A
partir de agora pode ser interessante ver o quanto você adivinhou. Nós aprendemos sempre com o fracasso, não com o sucesso.
–– Bram
Stoker, “Drácula” (1897).
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Alguns
séculos antes de tomar de assalto a internet, o cinema, a TV e as
livrarias, o vampiro sempre foi uma figura misteriosa e sedutora de destaque na
literatura universal. O nome tem origem na palavra sérvia “vampir”
(“morto-vivo”), mas na sabedoria popular “vampiro” também
pode ser o invejoso que sofre de ganância excessiva ou mesmo aquele que
enriquece às custas do trabalho alheio. No
mundo animal, “vampiros” são morcegos raros, hematófagos (se
alimentam de sangue), que podem transmitir para humanos e animais
domésticos o vírus da raiva e outras doenças. Segundo o folclore do
Leste Europeu, o vampiro é um monstro com poderes sobrenaturais que
sai à noite da tumba, com aparência de sedução, para sugar o sangue
dos vivos.
As lendas sobre o vampiro foram muito difundidas na Europa desde a Idade Média, gerando uma dúzia de clássicos da literatura antes de chegar ao cinema, no começo do século 20, para inspirar obras-primas e sucessos de bilheteria como "Nosferatu" (1922), do alemão F. W. Murnau, com Max Schreck como protagonista, primeira adaptação do romance de Bram Stoker "Drácula" (1897), que teria diversas versões no decorrer do último século.
Entre todas as artes e mídias, o cinema foi o terreno fértil que transformou o vampiro no monstro mais popular do século 20,
em aparições que incluem centenas de títulos, entre eles os pioneiros do cinema mudo, os célebres filmes
de 1931 de Tod Browning, com Bela Lugosi, e de 1958, de Terence
Fisher, com Christopher Lee, além da aclamada versão de Francis Ford
Coppola, de 1992, com Gary Oldman. A lista de filmes com versões
para a mesma lenda e o mesmo personagem é quase infinita, com variantes que incluem, na variedade, a mistura de horror e comédia de "A Dança dos Vampiros"
(1967), de Roman Polanski; "Nosferatu no Brasil" (1971), paródia de Ivan Cardoso, com o poeta Torquato Neto no papel do vampiro, que inaugura o besteirol nacional; e a saga adolescente dos livros de
Sthephenie Meyer, “Crepúsculo”, todos levados ao cinema, entre
muitas outras mutações.
O vampiro na literatura
Na
literatura, o vampiro consagrou-se ao passar pelas mãos de grandes
escritores como Dom Calmet, Goethe, Coleridge, Lord Byron, Hoffmann,
Gógol, Baudelaire e Bram Stoker, entre vários outros mestres –
como registra com rigor de pesquisa científica uma
coletânea inédita
e incomum,
“Caninos – Antologia do Vampiro Literário”, publicada
no Brasil por
Berlendis & Vertecchia Editores.
“A vontade de fazer esse livro dedicado à trajetória do vampiro na literatura veio de uma experiência de uns anos atrás, quando editei uma seleção de contos assustadores do jovem Flaubert”, explica em entrevista por telefone o editor e organizador da antologia, o paulista Bruno Berlendis de Carvalho. “Gostei de pesquisar e escolher um ‘lado B’ dos clássicos, procurar neles o elemento thriller. A escolha pelos vampiros deu-se pela própria riqueza da literatura do século 19 a tratar destes seres lendários”.
A
referência mais antiga sobre o vampiro na literatura? “Essa
pergunta é uma armadilha clássica”, destaca Berlendis. “Tudo
depende do que você chama de vampiro. Tem de chupar sangue para
sê-lo? E se seca sua vítima por mau-olhado?”, ironiza o editor, enquanto aponta alguns extremos da variedade que cerca as versões milenares sobre os monstros que podem ser nomeados como vampiro, assunto que é o tema central do ensaio de sua autoria com o título “(In)definições do Vampiro”,
editado como posfácio no livro “Caninos".
Manuscritos medievais
De
acordo com Bruno Berlendis, a mais antiga ocorrência documental de
um vocábulo associado a vampiros que conhecemos vem de manuscritos
russos da Idade Média, do século 11, que mencionam um certo Upir –
no caso, um nome próprio. “Mas daí a dizer que o tal desconhecido
sujeito fosse um vampiro... Ora!", ironiza o editor. "Porque
quando dizemos ‘vampiro’ já enxergamos automaticamente uma
figura toda pronta, como o Pierrô, por exemplo, não é mesmo?”, completa.
Da
extensa safra de vampiros e suas variantes registrados na antologia, Bruno Berlendis diz que não tem nenhum que seja seu preferido. Sobre a
saga “Crepúsculo”, ele confessa que não leu os livros. “Não
comento porque não li os livros e nem vi os filmes com atenção.
Mas é bom lembrar que vampiro-mocinho não é novidade na
literatura. Ele existe há mais de 150 anos”, alerta.
As traduções reunidas na edição de Berlendis seguem a linha de qualidade dos textos escolhidos e foram encomendadas para profissionais de reconhecida excelência, entre eles os poetas Ferreira Gullar e Ivo Barroso, além de Leonardo Fróes, Erick Ramalho (Prêmio Fundação Biblioteca Nacional – Melhor tradução de Poesia de 2009) e vários outros. Todas as traduções são inéditas e vertidas diretamente dos idiomas originais.
Cada
texto selecionado, explica Berlendis, conta no livro com uma
apresentação simples e objetiva que remete à biografia de seu
autor e o insere em seu contexto de origem. O volume traz ainda uma
introdução histórica, mapas com a localização das regiões
citadas e ensaio analítico que explora em profundidade as principais
questões envolvidas nesse tipo de literatura, assim como suas
possíveis origens folclóricas. Encerra a edição bibliografia
atualizada e um precioso índice temático remissivo.
A trajetória do vampiro
Confira,
a seguir, alguns trechos da entrevista que fiz por telefone com Bruno
Berlendis para o jornal "Hoje em Dia" de Belo Horizonte. O
autor, tradutor e editor, com muita ironia e argumentos de especialista, destaca certos aspectos sobre a trajetória dos vampiros em geral na cultura
e na literatura dos últimos séculos e sobre a antologia "Caninos"
em particular.
Pergunta
- "Caninos" é sua primeira antologia? Tem outros livros
publicados?
Bruno
Berlendis – Antologia mesmo, como panorama de textos
de diferentes autores, idiomas e períodos, organizados
tematicamente, sim, é a primeira. Publiquei seleções, como a de
Fábulas e Alegorias de Leonardo da Vinci, ou adaptações, como a de
contos do Mowgli, do Rudyard Kipling. Ali também escolhi e juntei
coisas diferentes sob um conjunto de critérios. Mas esse é um
trabalho diferente, porque na seleção muitas vezes os textos são
de um único autor. Além disso, publiquei diversos livros na
condição de tradutor ou editor.
De
onde surgiu seu interesse pela trajetória deste personagem?
Meu
interesse pelos vampiros vem de longa data. Mas a vontade de fazer
esse livro veio de uma experiência de uns anos atrás, quando editei
uma seleção de contos "assustadores" do jovem Gustave
Flaubert. Ele era um adolescente de 15, 16 anos – e já era o
Flaubert! Gostei de pesquisar e escolher um "lado B" dos
clássicos, procurar neles o elemento thriller. Daí aos vampiros?
Bem, quem tiver lido os textos compreenderá minha resposta. A razão
foi a própria riqueza da literatura do séc. 19 a tratar de
vampiros. Desse universo, o livro traz só um retrato que, mesmo
sendo focado com rigor, é bastante parcial. Se não tivesse sido
minimamente racional, eu teria compilado mais outro tanto na
antologia (quem sabe um segundo volume, daqui a alguns anos?)
Qual é a referência mais antiga sobre o vampiro na literatura?
Essa
pergunta é uma armadilha clássica. Boa parte da crítica
especializada se complica ao tentar respondê-la. Tudo depende do que
você chama de vampiro. Tem de chupar sangue para sê-lo? e se só
come cadáveres? e se seca sua vítima por mau-olhado? Vou assumir
que a referência tenha de ser explícita: um vocábulo ou um texto
de origem comprovadas. Se for assim, e se eu chamar de "literatura"
os textos disponíveis da história de nossa civilização, há um
documento russo do século 11 mencionando um Upir – no caso, um
nome próprio. Mas daí a dizer que o tal desconhecido sujeito fosse
considerado um vampiro pelos seus contemporâneos... ora!
Mas
a maioria de nós, quando dizemos "vampiro", já enxergamos
automaticamente um símbolo muito forte, uma figura toda pronta...
Você
tem toda razão. É como o Pierrô, por exemplo. Afirmar que existiu
"uma crença medieval nos vampiros" é confundir alhos com
bugalhos. Defendo que o vampiro é um fenômeno estético histórico.
Antes do século 17, ou até do 18, o vampiro não se diferenciava
direito da bruxa, do lobisomem, do morto-vivo ou do espectro de fantasmas para
nenhuma população europeia. Sabemos de um sanguessuga que
ressuscita e volta à sua mulher na crônica (ou seja, na História)
inglesa do século 13. O distinto senhor é um vampiro? Não podemos
afirmá-lo. Posso estar enganado – concluí esse livro, não minha
pesquisa – mas contabilizo entre as primeiras referências
explícitas e textuais as dos relatos de viagem do século 17.
Mas
aí já estamos na fronteira entre a literatura e outros discursos
que não têm por base a ficção...
Bem
lembrado. Se "literatura" significa criação literária e
exclui o texto não ficcional, então uma das primeiras menções é
a do alemão Ossenfelder, no poema "Crê a moça minha amada",
de 1748 . O poema foi publicado numa revista científica e
"ilustrava" um dossiê sobre vampiros (e naturalmente está
na nossa antologia, numa belíssima tradução).
Da
extensa safra de vampiros e suas variantes, qual é seu preferido e
por quê?
Olha,
você me fez lembrar de uma pergunta frequente da minha filha de nove
anos: qual sua música (sua banda, etc.) preferida? Não tenho, são
incontáveis. Se respondo: bem, sei lá, são umas mil, ela me dá
bronca. Se eu começar a explicar por que, então! ela sai do
recinto.
E as traduções para o português? Alguma merece mais destaque?
As
traduções são o segundo pilar do livro. Foi um trabalho delicioso,
mesmo se estafante, pensá-las, convidar essas figuras maravilhosas
para que dessem as suas contribuições inéditas e publicá-las
amarradas desse jeito. Sou um cara exigente e incansável (o chefe
dos sonhos). Agradeço imenso aos tantos colaboradores, os
palpiteiros e todos mais. Quanto ao resultado, não cabe a mim dar o
destaque, nossa parte está feita. Ele será dado por cada leitor,
talvez cada um ao seu modo, se é que fomos bem-sucedidos.
Seu
estudo sobre os vampiros vai além do lugar-comum. Posso dizer que
foi um trabalho de investigação, quase de detetive?
Isso
mesmo. Muito bom ouvir isso. Por outro lado, se a tua pergunta era se
"gosta mais de alguma"... Bem, adorei trabalhar nas minhas
próprias traduções. Quando a gente traduz, cria uma história com
o texto, algo que continua com você, meio sonho ou distração. O
conto do desconhecido Raupach ainda teve os seus momentos Sherlock.
Até onde pude descobrir, só tinha sido publicado uma vez pra valer,
numa revista alemã de 1823. Logo surgiu uma tradução inglesa, mas
que não joga limpo, pois censura algumas passagens mais picantes do
conto, além de atribuí-lo a outro autor mais famoso. Nossa
publicação se deve a Márcio Suzuki e Michele Gialdroni, que
levantaram um raro exemplar da revista original numa biblioteca da
Universidade de Tübingen, na Alemanha.
Que acha dos vampiros da saga “Crepúsculo”?
Não
li os livros da série, apenas uns pedaços de um e outro, nem vi os
filmes com atenção, então não tenho como emitir uma opinião.
Pelo que pude ver até o momento (pretendo lê-los direito), não se
diferenciam essencialmente dos vampiros contemporâneos ou do século
passado. Repetem com engenhosidade os estereótipos herdados de
séculos atrás. Isso não é mera depreciação.
Mas
quando penso no signo “vampiro”, penso que sua trajetória é
também a história de seus estereótipos...
Muito
bom falar com outro especialista. Você sabe o que diz. Os vampiros
foram moldados na Europa entre os séculos 18 e 19, por isso escolhi
esse período e esses idiomas para compor a antologia. Na Era Drácula
– ou desde 1900, um pouco antes – os vampiros tomaram um dos dois
seguintes rumos. Ou bem são leituras daquele repertório coletivo de
lugares-comuns, com a lua cheia, o sangue, o vinho, o amor proibido,
assim por diante; ou, por outro lado, são apenas sugeridos em
figuras mais difusas que possuem um vampirismo figurado, menos
evidente.
Vampiro-mocinho
também não é novidade...
Não
é. Existe há mais de 150 anos. Mas há mais coisa em jogo. A partir
de 1900-1930 o território por excelência do vampiro não é mais a
literatura, seja ela erudita ou popular. Esse território será o do
cinema e das mídias que derivaram dele. É verdade que o teatro
continuou a ter um papel importante até as décadas de 1930 e 1940.
Contudo, depois que Bela Lugosi (FOTO ACIMA) migrou dos palcos
da Broadway para o celulóide em Hollywood, o centro gravitacional
desse personagem mudou definitivamente de lugar. As personagens
vampirescas dos filmes de Ingmar Bergman, por exemplo, são
historicamente mais relevantes que a maioria dos romances
contemporâneos de vampiros.
Qual é seu próximo projeto como escritor?
Não
sou escritor, mas um fazedor de livros. Gosto mais de levar uma
história de um lugar pro outro do que de fazer a minha, pelo menos
por enquanto. Também quando era músico era assim: praticamente
nunca compus, mas adorava fazer arranjos, que são também uma
espécie de tradução. Não sei qual será meu próximo projeto
autoral. Mas tenho tentado traduzir umas coisas medievais, é
possível que saia algo daí.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Elogio
do vampiro.
In: Blog
Semióticas,
5
de setembro
de 2011.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/elogio-do-vampiro.html
(acessado em … /… /...).
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