Billie
Holiday consegue expressar, em apenas um refrão,
mais
emoção do que a maioria das atrizes em três atos.
..........
–– Jeanne
Moreau. |
Poucas
vezes uma canção foi tão longe ao denunciar a situação aviltante
do preconceito e da violência indiscriminada contra os negros. E o
acaso e a sorte fizeram com que esta mesma canção ficasse para
sempre identificada com uma personalidade que superou todos os obstáculos
imagináveis para permanecer, em primeiro plano, no Olimpo das
grandes cantoras de todos os tempos: Billie Holiday (1915–1959).
Billie
tinha 23 anos em 1939, quando cantou pela primeira vez “Strange
Fruit” com seus versos sofridos que descrevem o horror dos
linhamentos de negros no Sul dos Estados Unidos. A trajetória da
canção que merece o título de emblemática está descrita em
“Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção”,
livro que o jornalista norte-americano David Margolick publicou no
ano 2001 e que agora chega ao Brasil em edição da Cosac Naify, com
tradução de José Rubens Siqueira e apresentação de André
Midani, veterano “capo” da indústria do disco no Brasil.
Apaixonado
por Lady Day, como é de praxe com todos os amantes do jazz e do
blues, Margolick mergulhou fundo na história e no significado de
“Strange Fruit”. Seu livro-reportagem esclarece e desfaz
equívocos sobre a canção – uma obra alegórica e comovente que o
historiador Leonard Feather definiu como "o primeiro protesto
relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra
o racismo".
Biografia
de uma canção: no alto
e acima, Billie Holiday no estúdio,
fotografada em 1958 por Dennis Stock.
Abaixo, Billie no palco, no Sugar Hill Nightclub,
e acima, Billie Holiday no estúdio,
fotografada em 1958 por Dennis Stock.
Abaixo, Billie no palco, no Sugar Hill Nightclub,
em Newark, New Jersey, em abril de
1957,
em fotografia de Bob Parent; e acompanhada
pela orquestra de Teddy
Wilson no
Newport Jazz Fest, em 1954, em
fotografia de John Vachon. Também
abaixo, fotografada nas ruas em 1956,
por Moneta Sleet Jr. para uma reportagem
especial da revista Ebony; e em sua
última sessão de gravações no estúdio
Newport Jazz Fest, em 1954, em
fotografia de John Vachon. Também
abaixo, fotografada nas ruas em 1956,
por Moneta Sleet Jr. para uma reportagem
especial da revista Ebony; e em sua
última sessão de gravações no estúdio
em 3 de março de 1959
No
mesmo ano em que canta nos palcos “Strange Fruit” pela primeira
vez, Billie grava a canção em um disco em 78 rotações pelo selo
Commodore. Anos depois, voltaria a gravá-la com outro arranjo pelo
mesmo selo e outras quatro vezes para a Verve. Nas últimas décadas,
muitos arriscaram novas versões para a canção, lembra Margolick,
que destaca a gravação de Nina Simone e cita algumas outras muito além do universo das fronteiras do jazz e do blues, incluindo de
Cassandra Wilson a Tori Amos e Siouxie & The Banshees, de Sting e UB-40 a Dee Dee
Bridgewater, de Abbey Lincoln a Carmen McRae e Patti Smith, de Diana Ross a Jeff
Buckley, Sidney Bechet, John Legend, Marcus Miller, Cocteau Twins, Beth Hart, Rokia Traoré e Björk.
O
livro de Margolick, que foi sucesso imediato nos Estados Unidos e na
Europa, deu origem a outros relatos “biográficos” escritos por
jornalistas sobre discos e canções. Alguns deles também alcançaram
a condição de best-sellers, caso de “A Love Supreme” (2002) e
“Kind of Blue” (2007), de Steve Khan, publicados no Brasil pela
Barracuda, e “Stardust Melodies” (2002), em que Will Friedwald
apresenta a trajetória de clássicos do cancioneiro norte-americano,
como “Body and Soul”, “Night and Day” e “Saint Louis
Blues”. O primeiro exemplar da safra nacional foi anunciado
para chegar às livrarias em 2015: o poeta e ensaísta Eucanaã
Ferraz está mergulhado na pesquisa para contar a história de um
marco da bossa nova, “Garota de Ipanema”, canção criada por Tom
Jobim e Vinicius de Moraes. “Garota de Ipanema – A biografia de
uma canção” será publicado pela Companhia das Letras.
Relato
em polifonia
Primeiro
destaque do novo gênero que apresenta biografias de discos e
canções, o livro de Margolick aposta no que o russo Mikhail
Mikhailovich Bakhtin (1895–1975), um dos pioneiros dos estudos
em Semiótica, batizou de “polifonia”: aquela estratégia
narrativa em que fontes e versões distintas, apresentadas
simultaneamente, contribuem para o melhor entendimento da história.
Ao leitor, Margolick confessa que demorou a entender que os
“estranhos frutos” em questão não eram cerejas ou maçãs, e
sim negros enforcados e dependurados em árvores nos estados ao Sul
de seu país.
A
origem da canção e todas as gravações de “Strange Fruit”
feitas por Billie são investigadas por Margolick, desde aquela
primeira noite no salão do Café Society, um bar construído no
porão da Sheridan Square, no Greenwich Village de Nova York, um
território frequentado por artistas e intelectuais em que a
intolerância e o preconceito racial não eram admitidos. Uma das
fontes para o relato incomum de Margolick é a autobiografia “Lady
Sings the Blues”, publicada por Billie Holiday pouco antes de sua
morte, em 17 de julho de 1959, em um quarto do Hospital Metropolitano de Nova York, pouco tempo depois de ter o quarto invadido por policiais. O atestado de óbito registrou que a morte ocorreu em decorrência de edema pulmonar, cirrose hepática e insuficiência cardíaca.
“Não
houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando terminei”, escreveu
Billie em sua autobiografia. “Então uma pessoa começou a aplaudir
nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo”. Naquela
noite, Billie deixou o palco em silêncio, sem retornar para o bis
habitual, porque ela estava mesmo com medo de interpretar uma canção
que atacava de frente o ódio racial – recorda Barney Josephson,
que era dono do Café Society em 1939 e foi entrevistado por
Margolick em 1998.
Biografia de uma canção: abaixo, Billie Holiday fotografada por Carl Van Vechten para a a capa da revista Down Beat, em fevereiro de 1947. Acima, em 1949, também fotografada por Van Vechten |
A
entrevista com Barney Josephson, publicada pela revista “Vanity Fair” em
1998, foi ampliada e deu origem ao livro, que abarca a trajetória de
Billie Holiday e o avanço nas lutas contra a conivência da
sociedade norte-americana com o preconceito e os linchamentos de
negros. Através de outras entrevistas e de pesquisas em jornais e
revistas, Margolick repercute aquela primeira apresentação da
canção por Billie e o destaque que “Strange Fruit” foi ganhando
nas apresentações das noites seguintes no mesmo clube e em outros
palcos, numa época em que ainda nem se sonhava com a música de
protesto.
Branco,
judeu, comunista
O
jornalista também investiga as relações de “Strange Fruit” com
o movimento pelos direitos civis, que só eclodiria 16 anos depois,
após a prisão de Rosa Parks, ativista que se negou a ceder seu
lugar no ônibus para um branco na cidade de Atlanta, na Geórgia. Os números garimpados por Margolick
impressionam: de acordo apenas com os registros oficiais, entre 1889 e 1940
mais de 2.700 negros foram linchados e assassinados no Sul dos EUA.
Daquela
noite no Café Society até sua morte em 1959, aos 44 anos, Billie
Holiday causava comoção todas as vezes que entoava “Strange
Fruit”, tanto que tomou para si a autoria da canção. Margolick
comenta o passo a passo de sua investigação a partir do momento em
que entendeu o significado dos versos entoados por Billie. E confessa
que seu interesse pelo assunto cresceu quando ele descobriu que o
autor da canção era Abel Meeropol, um homem branco, judeu, membro
do partido comunista e considerado por seus amigos um grande idealista, tanto que adotou os filhos do casal Julius e Ethel
Rosenberg, executados nos Estados Unidos em 1953 sob a acusação de serem espiões a
serviço da extinta União Soviética.
Admirado
por lendários compositores como Kurt Weill e Ira Gershwin, Abel
Meeropol tinha pouco mais de 30 anos e era professor no bairro negro
do Bronx, em Nova York, quando viu pela primeira vez uma fotografia
feita por Lawrence Beitler. A foto, publicada na revista “New
York Teacher”, estampava o linchamento e o enforcamento de
dois negros em 1930, em Indiana. O impacto da imagem levou Meeropol a
escrever um poema, “Bitter Fruit”, mais tarde transformado na bela e alegórica letra da canção.
Polêmica demais para o jazz
O
próprio Abel Meeropol levou “Strange Fruit” para Billie Holiday. Em
1939, ele assistiu Lady Day se apresentando no Café Society.
Impressionado com a performance da cantora, apresentou a ela sua
composição. Billie, no entanto, não teve interesse imediato e
demorou a apresentar a canção no palco pela primeira vez, em
arranjo para voz e piano. Mas desde a primeira vez que Billie cantou “Strange Fruit” foi uma comoção na plateia.
A gravação, entretanto, teve que superar um impasse: a gravadora Columbia Records, com a qual Billie tinha um contrato de exclusividade, não autorizou e recusou-se a gravar a canção, temendo protestos. Billie recorreu ao principal produtor da Columbia, John Hammond, e mesmo assim não teve autorização. Billie continuou apresentando “Strange Fruit” nos shows, algumas vezes cantando a cappella, sem acompanhamento dos músicos, e sempre comovendo a plateia, até que Milt Gabler, executivo da Commodore Records, assistiu a uma dessas apresentações e ficou tão impressionado que procurou os escritórios da Columbia, conseguindo um contrato especial para que Billie fizesse a gravação.
A gravação, entretanto, teve que superar um impasse: a gravadora Columbia Records, com a qual Billie tinha um contrato de exclusividade, não autorizou e recusou-se a gravar a canção, temendo protestos. Billie recorreu ao principal produtor da Columbia, John Hammond, e mesmo assim não teve autorização. Billie continuou apresentando “Strange Fruit” nos shows, algumas vezes cantando a cappella, sem acompanhamento dos músicos, e sempre comovendo a plateia, até que Milt Gabler, executivo da Commodore Records, assistiu a uma dessas apresentações e ficou tão impressionado que procurou os escritórios da Columbia, conseguindo um contrato especial para que Billie fizesse a gravação.
Margolick
justifica o estranhamento e a comoção das plateias que assistiam às apresentações ao vivo e também o sucesso quando a gravação começou a ser vendida em discos e passou a ser tocada com frequência nas estações de rádio. Ele esclarece que “Strange Fruit” era muito diferente de tudo o que
Billie interpretara até então: não lembrava as baladas de amor que
ela havia gravado na década anterior e tampouco se alinhava à
tradição do blues ou às inovações estilísticas no cenário do
jazz. A interpretação personalíssima de Billie, sua agonia
pessoal, acentuava o tema angustiante da canção – um grito contra
o racismo – que também representava os obstáculos que alguém
como Billie, uma cantora negra numa sociedade dividida entre brancos
no poder e negros subalternos, teria de superar.
“Strange
Fruit”, descaca David Margolick, escapa a qualquer categorização
musical e não lembra em nada “Lover Man”, “My Man”, “God
Bless the Child”, “Glummy Sunday” ou “Blue Moon”, entre
outros sucessos que Billie já havia emplacado naquela época. “É
uma canção artística demais para ser música folk, politicamente
explícita e polêmica demais para ser jazz", reconhece. Os
versos alegóricos de Meeropol, que marcaram profundamente a carreira
de Lady Day e foram definitivos para mudar os rumos da história no
século 20, ganharam uma versão do poeta Carlos Rennó:
Árvores
do Sul dão uma fruta estranha
Folha
ou raiz em sangue se banha
Corpo
negro balançando, lento
Fruta
pendendo de um galho ao vento
Cena
pastoril do Sul celebrado
A
boca torta e o olho inchado
Cheiro
de magnólia chega e passa
De
repente o odor de carne em brasa
Eis
uma fruta para que o vento sugue,
Pra
que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue,
Pra
que o sol resseque, pra que o chão degluta,
Eis
uma estranha e amarga fruta
Do
Café Society para outros palcos e daí aos discos, aos programas de rádio e aos ouvintes do
mundo inteiro, o peso da canção lançada por Billie Holiday rendeu
a ela muitos desafetos e agressões as mais diversas, inclusive
físicas. Margolick reconstitui os capítulos do drama e lembra que
Billie declarou em 1947 à revista “Downbeat”: “Fiz uma porção
de inimigos, sim. Cantar aquilo não me ajudou em nada”. Puro
engano. A mais mítica dos intérpretes do jazz e do blues, batizada
como Eleanora Fagan Gough pelos pais adolescentes, prostituída aos
12 anos e drogada daí em diante, Lady Day a cantar com sua voz
sublime e levemente rouca “Strange Fruit” forçou toda uma nação
a enfrentar alguns dos seus mais sombrios impulsos.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Biografia de uma canção. In: Blog
Semióticas,
27 de agosto de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/08/biografia-de-uma-cancao.html
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