo,
pintura em óleo de 1988 de Johnathan Green;
e Corredor na praia, pintura em tinta acrílica
de 1997 de Ernie Barnes






Além da beleza comovente de pinturas, gravuras, esculturas e desenhos de autores que estavam, em sua maioria, há muito tempo no anonimato, entre as raridades da coleção Kinsey, apresentadas no extenso acervo em exposição, também estão cartas e manuscritos pela primeira vez divulgados de lideranças políticas e personalidades como Martin Luther King Jr., James Baldwin, Malcolm X e Alex Haley, entre outros. Há ainda os registros cartoriais mais antigos de que se tem notícia sobre a presença e a atuação de afro-americanos nos Estados Unidos, incluindo uma certidão de batismo de uma criança negra e uma certidão de casamento civil de um casal negro, ambas do século 18.

Entre as raridades sobre literatura estão documentos em suas versões originais, com destaque para um exemplar recentemente descoberto da primeira edição de 1773 de poemas de Phillis Wheatley, primeira pessoa afro-americana a ter um livro publicado; e a primeira edição de 1853, completa e encadernada, de “12 Anos de Escravidão”, do autor Solomon Northrup, livro que em 2013 foi transformado no filme de mesmo título. Northrup, nascido livre em Nova York, em 1808, vivia com sua esposa e filhos quando foi sequestrado e acorrentado em 1841 por mercadores de escravos e vendido para fazendeiros da Louisiana, onde ficou cativo para trabalhos forçados em fazendas de cultivo de algodão e cana de açúcar. Em 1853, quando finalmente foi libertado, Solomon Northrup retornou para a família em Nova York e publicou seu relato dramático em livro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte negra nas Américas. In: Blog Semióticas, 1º de fevereiro de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/02/arte-negra-nas-americas.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição na Universidade Pepperdine,  clique aqui.








30 de outubro de 2012

Fotorreportagem desde 1839







Dizer que “a câmera não pode mentir” é simplesmente 
enfatizar as inúmeras fraudes realizadas em seu nome. 

–– Marshall McLuhan.   



Os primórdios da fotografia e da imprensa no Brasil – e mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte no Império e primeira capital da República, entre 1839, ano da primeira patente da invenção do daguerreótipo na França, até o ano de 1900, quando a disseminação e a popularização dos processos fotográficos se firmavam como negócio altamente rentável nos centros mais desenvolvidos do território nacional – têm um documento importante com a publicação de um livro de Joaquim Marçal Ferreira de Andrade que tem como título “História da Fotorreportagem no Brasil: A fotografia na imprensa do Rio de de Janeiro de 1839 a 1900”. 

Menos que uma celebração ao processo técnico que provocou revoluções na história da imprensa e na vida social e cotidiana dos indivíduos e das populações desde seu surgimento, e muito mais que um mero relatório de pesquisas sobre eventos, imagens, nomes e datas do Oitocentos relacionadas à fotografia e à invenção da fotorreportagem, o livro de Joaquim Marçal, em publicação conjunta das editoras Elsevier, Campus e Biblioteca Nacional, alcança relações historiográficas que vão além do que outras pesquisas e publicações sobre o tema já revelaram. O autor acompanha a trajetória do jornalismo, da publicidade, das artes gráficas e dos diversos processos do design que envolvem a criação e impressão de imagens, apontando o descompasso de longa data entre a imprensa no Brasil em comparação com países mais avançados.

A edição do livro coincidiu com o reconhecimento do trabalho do pesquisador, com o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Unesco, através do programa Memória do Mundo, ao objeto de pesquisa a que Marçal há décadas tem dedicação: a Coleção Teresa Cristina Maria, um espólio reunindo um acervo valioso de mais de 2.500 imagens dos maiores fotógrafos que atuavam no Brasil no século 19 – como Marc Ferrez, Revert Henry Klumb, Augusto Stahl, Alberto Henschel, Georges Leuzinger, Juan Gutiérrez e Augusto Malta, entre outros. A coleção foi doada pelo imperador Dom Pedro 2° à Biblioteca Nacional antes de embarcar para a Europa, em 1889, forçado pela instauração da República pelos militares.









Fotorreportagem desde 1839: no alto
e acima, tropas armadas do Brasil no
campo de batalha e nas trincheiras, depois
da tomada da cidade de Paysandú, no
Uruguai, durante a Guerra do Paraguai,
em algumas das primeiras fotografias transcritas
em xilogravuras e publicadas na revista
Semana Illustrada. Abaixo, uma gravura de
Heinrich Fleiuss retrata brasileiros e uruguaios
invadindo a cidade de Paysandú; e o imperador
Dom Pedro 2° em Uruguaiana, no
Rio Grande do Sul, em fotografia de 1865
de Luiz Terragno. Sobre os registros
publicados na imprensa brasileira durante
a Guerra do Paraguai, veja também 
Semióticas: A batalha de papel 















A honraria de Memória do Mundo, antes concedida pela Unesco apenas a relíquias como a Bíblia de Johann Gutenberg, surpreendeu Joaquim Marçal, que soube da notícia pela TV, enquanto assistia ao Jornal Nacional da TV Globo. Fiz uma longa entrevista com ele para um jornal de Belo Horizonte, pelo telefone, à época do lançamento do livro. A notícia de que temos em comum a mesma dedicação de pesquisa estabeleceu de imediato entusiasmo e empatia em nossa conversa sobre a história da fotografia no Brasil e o estado atual da pesquisa e conservação dos acervos.

Marçal destaca, na entrevista, que além do status de valorização internacional pelo tombamento pela Unesco do conjunto documental da coleção do imperador, sua expectativa é que o título de Memória do Mundo possa garantir recursos para a pesquisa e digitalização do grande volume de material iconográfico da Biblioteca Nacional e, por extensão, de outros acervos fotográficos importantes do Brasil que ainda permanecem pouco conhecidos. “A fotografia brasileira do século 19 é tão rica quanto desconhecida”, avalia. 









Imagens de guerra: ilustração publicada em
1867 na Semana Illustrada e daguerreótipo
anônimo que registra vários corpos de
soldados paraguaios amontoados
depois da batalha de Humaitá. Abaixo,
uma tropa brasileira com o Conde D'Eu
e seu estado maior, nas proximidades da
cidade de Lambaré, no Paraguai, em
registro de um fotógrafo anônimo em 1868









Acervo de raridades



Joaquim Marçal é o que se pode chamar, de fato, de especialista na trajetória da fotografia no Brasil, reunindo um currículo profissional que inclui atividades como fotógrafo, designer, chefia da divisão de iconografia da Fundação Biblioteca Nacional, título de mestrado em Design, doutorado em História Social e docência na PUC do Rio de Janeiro. “História da Fotorreportagem no Brasil” reúne, na verdade, a quase totalidade da dissertação de mestrado que Marçal apresentou na PUC-Rio, em 2002. Já no trabalho de doutorado, retorna ao Oitocentos com uma investigação sobre imagens fotográficas da Guerra do Paraguai, tendo como orientadores dois intelectuais destacados: Celeste Zenha e José Murilo de Carvalho.

Um dos grandes destaques do livro de Joaquim Marçal é exatamente seu fôlego exploratório para localizar as primeiras imagens, tanto as ilustrações como as fotografias, registradas na imprensa brasileira. O autor destaca que o grande marco, na trajetória das artes gráficas e da imprensa no Brasil, é o aparecimento e o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução de ilustrações e fotografias em jornais e revistas que acontece durante a Guerra do Paraguai, o maior e mais sangrento conflito armado da América do Sul.






Ilustrações e fotografias que retratavam o confronto e a união de Brasil, Argentina e Uruguai (cujas tropas militares, em ação conjunta, marcharam contra o vizinho Paraguai, tornando aquele país terra arrasada), eram artigo muito popular e disputado como fetiche no período da guerra, que se estendeu de dezembro de 1864 a março de 1870, e também nos anos e décadas seguintes.

A derrota também marcaria uma reviravolta decisiva na história do Paraguai, transformando completamente o país, que passou de única República das Américas sem nenhum analfabeto para um dos países mais atrasados do continente. O Paraguai também sofreria decréscimo populacional, ocupação militar por mais de dez anos, pagamento de pesada indenização de guerra (que, no caso do Brasil, teve o pagamento estendido até a Segunda Guerra Mundial) e perda de 40% de seu território para Brasil e Argentina.










Guerra do Paraguai e os primeiros registros
em fotojornalismo no Brasil: na imagem do
alto, Rendição de Uruguaiana, recriação
patriótica do campo de batalha em litografia
de Pedro Américo. Acima, os prisioneiros
paraguaios, a maioria formada por índios
muito jovens, descalços e maltrapilhos que
foram transformada em escravos depois
do fim das batalhas. Abaixo, a igreja central
de Paysandú, no Paraguai, completamente
destruída depois da batalha, em fotografia
anônima de 1865. Também abaixo, cenas do
campo de batalha: o Conde D'Eu (com
a mão na cintura) visita as tropas durante
a guerra, e um raro momento de
descontração dos soldados aliados
em foto no acampamento militar










Uma das primeiras fotografias transcritas em xilogravura aparece nas páginas da “Semana Illustrada”, publicada no Rio de Janeiro, sede do Império e posteriormente capital da República. A legenda identifica a imagem, que retrata tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai: “Vistas de Paissandú depois da tomada da praça, fotografadas ao natural e obsequiosamente oferecidas à Semana Illustrada pelo Ilm. e Exm. Srn. Vianna de Lima”.

Outro dos muitos destaques pelo que trazem de avanços para a historiografia, com importância especial para a história de Minas Gerais, é a identificação pelo autor do livro "História da Fotorreportagem no Brasil" da primeira fotografia produzida em território mineiro, realizada por um fotógrafo anônimo em Ouro Preto, então Vila Rica, possivelmente no começo de 1865, e ofertada como presente ao imperador Dom Pedro 2°.

Trata-se de uma vista panorâmica, como se dizia na época, da atual Praça Tiradentes, enquadrando as tropas em alinhamento militar que ocupavam o largo da praça antes de seguir viagem para os campos de batalha na Guerra do Paraguai. A legenda: “Vista da Praça de Vila Rica no dia da partida da 1ª expedição de Minas para Mato Grosso. Oferecida a Sua Majestade Imperial e Senhor Dom Pedro por seu súdito Antônio de Assis Martins”. 







 
Como identificar, entretanto, data e autoria, quando não há registro verbal? No caso da foto das tropas em Ouro Preto, o enigma se desfaz com a comparação da publicação de uma minuciosa recriação em cópia litográfica quase literal da mesma fotografia pela “Semana Illustrada” em julho de 1865, creditada a Henrique Fleiuss, mestre de ofício e entusiasta da novidade da “fotorreportagem” que ele ajudava a instaurar na imprensa brasileira.



Coleção do Imperador



Outros casos de razoável fidelidade das cópias litografias ou em xilogravura, em relação ao original fotográfico, que surgem em diversas publicações do período, são destacadas por Joaquim Marçal, que enumera análises, registros e uma profusão de gravuras, cartuns, mapas e fotografias que surgem em periódicos como “Ilustração do Brasil”, “O Besouro”, “A Cigarra”, “O Mercúrio”, “O Mosquito”, “A Comédia Social”, “A Vida Fluminense”, “O Torniquete” e “O Mequetrefe”, entre muitos outros – com o mérito adicional de abordar não apenas o Rio de Janeiro, estendendo a abrangência a questões nacionais e internacionais do período, no que se refere à reprodução técnica, à economia e à socialibidade em geral.

Tenho a pesquisa como missão”, reconhece Joaquim Marçal. A vocação ele atribui a questões de família, especialmente a influência do trabalho de seu pai, o escritor Olímpio de Souza Andrade. Pesquisador destacado em seu tempo e especialista na vida e obra de Euclides da Cunha, o pai de Joaquim Marçal também recebeu um prêmio importante da Unesco, no final da década de 1950, e chegou a ter seu trabalho publicado na célebre Coleção Brasiliana.









Viagens da Família Imperial do Brasil:
no alto, Dom Pedro 2° e família fotografados
no Vale das Pirâmides, Egito, em 1871.
Acima, Ouro Preto, antiga Vila Rica, em
daguerreótipo datado de 1881 de autoria
atribuída ao Imperador Pedro 2°. Abaixo,
capas de duas publicações pioneiras na
imprensa brasileira: a revista Semana Illustrada,
de Henrique Fleuiss, que circulou de 1860 a 1876;
e a Revista Illustrada, de Angelo Agostini, que
circulou de 1876 a 1898. Também abaixo, 
um marco historiográfico registrado pelo
autor do livro, Joaquim Marçal, com a
identificação da primeira fotografia feita
em território das Minas Gerais: uma vista
panorâmica por um fotógrafo anônimo da
praça central (atualmente Praça Tiradentes)
em Ouro Preto, então Vila Rica, registrada
possivelmente em 1865, com uma
legenda em dedicatória para
o imperador Dom Pedro 2°









Nos últimos anos, Joaquim Marçal também foi destaque na mídia por conta da curadoria que realizou em diversas exposições sobre fotografias do século 19, entre elas “De Volta à Luz”, “A Coleção do Imperador Dom Pedro 2°” e “Fotografia Brasileira e Estrangeira no Século 19”, apresentadas em São Paulo e no Rio de Janeiro e no exterior, em Buenos Aires, na Argentina, no Porto e em Lisboa, em Portugal. Uma amostra da qualidade de seu trabalho está refletida na publicação sobre a história da fotorreportagem no Brasil.

Registro de pesquisas que alcança dos primórdios da imprensa e das artes gráficas no Brasil aos avanços alavancados pelas nos técnicas da fotografia, nas décadas de 1880 e 1890, no livro Marçal enumera eventos e periódicos para destacar pioneiros esquecidos, reconhecendo o mérito de profissionais que fizeram nossos primeiros jornais e revistas ilustradas. Entre tantos pioneiros, alguns poucos surgem como exceção pelo reconhecimento que tiveram em seu tempo e no século seguinte.

Uma destas poucas exceções é Marc Ferrez, nome fundamental da fotografia, que obteve as mais importantes condecorações pela excelência de seu trabalho, no Brasil e em outros países, especialmente nos EUA e na França, onde suas fotos foram exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris. Ferrez fotografou famosos e anônimos, o trabalho escravo, os primeiros contatos com povos indígenas, festas religiosas, acontecimentos políticos e diversas paisagens, nas cidades e nos confins do Brasil, em ângulos e perspectivas que depois dele ganharam a condição de cenários de cartões postais.









As imagens, registradas em daguerreótipos e outras técnicas fotográficas por pioneiros como Marc Ferrez, eram posteriormente retocadas e redesenhadas por ilustradores para publicação nos principais jornais e revistas. Para o leitor significava um novo mundo aquela possibilidade, até então inédita, de visualizar as imagens impressas e relacionadas aos fatos narrados – ainda que, na realidade brasileira, somente a partir do começo do século 20 as técnicas de impressão, com o uso do clichê como matriz, garantiriam uma impressão de melhor qualidade e em cores.

Diante das lacunas intermináveis de nossa história cultural – e considerando o novo perigo virtual que representa, em sites e blogs, uma impressionante profusão repetida de plágios para informações equivocadas e atribuições errôneas – o autor permite, através deste “História da Fotorreportagem no Brasil”, o acesso e livre trânsito a lições preciosas e trajetórias contextualizadas para professores, estudantes, pesquisadores e profissionais de diversas áreas, considerando o complexo e ainda nebuloso universo que as possibilidades da fotografia e da imprensa ilustrada vêm inaugurar em território brasileiro, a partir de meados de 1800.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Fotorreportagem desde 1839. In: Blog Semióticas, 30 de outubro de 2012. Disponível em http://semioticas1.blogspot.com/2012/10/fotorreportagem-desde-1839.html (acessado em .../.../...).



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Cenas do Brasil Antigo: Augusto Riedel 
registrou, em 1865, a reunião quinzenal dos
escravos e funcionários nas minas de ouro
em Morro Velho, região de Nova Lima,
Minas Gerais (no alto). Acima, fotografia
de Marc Ferrez registra escravos em uma
fazenda de café na Serra da Mantiqueira,
Minas Gerais, em 1885; e a sessão de votação
da Lei Áurea, em maio de 1888, que
extinguiu a escravidão no Brasil








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