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20 de abril de 2016

Fetiches à mostra









O que leva à substituição do objeto pelo fetiche é
uma conexão simbólica de pensamentos que, na
maioria das vezes, não é consciente para a pessoa.

–– Sigmund Freud, 1905.   



A história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir, a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum, resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde 1750 até a atualidade.

Trata-se de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens que são puro fetiche (veja o link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo) – incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios publicitários que fizeram História. Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios, cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e pudores.

Diante da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs, cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19 do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.









Fetiches à mostra: no alto, espartilho
em seda e metal fabricado em 1890
e usado para reduzir a cintura, manter
o tronco ereto e conferir mais elegância
ao corpo – uma das raridades reunidas
na exposição do Victoria & Albert
Museum. Acima, dioramas de
1900 registram damas da
nobreza vestindo espartilhos
e armações para saias e
vestidos. Abaixo, desfile
da primeira coleção de lingerie
de luxo lançada em 1998, em
Paris, pela estilista australiana 
Collette Dinnigan; e vitrine da
Corsetiere, última loja especializada
em corsetes, corseletes, espartilhos e
roupas íntimas sob encomenda, no East
End de Londres, que fechou as portas em
maio de 1968, fotografada em 1961 por
John Claridge. Todas as imagens
reproduzidas nesta página estão no
catálogo da exposição Undressed










O jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império, mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em nosso tempo presente.



Contraponto histórico



A questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico, indicando um sem número de aspectos transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento condicionados em segmentos de classes sociais.









Fetiches à mostra: no alto, amostras
raras das roupas íntimas usadas pela
nobreza da Europa no século 18.
Acima, espartilhos com cordas
e metal usados no século 19.
Abaixo, corsete em seda
e algodão de 1890 com
detalhes bordados em ouro;
uma rara peça unissex: a cinta
usada por homens e mulheres
no Oitocentos para moldar a
cintura e reduzir a barriga; e uma
peça que fez história na década de
1990: o sutiã cônico em modelo corsete
criado por Jean-Paul Gaultier para a
turnê "Blonde Ambition"
de Madonna


 








.









"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria & Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas para mulheres e para homens.

Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade, das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.











 










                                     




Fetiches à mostra – no alto, uma relíquia

original e valiosa: uma cueca de algodão

produzida na Inglaterra em 1890. Acima,

modelos anônimos fazem pose em 1915,

vestindo roupas íntimas longas, para um

catálogo de vendas das lojas Sears de Chicago;

a caixa de cuecas de papel descartáveis

lançada em Londres pela L.R. Industries

em 1970; um anúncio publicitário de calções

de banho de 1955 da grife Catalina, uma das

mais antigas fabricantes de roupas ainda

em atividade, criada em 1907 na Califórnia;

Sean Connery antes da fama, ao lado de

Chopper Hawlett, em um concurso de

fisioculturismo em 1953, usando um

ousado modelo de sunga de algodão.

Também acima, Clint Eastwood, outro

astro do cinema antes da fama,

posando de modelo fotográfico em 1955;

e o anúncio de lançamento de cuecas no

novo formato “sleep” que iria revolucionar o

mercado, aposentar o formato da tradicional

das cueca samba-canção e se tornar uma

peça de escândalo pela ousadia nunca vista

em um catálogo industrial, criação da grife

inglesa Dean Rogers Menswear. Abaixo, os

Brixton Boys fotografados para um anúncio

da Calvin Klein, em 2001; o anúncio de 2012

com David Beckham exibindo a coleção de

cuecas da grife H&M; um anúncio de 2015

das cuecas de seda da grife AussieBum;

Claudia Schiffer vestindo Chanel 

nas passarelas em 1993

















A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas, revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão, rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da moral.



O jogo: exibir e esconder



No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século 19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.












Fetiches à mostra: no alto e acima,
peças da coleção de lingerie de 2015
da grife Stella McCartney; e a coleção
de calcinhas da Cheekfrills, criação
de Lily Fortescue e Katie Canvin.
Abaixo, dois anúncios da
coleção “pornô-chic”
batizada de Tamila, lançamento
de 2015 da grife Agent Provocateur,
fotografados por Sebastian Faena;
e o espartilho com cristais e pérolas
criado em 2011 por Mr. Pearl
para a atriz Dita Von Teese











Nas roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento, desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.

As peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século 18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos, corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em 1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.















Fetiches à mostra: no alto, meia-calça
transparente com cinta-liga, criação de
artesãos franceses na década de 1870
que voltou à moda com o sucesso de
Marlene Dietrich no filme alemão de
Joseph von Sternberg O Anjo Azul
(Der Blaue Engel, 1930). Acima,
duas criações de Christian Dior:
colete em corsete com cinta-liga,
em releitura de 1950 para
as peças tradicionais do
século 19, e a camisola com
robe de chambre em fotografia
de 1953 de Irving Penn para
a revista Vanity Fair. Abaixo,
a camisola de luxo com saia curta,
criação de Cristobal Balenciaga de
1958; o corpete de nylon, novidade
da década de 1960 em criação de
Mary Quant; o vestido com espartilho
aparente criado por Antonio Berardi
em 2008 para a atriz Gwyneth Paltrow;
Kate Moss, com Naomi Campbell em
uma festa da Elite Models em 1993,
em Nova York, com um vestido de
seda transparente que deixava
à mostra a calcinha e
os seios nus













 
Contudo, não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público, e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950 e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbana e Stella McCartney.

A retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas, em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem característicos do tempo enigmático em que vivemos.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Fetiches à mostra. In: _____. Blog Semióticas, 20 de abril de 2016. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2016/04/fetiches-mostra.html (acessado em .../.../...).


Para uma visita à exposição do Victoria & Albert Museum,  clique aqui.














Fetiches à mostra: Sophia Loren na capa
da revista Life em setembro de 1966,
fotografada por Alfred Eisenstaedt
durante as filmagens de
Matrimonio all'Italiana, filme
de Vittorio De Sica, e vestindo peças
de lingerie criadas exclusivamente para ela
por Pierre Balmain em Les Millionaires,
comédia com direção de Anthony Asquith e com
Petter SellersVittorio De Sica no elenco, um dos
maiores sucessos de bilheteria de 1960. A canção tema
do filme, Goodness Gracious Me” (Zoo Be Zoo Be Zoo)
que permaneceu mais de um ano como Top 5 na Inglaterra,
nos Estados Unidos e em outros países, foi o primeiro grande
sucesso de George Martin, que depois seria o produtor musical
dos Beatles. Também acima, pôster publicitário criado por
Hans Schleger para Charnaux Patent Corset Co. Ltd
em 1936. Abaixo, uma seleção das galerias da exposição
no Victoria & Albert Museum em Londres













21 de julho de 2015

Mulheres de Korda










Uma “ironia do destino”: ele se tornou fotógrafo com a intenção de conhecer belas mulheres, mas terminou famoso no mundo inteiro por causa do retrato de um homem. Na verdade, não apenas um retrato qualquer – e sim, aquela fotografia que é quase um consenso como a mais reproduzida de todos os tempos: a imagem de Che Guevara. O retrato foi batizado na década de 1960 de “Guerrilheiro Heroico” pelo autor, o fotógrafo cubano Alberto Díaz Gutiérrez, mais conhecido pelo pseudônimo Alberto Korda (1928-2001). Agora, os retratos de belas mulheres, vertente de seu trabalho que ainda hoje é pouco conhecida, foram finalmente reunidas na mais importante exposição da PhotoEspanha, Festival Internacional de Fotografia e Artes Visuais, com sede em Madri, que programou uma edição dedicada à fotografia na América Latina.

Trata-se de “Korda, retrato femenino”, exposição aberta ao público no Museu Cerralbo, em Madri, que também conta com uma versão on-line e reúne, pela primeira vez, o acervo de fotografias de Alberto Korda que retratam apenas mulheres. São 60 imagens em preto e branco ou com matizes de sépia, a maior parte delas realizadas nas décadas de 1950 e 1960, sendo muitas inéditas em publicação e exibição pública. Considerado um dos mais tradicionais e consagrados eventos internacionais dedicados à fotografia, a mostra PhotoEspanha ocupa espaços de Madri e de várias cidades da Espanha e de outros países, incluindo Cascais e Lisboa, em Portugal, além de outras capitais da Europa – como Londres e Paris – Bogotá, na Colômbia, e também São Paulo, com exposições e diversos eventos em museus e espaços culturais.

Pelo recorte temático, dos 395 fotógrafos selecionados para a PhotoEspanha, a maioria vem da América Latina, incluindo nomes pouco conhecidos e também celebridades, com destaque, entre outros, para o brasileiro Mário Cravo Neto (1947-2009) e também Lola Álvarez Bravo (1903-1993), do México, Julio Zadik (1916-2002), da Guatemala, e Tina Modotti (1896-1942), italiana que viveu e trabalhou no México e em outros países. Mesmo entre tantas personalidades de importância central na fotografia do século 20, o cubano Alberto Korda surge como o grande destaque nesta edição da PhotoEspanha – com curadoria de sua obra em exposição a cargo de Ana Berruguete e contando com a colaboração da filha do fotógrafo, Diana Diaz.















Mulheres de Alberto Korda: no alto
e acima, o fotógrafo em seu estúdio em
Havana, Cuba, no ano 2000, e o filme 
de sua fotografia mais conhecida. Abaixo,
reproduções das fotografias de Korda
selecionadas para a mostra retrospectiva
da PhotoEspanha, com uma cena de
rua da Revolução Cubana de 1959 e
fotografia de 1958 com a bela Norka,
modelo que seria, anos depois, a segunda
esposa de Korda. Também abaixo, a capa
do catálogo oficial da exposição em Madri
e duas fotografias de 1956 de Nidia Ríos,
uma das musas de Korda e dos anúncios
de publicidade produzidos em
Cuba durante a década de 1950







                                











Autodidata que chegou à profissão de fotógrafo aprendendo e experimentando com uma Kodak 35 que tomou emprestada, Alberto Korda sempre dizia que buscou a fotografia somente com a intenção de conquistar mulheres, seguindo os passos do mais célebre dos fotógrafos de moda e seu preferido, o norte-americano Richard Avedon (1923-2004). A dedicação à fotografia com o objetivo de seduzir namoradas é relatada no livro "Cuba por Korda", lançado no Brasil pela Cosac & Naify. Escrito pelos franceses Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, o livro – perfil biográfico em edição recheada por 82 fotografias impressionantes, apresentadas em ordem cronológica – destaca que a trajetória de Korda foi marcada por estes estilos opostos: a moda, através dos retratos de belas mulheres, e as etapas da revolução de 1959 em Cuba, incluindo a tomada do poder e seus desdobramentos.



Revolução e retratos femininos



Primeiro a moda e os retratos femininos – e mais tarde a fotorreportagem sobre a revolução e seus líderes Fidel Castro e Che Guevara. Nos depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, Alberto Korda revela que inicialmente havia optado por uma "vida frívola", mas reconhece que, aos poucos e sucessivamente, os rumos da revolução em Cuba mudaram sua maneira de ver o mundo. "Percebi que valia a pena dedicar um trabalho à revolução que propunha a supressão das extremas desigualdades sociais", confessa Korda, que acompanhou Fidel e Che Guevara até as altitudes da Sierra Maestra, ainda no período das guerrilhas, tornando-se um olhar privilegiado que fez História ao registrar, por dentro, os momentos cruciais de afirmação do novo regime. 







 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
duas fotografias produzidas por ele
para anúncios de publicidade em
revistas femininas publicadas em
Cuba e consideradas pornográficas
depois da revolução de 1959. Abaixo,
Julia López Cruz, que foi a primeira
esposa de Korda, fotografada por
ele em Brisas del Mar, em 1956 


 





 
Na apresentação à exposição “Korda, retrato feminino”, a curadora Ana Berruguete lembra que as imagens de Che Guevara, de Fidel e de Cuba no período da revolução são a vertente mais conhecida e divulgada do trabalho do fotógrafo, mas destaca que ele sempre teve uma verdadeira obsessão em capturar a beleza das mulheres, do começo ao fim de sua trajetória dedicada à fotografia. “É indiscutível que a beleza feminina foi o gênero por excelência do trabalho de Alberto Korda”, aponta Berruguete. Entre as fotografias inéditas de Korda, reunidas na exposição, estão suas últimas imagens de belas mulheres, registradas em São Paulo, no ano 2000, e três retratos de sua primeira esposa, Julia López Cruz, mãe de Diana Diaz.

Alberto e Julia se casaram em 1951 e se separaram cinco anos mais tarde, na época em que o fotógrafo não fazia segredo sobre seus relacionamentos amorosos com as beldades que viriam a posar no Metropolitan, estúdio que fundou em 1954, em Havana, em parceria com Luis Pierce. Foi também nesta época que ele adotou o pseudônimo Alberto Korda, em homenagem aos cineastas húngaros Zoltan e Alexander Korda, dois irmãos que naquele tempo dirigiam superproduções de Hollywood que faziam muito sucesso nos cinemas em Havana, e porque a sonoridade do nome Korda, segundo ele próprio, lembrava a marca Kodak. 








 Mulheres de Alberto Korda: acima
e abaixo, Norka, musa e segunda
esposa do fotógrafo, em ensaios
fotográficos produzidos para capas
do suplemento feminino do
Diario de la Marina, em 1956 
 









 
O grande domínio da luz



De todas as mulheres que visitavam seu estúdio em Havana – que também era ponto de encontro de artistas e intelectuais – destacam-se Nidia Ríos e Natalia Méndez, também conhecida como Norka, as duas beldades e musas principais das campanhas publicitárias produzidas em Cuba na década de 1950. Tanto Nidia quanto Norka – que se tornaria mais tarde, oficialmente, a segunda esposa de Korda – eram altas, magras e loiras, com aparência que não lembrava em nada a maioria das mulheres de Cuba. A estratégia diária do trabalho de Korda, de acordo com o que relatou para seus biógrafos, começava com a procura, nas ruas, por manequins inexperientes que fossem jovens, belas, elegantes, e que, principalmente, transbordassem erotismo.

Pelas imagens selecionadas para a exposição em Madri é possível perceber o grande domínio da luz no trabalho do fotógrafo – especialmente no uso da luz natural, já que muitas de suas fotos publicitárias eram produzidas fora do estúdio, em lugares como hotéis, praças e praias, construindo cenas que parecem saídas dos filmes clássicos de Hollywood, com suas personagens posando de divas, com ar de mistério. O mesmo domínio da luz também é visível em suas fotos que registram as pessoas anônimas nas ruas e nos desfiles militares, na época da revolução. A mudança do tema de belas mulheres para os anônimos e os militares nas fotos de Korda, entretanto, não é tão radical como pode parecer.





 
Mulheres de Alberto Korda: acima,
Norka em fotografia para um anúncio
publicitário da joalheria Cuervo y
Sobrinos, em 1958. Abaixo, Korda
ajustando a luz em uma sessão no
estúdio, no começo da década
de 1950; e a fotografia da garota
pobre em um vilarejo na região de
Pinar de Rio, em 1958, que marca
uma mudança radical na
trajetória de Korda











Os biógrafos destacam que, com a tomada do poder em Cuba pela revolução comunista, a demanda pelo trabalho de Alberto Korda em publicidade caiu e muitas de suas fotos chegaram a ser consideradas “pornográficas”. Mas sua decisão de mudar veio antes mesmo da revolução: ele próprio relata que, certo dia, em 1958, viu nas ruas de um vilarejo muito pobre, na região de Pinar de Rio, uma menina pequena que de repente ficou assustada com sua presença e com a câmera que ele carregava. Ele lembrou de sua filha quando observou que a menina fazia uma saia improvisada de papel sujo para vestir uma boneca que, na verdade, era apenas um pedaço de madeira. Comovido, desde aquele dia resolveu se unir ao ideal revolucionário que prometia acabar com a injustiça social. Depois da revolução, seria o fotógrafo oficial de Fidel.



Guerrilheiro Heroico



As mulheres não estão ausentes na trajetória de Korda no período posterior à revolução de 1959. Pelo contrário. Na seleção apresentada pela PhotoEspanha, em Madri, não faltam retratos de belas mulheres, sejam elas as camponesas, as milicianas carregando armas e vestindo uniformes militares ou ainda as espectadoras dos desfiles nas ruas de Havana. Quase três décadas depois da revolução, já na década de 1980, Korda retomou o trabalho dedicado à moda e à publicidade, um retorno às origens que não mais abandonaria. Suas últimas fotografias também estão na exposição em Madri: foi um ensaio produzido em uma estação ferroviária de São Paulo, onde Korda retratou belas e sensuais modelos em dezembro do ano 2000. Ele morreu cinco meses depois, em Paris.









 
Mulheres de Alberto Korda: depois
da Revolução Cubana de 1959,
o fotógrafo continuaria a registrar
imagens de belas mulheres, não mais
para anúncios publicitários e ensaios de
revistas de moda, e sim personagens
anônimas nas ruas, no campo
e nos desfiles militares











Para os biógrafos, a paixão pelas belas mulheres, pelas doses generosas de rum e pela Revolução Cubana foram os gostos pessoais da dedicação de vida e das vertentes principais do trabalho de Alberto Korda, o fotógrafo que imortalizou o retrato de Che Guevara. Em 1959, ano em que as tropas lideradas por Fidel Castro ocuparam Havana, Korda já acompanhava como fotojornalista as ações da guerrilha em Sierra Maestra e depois, foi convocado para fazer parte da equipe do jornal "Revolución".

Meses depois de instalado o governo da revolução em Havana, Korda permananece em ação, tanto nas ruas como no papel de enviado especial que acompanhava Fidel ou Guevara em viagens internacionais, alternando retratos oficiais e fotojornalismo em ambientes mais descontraídos. Os “retratos femininos”, porém, com o passar dos anos foram se tornando a parte menos conhecida de sua extensa obra – que soma mais de 20 mil negativos, na maior parte ainda inéditos e só recentemente identificados.





 Mulheres de Alberto Korda: acima,
o fotojornalista em ação nas ruas de Havana,
em dezembro de 1959, registra Che Guevara
ao lado da esposa Aleida March. Abaixo,
Korda em autorretrato com sua musa,
Norka, em 1956; em seu estúdio em
Havana, em 1964, fotografado por Ida Kar;
e três dos retratos de mulheres anônimas,
da série de registros "Korda in America",
feita durante a viagem da comitiva de
Fidel aos EUA, em abril de 1959
























Também causa surpresa que a fotografia mais famosa de Alberto Korda tenha permanecido por muito tempo inédita. Na foto, Che Guevara é retratado por Korda em Havana, em 5 de março de 1960, em um encontro organizado por Fidel após o violento atentado atribuído à Agencia Central de Inteligência dos EUA (CIA) contra o navio La Coubre, ancorado no porto de Havana, em que morreram 69 marinheiros cubanos e seis franceses, deixando dezenas de feridos.

Che Guevara participava, ao lado de várias autoridades cubanas, da cerimônia em homenagem às vítimas da explosão. Também estavam presentes, na mesma cerimônia, na tribuna, Fidel Castro e o casal de intelectuais franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que naquela data estavam em visita a Cuba. Korda, na época, já trabalhava para o “Revolución”, mas por algum motivo a célebre fotografia de Che Guevara não foi publicada pelo jornal oficial de Cuba.












Mulheres de Alberto Korda: no alto,
modelo em um dos últimos ensaios do
fotógrafo, realizado em dezembro do ano
2000, em São Paulo. Acima, a beleza
feminina em um desfile na época da
revolução, em Havana; e uma fotografia de
Korda na capa da revista Cuba em 1964

Abaixo, Fidel Castro fotografado por Korda
em 1962Che Guevara no cinema, na versão
de 2004 de "Diários de Motocicleta", filme
com direção do brasileiro Walter Salles,
baseado no livro autobiográfico de Che, com
Gael Garcia Bernal vivendo o jovem médico
Ernesto Che Guevara na viagem de moto que
ele fez em 1952 por toda a América do Sul;
Che Guevara acompanhando o casal
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir,
fotografados por Korda durante a
visita Cuba, em 1960.

Também abaixo, Korda com sua
fotografia mais famosa, que próprio
fotógrafo batizou de Guerrilheiro Heróico;
Alberto Korda observando sua obra célebre;
e duas intervenções artísticas que ajudaram
a propagar no mundo inteiro o mítico
Che Guevara, em gravuras produzidas
por Jim Fitzpatrick (na foto ao lado da obra)
e por Andy Warhol, com o painel das
variações cromáticas, ambas datadas de 1968;
e a imagem de Che em bandeiras e camisetas
vendidas em bancas nas ruas de Havana









 











   

Somente anos depois, em 1967, pouco antes da morte de Che na Bolívia, o editor Giangiacomo Feltrinelli obteve a imagem capturada por Korda. De volta a Milão, Feltrinelli imprimiu milhões de pôsteres e postais, pelos quais Korda nunca recebeu um centavo. Segundo os depoimentos transcritos por Alessandra Silvestri-Lévy e Christophe Loviny, ele teria ficado ressentido apenas porque a foto vinha sem crédito. Depois disso a fotografia quase acidental do “Guerrilheiro Heróico” foi finalmente publicada na França, pela revista “Paris Match”, e em seguida ganhou o mundo, impulsionada pela morte de Che. No ano seguinte, duas intervenções de artistas ajudaram ainda mais a popularizar a fotografia de Alberto Korda.

O primeiro foi o irlandês Jim Fitzpatrick, que em 1968 transformou a imagem em um pôster pintado em preto, branco e vermelho, mas sem nenhuma menção à autoria de Korda. O retrato de Che também foi transformado em 1968 em serigrafias de cores contrastadas por Andy Warhol – que repetiu a técnica e a ideia original de sua obra mais famosa, as serigrafias de Marilyn Monroe em policromia, criadas assim que a morte da atriz foi anunciada, em agosto de 1962.

Assim como fez com a imagem de Marilyn, em que omitiu o nome de Frank Powolny (que havia fotografado a atriz em 1953), Warhol também não fez qualquer menção ao nome de Alberto Korda como autor do retrato de Che Guevara, mas ganhou fortunas com a venda das gravuras originais e com os direitos de reprodução. É um caso impressionante: passaram-se décadas e a imagem do “Guerrilheiro Heróico” continua a ser usada por muitos, em situações e intenções diversas. Nas vezes em que foi questionado sobre as apropriações que faziam de sua fotografia mais famosa, Korda declarava ter esperança de que aquela imagem jamais perderia a força de representar a utopia e a ternura. Tudo indica que ele estava certo.



por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Mulheres de Korda. In: Blog Semióticas, 21 de julho de 2015. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2015/07/mulheres-de-korda.html (acessado em .../.../...).












Para uma visita às exposições da mostra PhotoEspanha,  clique aqui.


















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