Futebol
é o ópio do povo. E também é o narcotráfico da mídia.
–– Millôr
Fernandes em “A Bíblia do Caos” (1994).
A história é antiga: jogador de futebol de origem humilde consegue fama e fortuna em muito pouco tempo e passa a ser um "craque problema" que ruma a passos largos para a decadência e o fundo do poço depois de se envolver em sucessivos escândalos e casos de polícia. Da ascensão vertiginosa ao martírio galopante, a história do jogador de futebol que levou ao delírio tantos torcedores e tem um final dos mais trágicos se repete no Brasil desde as primeiras décadas do século 20 – conforme destaca a biografia "Nunca Houve um Jogador como Heleno" (Ediouro/Geração Conteúdo), do jornalista carioca Marcos Eduardo Novaes.
O livro de Novaes serve de inspiração ao filme de José Henrique Fonseca, que tem roteiro do diretor em parceria com Felipe Bragança e Fernando Castets. “Heleno – O príncipe maldito” traz Rodrigo Santoro na pele do gênio temperamental e boêmio e estreia no Brasil depois de receber prêmios em festivais de cinema da América Latina em Havana, Lima e Cartagena. Com cenários das décadas de 1940 e 1950 e fotografado em preto e branco, o filme de José Henrique, que é filho do escritor Rubem Fonseca, apresenta a trajetória dramática do craque artilheiro, galã e mulherengo na era de ouro do Rio de Janeiro, trazendo no elenco, entre outros, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Erom Cordeiro, Othon Bastos e Herson Capri.
Mineiro de São João Nepomuceno, Heleno de Freitas (1920-1959) é um dos personagens inaugurais na galeria brasileira dos craques problemáticos, segundo o biógrafo Marcos Eduardo Novaes. O título do livro, ele explica, faz uma referência ao slogan de lançamento de filme “Gilda” (1946), com Rita Hayworth – “nunca houve uma mulher como Gilda”. Porque Gilda, como recorda o biógrafo, foi um apelido nefasto muito usado pelas torcidas adversárias que quase sempre tirava do sério o jogador: Heleno explodia e partia para a briga sempre que era provocado e chamado de Gilda.
Bonito, charmoso e presença refinada nos salões elegantes, o mais mítico centroavante que já passou pelo Botafogo e pela Seleção Brasileira é tido por muitos como um dos maiores craques de todos os tempos. Foi o protagonista de uma trajetória marcada por grandes vitórias, mas também por muitos escândalos. O final de Heleno é melancólico: endividado, viciado em lança-perfume e diagnosticado com sífilis em seu grau mais avançado (quando a doença atinge o cérebro), abandonou o futebol e passou o resto da vida internado em um sanatório em Barbacena, Minas Gerais, até morrer, em 1959, considerado louco.
"Certamente, houve outros antes do Heleno de Freitas. Apenas a imprensa brasileira, que não tinha tradição de reportagem, não cobriu nem registrou os primeiros dramas do nosso futebol" – avalia em entrevista por telefone o jornalista e escritor Ruy Castro, que recebeu alta hospitalar no final de fevereiro, depois de sofrer uma crise convulsiva. "Mas um craque problema", destaca Ruy Castro, “não é mais frequente no Brasil do que em outros países”.
A
ficção e a vida real: no alto,
Rodrigo Santoro
em cena do filme Heleno e
fotografado durante
as filmagens com Alinne
Moraes. Acima e
abaixo,
o craque Heleno fotografado nas ruas
do
Rio de Janeiro e durante os treinos com o Botafogo
na década de 1940; e na pose para
a
fotografia oficial com o time em 1945
"Será que temos tantos craques-problema aqui? Não sei não. A Inglaterra teve, por exemplo, o George Best, que foi o Garrincha deles, lembra? Também morreu de birita. Mas, realmente, no Brasil, a coisa está passando dos limites", aponta Castro. "O inacreditável dinheiro que entra hoje no bolso de certos jogadores e o estilo de vida que eles passam a levar tendem a criar os tais problemas. Acho que nem o Renato Gaúcho e o Romário, nos anos 1990, tinham tanto acesso a mulheres como os jogadores de hoje".
Ruy Castro, mineiro de Caratinga e autor de biografias especialíssimas como "Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha", lançada em 1995 (além de "O Anjo Pornográfico", sobre o dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues, "Carmen", sobre Carmen Miranda, e livros de reconstituição histórica como "Chega de Saudade", sobre a Bossa Nova, entre outros), também considera que as origens humildes, assim como a infância e a juventude marcadas pela pobreza, podem sim ser apontadas como causas determinantes para atitudes de escândalo e até mesmo casos de polícia.
Heleno e outros craques: acima, outro herói do Botafogo na pátria do futebol, Mané Garrincha (1933-1983). Abaixo, cena de Garrincha, Alegria do Povo, filme de 1962 dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, e Garrincha em campo pela Seleção Brasileira em 1962
"Sim, é possível apontar essas causas determinantes. Mas não se esqueça de que há muito mais corrupção entre os ricos que entre os pobres", alerta Ruy Castro, antes de acrescentar que o caso policial envolvendo o goleiro Bruno do Flamengo pode ser considerado um dos casos mais graves, já registrados no Brasil, envolvendo um craque do futebol. "Sem nenhuma dúvida, é um dos mais graves. Mas, se Bruno fosse goleiro do Arapiraca, do Botucatu ou do Cascavel, e não do Flamengo, teria tido tanto destaque e seria capa da 'Veja'?", questiona.
Mas nem todo atleta do futebol brasileiro mergulha em excessos e até no crime: também há exceções. Dois exemplos sempre lembrados pela atuação política contra a censura e a repressão da ditadura militar no Brasil são Sócrates, pelo Corinthians, e Reinaldo, pelo Atlético Mineiro. No final da década de 1970, Reinaldo foi um dos responsáveis por denunciar um programa internacional de tortura e perseguição aos opositores, a Operação Condor, comandada pelos generais das ditaduras latino-americanas; e Sócrates, no começo da década de 1980, foi um dos idealizadores do movimento Democracia Corinthiana, o maior movimento ideológico do futebol brasileiro que, entre outras demandas, atuou pela volta das eleições diretas e pelo fim do regime militar.
Recados da bola
Para o também jornalista e escritor Jorge Vasconcellos, autor do livro "Recados da Bola" (Cosac Naify), que reúne depoimentos de 12 mestres do futebol brasileiro: Sócrates, Rivelino, o goleiro Barbosa, Didi, Zito, Nilton Santos, Djalma Santos, Zizinho, Jair Rosa Pinto, Ademir Menezes, Domingos da Guia e Bellini), casos de craques como Heleno de Freitas e Bruno do Flamengo, entre tantos outros no Brasil e em outros países, talvez possam ser considerados paradigmas.
"São exemplos famosos em suas épocas", analisa Vasconcellos. "Na década de 1930, por exemplo, vários jogadores já desfrutavam de grande fama e prestígio, e não deixavam de 'aprontar', como Leônidas da Silva, que, jogando no Peñarol do Uruguai, era criticado pela torcida por gostar de frequentar os cabarés e as atrações da noite local. Mas Leônidas nunca foi considerado um exemplo clássico de 'craque problema'. Ao contrário, é sempre lembrado sempre como um gigante do futebol brasileiro, o que de fato ele foi".
Dois
heróis da velha guarda:
no alto,
Leônidas da Silva
(1913-2004), na época
conhecido
por Diamante Negro, tricampeão
pelo
Botafogo e inventor do "gol de bicicleta";
acima, Didi (1928-2001),
o Mister Football,
inventor
da jogada que ficaria conhecida
como "folha seca".
Didi foi eleito
o
melhor do mundo na Copa de 1958
e Pelé foi o melhor jogador jovem.
Abaixo,
a
seleção brasileira na estação de
Poços
de Caldas (MG), esperando o trem,
dias
antes de embarcar para ser
a campeã
na
Copa do Mundo na Suécia, em 1958.
A
partir da esquerda, Nilton Santos, Dino Sani,
Gilmar,
Bellini, Garrincha, Moacir, Dida, Joel,
Mazolla,
Zagalo e Pelé. Também abaixo, Vavá
e
Garrincha no primeiro gol da partida final
contra
a Suécia; e Leônidas no seu célebre gol
de
bicicleta contra o Juventus na década de 1940
Emoldurado por dois grandes traumas nacionais, as derrotas nas Copas de 1950 e 1982, o livro de Jorge Vasconcellos traz conversas com alguns dos craques que fizeram história no futebol brasileiro. Nos depoimentos, comandados por Jorge Vasconcellos e por Claudiney Ferreira, o leitor fica sabendo como Didi inventou a folha-seca; o porquê de Zizinho preferir passar a bola em vez de fazer o gol e acompanha os bastidores do trágico dia da final da Copa do Mundo do Brasil, em pleno Maracanã, contra o Uruguai em 1950.
Vasconcellos também apresenta em detalhes no livro histórias saborosas sobre as aventuras italianas de Sócrates; Jair Rosa Pinto ensinando Pelé a se defender dos zagueiros violentos e a criação da Democracia Corintiana, entre outros casos e escândalos pontuais que marcaram época no decorrer do século 20 e construíram a mítica do esporte das multidões em todo o Brasil.
Comoção nacional em 1950: o gol do adversário silenciou o Maracanã na final da Copa do Mundo, que teve a situação até hoje pouco esclarecida sobre a não convocação do craque Heleno de Freitas. Abaixo, a seleção brasileira na Copa de 1950, fotografada minutos antes da final dramática contra a seleção do Uruguai
Sobre a trajetória dramática de vitórias e derrotas de Heleno de Freitas e de outros "craques problema", Vasconcellos considera que, diante da enorme população mundial que pratica o futebol, de modo amador ou profissionalmente, esse tipo de escândalo é, na verdade, uma minoria absoluta. "Está longe de ser privilégio nosso. Fiquemos somente com alguns exemplos recentes encontrados no exterior: Maradona, o inglês Paul Gascoigne e o irlandês George Best, entre muitos outros".
As origens humildes e a infância pobre podem ser apontadas como causa determinante para um ou outro escândalo que vem com a fama, mas Vasconcellos é enfático em destacar que pobreza não é sinônimo de desvio de caráter ou de psicopatia. "Com a riqueza, de certa forma, acontece a mesma coisa. Não é a classe social que determina a conduta ética e moral de ninguém. Da mesma forma, deslumbramento não é privilégio de nenhuma categoria social. Acredito que são menores as chances de um jogador dar passos errados quanto mais educado ele for", avalia.
Hideraldo Luiz Bellini, que entrou para
a história como
capitão do primeiro título
em Copa do Mundo da
seleção brasileira.
Em 1958, na Suécia,
Bellini ergueu o troféu,
a Taça Jules Rimet,
após a disputa final,
e criou um gesto que
se transformaria em
um ritual universal
para o esporte.
Também abaixo, duas
imagens da Copa
do Mundo de 1962 no
Chile, em que o
Brasil se tornou
bi-campeão: Garrincha
e Pelé no jogo
contra a seleção do México;
e Pelé cercado por
crianças e adolescentes
durante um treino da
seleção brasileira
em Viña del Mar,
Valparaíso, em
fotografia de
Reginaldo Manente
Para Vasconcellos, é importante considerar também que adquirir fama e fortuna rapidamente não é uma experiência muito fácil para a maior parte das pessoas, sendo ou não atletas de origem humilde. "É preciso aprender a lidar com a nova situação. Mas ninguém está condenado a fazer bobagem por ficar rico e famoso de uma hora para outra, isso não está não. Isso é gravíssimo. Acredito mesmo que o caso do goleiro do Flamengo seja o mais grave registrado no Brasil envolvendo um jogador".
Memórias de craques
Carioca de 1956 e torcedor do Flamengo, Jorge Vasconcellos vem reunindo desde 1994 depoimentos de craques de todos os tempos da Seleção Brasileira – de Domingos da Guia a Rivelino e Sócrates. Às entrevistas, algumas feitas em parceria com Claudiney Ferreira para a BBC de Londres, ele acrescentou bela pesquisa fotográfica, privilegiando imagens de bastidores que os jornais raramente publicavam na época. Na entrevista abaixo, concedida por telefone, Vasconcellos fala sobre o acervo reunido no livro e sobre alguns dos personagens que fizeram a história do futebol no Brasil.
Há quem diga que o futebol é uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. Você concorda?
Jorge Vasconcellos – O futebol, de fato, está arraigado na alma brasileira. Só esse aspecto já exige boa dose de complexidade analítica para quem deseja entender a razão de ter evoluído dessa forma por aqui. Quanto à cultura, foram produzidas expressões de grande gabarito no campo das artes com foco no futebol, em diferentes linguagens: filmes, artes visuais, literatura, museus etc. Contudo, muitas iniciativas que ambicionaram chegar ao estado de arte por meio do futebol não foram bem-sucedidas.
Seu livro "Recados da Bola" começa com depoimento de Barbosa, goleiro na Copa de 1950, e fecha com Sócrates, personagem em outra derrota, a de 1982. Por que destacar no livro os heróis que ficaram marcados por derrotas históricas?
Na verdade, o grande trauma de Sócrates (foto abaixo) foi com a Seleção de 1982, na Copa da Espanha. Salvo melhor juízo, as derrotas em 1950 e 1982 foram os momentos mais difíceis vividos pelos brasileiros no que diz respeito ao futebol. No caso de 1950, é muito complexo e extenso o baque que o “Maracanazo” causou nos brasileiros. Jogadores, como Barbosa, nunca mais se recuperaram. Imagine dezenas e dezenas de milhares de pessoas calando-se "estrepitosamente" num mesmo lugar, atônitas com o que estão vendo.
Sócrates (Corinthians) e Reinaldo (Atlético Mineiro):
exemplos de atuação política contra a ditadura militar no Brasil
Vem desse episódio no Maracanã o que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”?
Isso mesmo. O famoso complexo de vira-lata, tão bem vislumbrado por Nelson Rodrigues como uma "vocação natural" dos brasileiros, tem sua matriz na derrota arrasadora sofrida pela seleção no Maracanã em 1950. Já em 1982 a seleção assombrou o mundo com um futebol alegre, vistoso, mas que sucumbiu diante da Itália, campeã daquele ano. Sócrates era o capitão daquele time. Ele simboliza, no livro e para quem reflete sobre futebol, a perda de status do futebol-arte como um recurso de jogo vencedor. Infelizmente, a primazia do futebol jogado em grande estilo, pelo menos entre nós, foi mandada para a linha de fundo, ainda que tenhamos craques desfilando nos gramados daqui e do exterior.
Mas o trauma da derrota do Brasil para o Uruguai, no Maracanã, na Copa de 1950, foi o combustível para a sequência de vitórias espetaculares da Seleção nas décadas seguintes?
Há uma espécie de consenso indicando a derrota na final da Copa de 1950 como fator essencial para a posterior sequência de vitórias da Seleção Brasileira. O fato é que o trauma que aquela derrota causou nos brasileiros foi de tal ordem que sua reparação se tornou algo próximo a uma obsessão no Brasil.
O que tem sido mais marcante na trajetória do futebol brasileiro: as vitórias ou as derrotas?
Sem dúvida, as vitórias. Salvo melhor avaliação, somos a maior potência do futebol mundial. Ganhamos cinco Copas do Mundo e centenas de nossos jogadores são objeto de desejo de clubes mais e menos importantes do futebol internacional. Eles são até mesmo titulares em seleções de outros países.
Dos depoimentos de craques reunidos no livro, qual foi o mais complicado ou mais emocionante?
Por incrível que pareça, não houve nenhuma complicação na realização dos depoimentos. Ao contrário, diria que o time dos 12 caracterizou-se pela gentileza e generosidade em lembrar detalhes de suas vidas esportiva e pessoal. Uma das passagens inesquecíveis foi o momento em que Bellini relatou a criação do gesto imortal de vitória, segurando a Taça Jules Rimet sobre a própria cabeça com as duas mãos. Nos momentos efusivos de comemoração, ele lembrava da saúde debilitada do pai e do que estaria se passando, àquela altura, com o povo brasileiro.
Por que o depoimento de Pelé ficou de fora do livro?
Pelé, se não é o maior, é um dos principais protagonistas do futebol em todos os tempos. Tentamos diversas vezes agendar com ele uma entrevista. Mas não foi possível.