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27 de março de 2024

Retratos clandestinos de Helen Levitt

 




A natureza humana é quase inacreditavelmente maleável.
   
– Margaret Mead (1901-1978).  
 

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Durante grande parte dos quase dois séculos da história da fotografia, as mulheres tiveram pouco espaço no trabalho por trás das câmeras, mas com o passar do tempo foram expandindo seus papéis e experimentando cada vez mais os diversos aspectos do aparato fotográfico. Atualmente, qualquer seleção ou recorte sobre a história da fotografia tem, necessariamente, destaque para mulheres que atuaram ou atuam nas variadas frentes dos registros fotográficos no passado ou no presente. Desde os primeiros tempos da imagem fotográfica, a presença feminina no domínio da técnica esteve presente, porém mais como exceção do que como regra, como se comprova nos registros sobre nomes como Constance Fox Talbot (1811-1880), primeira mulher a fazer uma fotografia, em 1843, ou Ann Cooke (1796-1870), primeira mulher a abrir um estúdio de retratos fotográficos, em 1845.

Entre as mulheres que atuaram de forma marcante no campo da fotografia no século 19, ou que nasceram no Oitocentos, alcançaram destaque os nomes de Anna Atkins (1799-1871), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Shima Ryü (1823-1900), Gertrude Käsebier (1854-1934), Frances Johnston (1864-1952), Alice Austen (1866-1952), Lady Ottoline Morrell (1873-1938), Harriet Chalmers Adams (1875-1937), Imogen Cunningham (1883-1976), Florence Henri (1893-1952), Claude Cahun (1894-1954), Lucia Moholy (1894-1989), Dorothea Lange (1895-1965), Tina Modotti (1896-1942), Germaine Krull (1897-1985), Berenice Abbott (1898-1991) e Ilse Bing (1899-1998), entre outras, sem esquecer aquelas que realizaram trabalhos importantes de forma pioneira na fotografia, mas que permaneceram no anonimato, por preconceito ou porque, por motivos diversos, não tiveram seus nomes registrados pela história oficial.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto, crianças

dançando nas ruas de Nova York, fotografia de 1940.

Acima, mãe e filha (1939) e a família na janela (1940).

Abaixo, Helen Levitt em autorretrato (circa de 1950)

e duas meninas brincando com giz na calçada (1940).

Todas as fotografias reproduzidas nesta página estão

no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”,

apresentada na Photoghapher’s Gallery de Londres








No Brasil, de acordo com o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, publicado pelo Instituto Moreira Salles em 2002, entre centenas de fotógrafos que atuaram naquele período também há algumas mulheres que tiveram um papel pioneiro da maior importância, entre elas Fanny Volk, que atuou no Paraná; Hermina de Carvalho Menna da Costa, em Pernambuco; Leocadia Amoretti e Madame Lavenue, no Rio de Janeiro; Madame Reeckel, no Rio Grande do Sul; Maria Brasilina de Magalhães Faria, no Espírito Santo; Maria Izabel da Rocha, em Sergipe; e Roza Augusta, na Paraíba. Em São Paulo, Gioconda Rizzo (1897-2004), descendente de italianos, foi uma das primeiras mulheres a atuar como fotógrafa e a primeira a abrir um estúdio fotográfico, a Photo Femina, em 1914; e Elvira Pastore (1876-1972), casada com Vicenzo Pastore (1865-1918), ambos italianos, dividia com o marido todo o trabalho no estúdio fotográfico que abriram em São Paulo em 1900.

A presença e a importância de mulheres na fotografia têm aumento qualitativo e quantitativo no decorrer do século 20, incluindo a presença inédita de mulheres fazendo a cobertura fotográfica em cenários de guerra, como Gerda Taro (1910-1937) e Kati Horna (1912-2000) na Guerra Civil Espanhola, ou Margaret Bourke-White (1904-1971) e Lee Miller (1907-1977) na Segunda Guerra Mundial. Mulheres também exerceram o papel de fotógrafas nos movimentos de vanguarda da arte moderna, registrando paisagens e temas abstratos, nudez, cenas urbanas, retratos de famosos e de anônimos, muitas delas com premiações importantes e destaque na imprensa, espaços que antes eram restritos quase exclusivamente para os homens.

Entre as mulheres que alcançaram importância como fotógrafas nos movimentos de vanguarda estão, entre outras, Florence Arquin (1900-1974), Lisette Model (1901-1983), Lola Alvarez Bravo (1903-1993), Grete Stern (1904-1999), Nina Leen (1906-1995), Dora Maar (1907-1997), Gisèle Freund (1908-2000), Ruth Gruber (1911-2016), Eve Arnold (1912-2012), Nina Leen (1914-1995), Maya Deren (1917-1961), Ruth Orkin (1921-1985), Inge Morath (1923-2002), Diane Arbus (1923-1971) e Sabine Weiss (1924-2021), além das que têm atuação de destaque no pós-guerra e na cena contemporânea como Rineke Dijkstra, Roni Horn, Mary Ellen Mark, Markéta Luskacová,
Nan Goldin, Jo Spence, Annie Griffiths, Vivien Maier, Graciela Iturbide,  Candida Höfer, Cindy Sherman, Annie Leibovitz, Kiki Smith, Carrie Mae Weems, Carol Guzy, Catherine Leroy, Francesca Woodman, Donna Ferrato, Gauri Gill ou Sally Mann. Há também grandes fotógrafas que atuam ou atuaram no Brasil, como Hildegard Rosenthal (nascida na Suíça), Gertrudes Altschul (nascida na Alemanha), Alice Brill (nascida na Alemanha), Claudia Andujar (nascida na Suíça), Maureen Bisilliat (nascida na Inglaterra), Madalena Schwartz (nascida na Hungria), Alice Kanji, Hermínia Borges, Dulce Carneiro, Jacqueline Joner, Avani Stein, Marisa Alvarez Lima, Nair Benedicto, Vania Toledo, Rosa Gauditano, Anna Mariani, Elvira Alegre, Rosângela Rennó e uma lista extensa de veteranas e nomes das novas gerações.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

duas crianças na janela, fotografia de 1939.

Acima, crianças brincando na calçada (1940).

Abaixo, a família (1945) e casal improvável (1941)









Uma poesia visual


Na legião de mulheres atuando como fotógrafas, um dos destaques inevitáveis é a norte-americana Helen Levitt (1913-2009), com seu trabalho com a câmera nas ruas que atravessou todo o século 20, atuando em todas as frentes e temáticas da fotografia de arte e do fotojornalismo. Descendente de imigrantes judeus-russos, Helen Levitt nasceu em Nova York – cidade que, com seus personagens, foi cenário da maioria de suas fotografias de 1930 até sua aposentadoria, no final da década de 1990, o que levou Susan Sontag, sua admiradora de longa data, a definir as imagens de Helen Levitt como “uma poesia visual sobre Nova York”.

Neste século 21, depois que Helen Levitt morreu, aos 95 anos, em 2009, grandes retrospectivas temáticas sobre sua obra foram organizadas no Festival PhotoEspaña em Madri e também na Fundação Cartier-Bresson em Paris, no Sprengel Museum em Hannover, no Albertina Museum em Viena, no Fotografiemuseum de Amsterdã e no Festival de Fotografia de Arles (no sul da França), entre outras exposições importantes que tiveram as imagens de Levitt como tema. A retrospectiva mais abrangente, que cobre toda a pauta temática de sua trajetória de 70 anos dedicados à fotografia, foi aberta em 2022 na Photographer’s Gallery de Londres, nomeada como “Helen Levitt: in the street”.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: no alto,

as amigas, fotografia de 1941. Acima, os irmãos (1944).

Abaixo, um gato (1945) e retrato de Walker Evans (1940)










De todos os aspectos que sobressaem quando se observa um conjunto de fotografias de Helen Levitt, o lúdico talvez seja o mais marcante – ainda que o grande fotógrafo das questões sociais nos Estados Unidos, Walker Evans (1903-1975), seja reconhecido por ela como sua maior influência. O lúdico e o poético nas imagens de Helen Levitt, contudo, talvez tenha uma relação mais direta com as fotografias humanistas de outros mestres, como os franceses Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Robert Doisneau (1912-1994). O fato de Levitt creditar Walker Evans como sua maior influência vem, por certo, de coincidências biográficas: quando circulavam as primeiras fotografias de Evans mostrando cenas dramáticas e extremamente realistas de agricultores pobres do sul dos Estados Unidos, no período da Grande Depressão, Levitt começava a trabalhar com fotografia, como assistente em um estúdio comercial instalado no Bronx, em Nova York. Evans, naquele período, havia sido contratado pela Farm Security Administration, agência federal criada pelo governo do presidente Franklin Roosevelt, e suas fotografias publicadas por vários jornais e revistas causavam uma grande comoção.

Na mesma época, no começo dos anos 1930, a jovem Helen Levitt participava de vários grupos de ativistas e sindicalistas e um dos principais líderes, Sid Grossman, também fotógrafo e fundador da cooperativa Photo League, pedia a jornalistas e fotógrafos mais atenção aos trabalhadores e aos movimentos sociais como consciência de classe – conforme ela declarou em uma de suas raras entrevistas, à National Public Radio, reproduzida no catálogo da exposição “Helen Levitt: in the street”. “Eu decidi que deveria tirar fotos de pessoas da classe trabalhadora e assim dar minha contribuição verdadeira para apoiar os movimentos sociais que estavam se organizando”, afirmou Levitt. Ela era descrita por seus parceiros de trabalho como uma pessoa extremamente gentil e simpática, mas muito tímida, com poucos amigos, que nunca se casou e morou a vida inteira em Nova York, no mesmo apartamento em Greenwich Village, com curtos intervalos de uma temporada que passou no México, em 1941, e outra em viagem pela Europa, no final da década de 1950, depois que conseguiu uma bolsa de financiamento da Fundação Guggenheim.








Retratos clandestinos de Helen Levitt: acima,

crianças no Halloween (1940) e fumantes (1940).

Abaixo, o bebê rindo muito no carrinho (1940)

e à procura de um táxi urgentemente (1982)








A temática das ruas


Na retrospectiva que ocupou todos os salões e corredores dos dois andares da Photographer’s Gallery de Londres, centenas de fotografias que Helen Levitt produziu, durante mais de 70 anos, com sua câmera Leica de 35 mm, foram selecionadas em torno de três núcleos temáticos: as ruas, as cenas do metrô e as experiências com os filmes coloridos, nas quais ela foi uma das pioneiras entre fotojornalistas. Na temática das ruas, pela qual ela é mais amplamente conhecida, estão registrados personagens e cenários de sua vizinhança em Nova York, incluindo o Lower East Side de Manhattan, o Bronx e o perímetro espanhol do Harlem. Na maioria das imagens, as crianças são o centro da atenção de Helen Levitt, em flagrantes poéticos de jogos e brincadeiras e também distraídas, observando algo que está fora do enquadramento da fotografia, como se a fotógrafa estivesse em atitude clandestina e sua presença não fosse notada pelos personagens em cena.









Retratos clandestinos de Helen Levitt:

no alto, Helen Levitt no metrô em 1938, em

fotografia de Walker Evans. Acima e abaixo,

retratos no metrô
feitos por Helen Levitt

nos anos de 1978, 1973, 1975 e 1978.


No final da página, amigas saindo de férias (1973),

a loja de doces (1971), a cabine telefônica (1988),

na esquina de calção azul (1981) e

a menina procura algo (1980)









A citada influência marcante de Walker Evans torna-se mais evidente com as fotografias feitas por Helen Levitt no metrô de Nova York. São personagens anônimos, que remetem às célebres fotografias que Evans capturou no mesmo cenário, quando viajava quase diariamente no metrô, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava sua câmera Contax de 35 mm, entre fevereiro de 1936 e janeiro de 1941. As fotografias de Evans no metrô (Veja mais em: Semióticas – Homens ilustres), que foram apresentadas em uma exposição que marcou época, no pós-guerra, e depois publicadas no fotolivro Many are called (Muitos são chamados), reeditado em 2004 pela Yale University Press, também influenciaram o jovem Stanley Kubrick, que trabalhou durante anos como fotojornalista em Nova York antes de se tornar cineasta (Veja mais em: Semióticas – Kubrick no Metrô).

Helen Levitt teve a oportunidade de acompanhar, em 1938, algumas viagens de trabalho de seu mentor Walker Evans fotografando anônimos no metrô de Nova York e, nos anos e nas décadas seguintes, repetiu por diversas vezes a experiência de fotografar os passageiros, também em anonimato, com seu próprio estilo e seu equipamento mais modesto. Uma seleção destas fotografias foi apresentada pela primeira vez em 1991, em uma exposição no MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2017 foi reunida no fotolivro Manhattan Transit: The Subway Photographs of Helen Levitt (‎Walther König Editions).

No terceiro grupo temático da exposição “In the street”, onde estão amostragens das experiências de Helen Levitt com as fotografias coloridas, produzidas a partir da década de 1950, também estão selecionadas as imagens que provocam com mais intensidade o senso de humor e algum estranhamento do observador. Algumas cenas têm mesmo um certo apelo surrealista, ainda que sejam registros poéticos sobre a vida que a fotógrafa, depois de décadas de trabalho diário, continuava a encontrar nas ruas de Nova York. Há crianças brincando, casais de namorados, maridos e esposas, mães com seus bebês, mulheres indo e vindo, velhos solitários, pessoas comuns.

Em uma das fotografias coloridas, uma mulher de vestido azul florido está de costas, usando um telefone público, e ocupa todo o espaço da cabine, em uma esquina de Nova York, enquanto duas crianças, possivelmente seus filhos, estão espremidas contra as paredes de vidro, uma de cada lado. Parece que cada fotografia de Helen Levitt conta toda uma história repleta de detalhes. A maioria de suas imagens coloridas, para as quais ela dedicou muito trabalho e atenção em seus últimos anos de atuação, nunca foi publicada em livro, mas esteve presente nas retrospectivas que celebraram, nos últimos anos, seu olhar personalíssimo que conquistou legiões de seguidores na arte da fotografia.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Retratos clandestinos de Helen Levitt. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/03/retratos-clandestinos-de-helen-levitt.html (acessado em .../.../…).



 
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