Todos
os erros humanos são impaciência, uma
interrupção
prematura de um trabalho metódico.
–– Franz
Kafka, 1931.
|
Quando
ele estreou em livro, em 1947, com os contos de "O Ex-Mágico"
– que abre com uma citação bíblica dos Salmos ("Inclina,
Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre")
e uma primeira frase afirmativa e amarga ("Hoje sou funcionário
público e este não é o meu desconsolo maior") – houve quem
apontasse a semelhança entre os textos do escritor Murilo Rubião
(1916-1991), mineiro de Carmo de Minas, e certas obras do tcheco
Franz Kafka (1883-1924), nome de destaque do onírico e do fantástico
na literatura universal e um dos maiores da língua alemã no século
20.
Rubião,
assim como Kafka, foi um mestre das parábolas, aquele gênero sempre
associado aos evangelhos do Novo Testamento, com suas histórias que
têm um fim didático baseado em comparações de costumes ou
observações analíticas sobre questões só na aparência
insignificantes. Muitos já haviam percebido o parentesco da
literatura personalíssima de Kafka com as parábolas de Murilo
Rubião, mas é curioso que ele próprio nunca tenha admitido nem as
semelhanças nem nenhuma influência vinda das obras do autor de “A
Metamorfose”.
No
final da década de 1980, o acaso e a sorte me proporcionaram a
oportunidade de fazer uma longa entrevista com Rubião para o jornal "Tribuna de Minas", junto com outro repórter, Walter Sebastião, e com o fotógrafo Humberto Nicoline. Encontramos o escritor bem-humorado e cercado de estantes com coleções
cuidadosamente encadernadas em couro, organizadas na sala ampla, com amplas janelas envidraçadas, no
apartamento em que morava no Edifício Maletta, no centro de Belo
Horizonte. Assim que começamos a conversa, ele foi veemente em negar qualquer aproximação com
Kafka, o primeiro autor que surgiu, logo na primeira pergunta. Segundo Rubião, ele só chegou a ler pela primeira vez alguns
textos do autor quando Kafka foi traduzido no Brasil, no final dos
anos 1940 – mesma época em que Rubião publicava os contos de “O
Ex-Mágico”.
.
Na entrevista, Rubião fez questão de esclarecer: “Kafka não teve influência sobre o meu trabalho. Quando li os seus textos, no final da década de 1940, já tinha escrito a maioria dos contos que iria publicar 'O Ex-Mágico'. Era muito difícil o acesso aos textos dele. Uma ocasião, eu tinha mandado meus contos para o Mário de Andrade, pedindo a opinião dele, e ele me respondeu que era um tipo de literatura que o deixava muito insatisfeito. Explicava que era um trabalho inteligente, bem feito, mas que não o convencia plenamente, que não era o tipo de coisa que ele gostava e completava, na carta, dizendo 'como também é a literatura de Kafka'. Achei estranho aquele negócio”.
Concluindo os comentários sobre a constante aproximação que alguns críticos e leitores fazem entre sua literatura e a do autor tcheco, Rubião explicou por quais motivos achou estranha aquela comparação feita por Mário de Andrade. “Achei estranho porque eu nunca tinha ouvido falar de Kafka. Escrevi pedindo emprestado. Mário, então, respondeu que tinha dois livros. 'A Metamorfose' e 'O Processo', mas que estavam em alemão. Só muito mais tarde consegui ler 'O Processo', e vi que havia identidade com minha literatura. Achei curioso. Mas o fato é que eu já havia escrito três livros – eu só consegui editor para o terceiro – e, neste momento, você conhece um autor que poderia ter te influenciado. Verifiquei, ainda, que a identidade talvez se devesse às mesmas leituras. Kafka tem influência da mitologia grega; é possível que ele tenha influência da Bíblia, do Velho Testamento, que os judeus leem muito; que conhecesse os autores do fantástico alemão e francês. Sabe-se, ainda, do seu conhecimento das obras de Edgar Allan Poe, que teve muita influência sobre a minha literatura. Eu não tenho influência do Kafka, mas se tivesse seria ótima, é um bom autor. Agora a diferença é que a literatura dele é mais escura, noturna, enquanto a minha é mais solar.”
Na entrevista, Rubião fez questão de esclarecer: “Kafka não teve influência sobre o meu trabalho. Quando li os seus textos, no final da década de 1940, já tinha escrito a maioria dos contos que iria publicar 'O Ex-Mágico'. Era muito difícil o acesso aos textos dele. Uma ocasião, eu tinha mandado meus contos para o Mário de Andrade, pedindo a opinião dele, e ele me respondeu que era um tipo de literatura que o deixava muito insatisfeito. Explicava que era um trabalho inteligente, bem feito, mas que não o convencia plenamente, que não era o tipo de coisa que ele gostava e completava, na carta, dizendo 'como também é a literatura de Kafka'. Achei estranho aquele negócio”.
Concluindo os comentários sobre a constante aproximação que alguns críticos e leitores fazem entre sua literatura e a do autor tcheco, Rubião explicou por quais motivos achou estranha aquela comparação feita por Mário de Andrade. “Achei estranho porque eu nunca tinha ouvido falar de Kafka. Escrevi pedindo emprestado. Mário, então, respondeu que tinha dois livros. 'A Metamorfose' e 'O Processo', mas que estavam em alemão. Só muito mais tarde consegui ler 'O Processo', e vi que havia identidade com minha literatura. Achei curioso. Mas o fato é que eu já havia escrito três livros – eu só consegui editor para o terceiro – e, neste momento, você conhece um autor que poderia ter te influenciado. Verifiquei, ainda, que a identidade talvez se devesse às mesmas leituras. Kafka tem influência da mitologia grega; é possível que ele tenha influência da Bíblia, do Velho Testamento, que os judeus leem muito; que conhecesse os autores do fantástico alemão e francês. Sabe-se, ainda, do seu conhecimento das obras de Edgar Allan Poe, que teve muita influência sobre a minha literatura. Eu não tenho influência do Kafka, mas se tivesse seria ótima, é um bom autor. Agora a diferença é que a literatura dele é mais escura, noturna, enquanto a minha é mais solar.”
Um certo Rubião: acima e abaixo, o escritor na sala de seu apartamento, no Edifício Maletta, e nas ruas do Centro de Belo Horizonte, fotografado em 1988 por Humberto Nicoline. Também abaixo, imagens de arquivo publicadas nas edições dos livros do autor sem identificação de autoria, exceto quando indicado |
Além
de negar a aparente influência de Kafka, Murilo Rubião também não
admitiu naquela entrevista, uma das últimas que concedeu, nenhuma filiação aos escritores do
chamado "boom" do realismo mágico da literatura
latino-americana, que a partir de 1960 ganhou repercussão no mercado
editorial na Europa e Estados Unidos por conta do prestígio
adquirido por nomes como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel
García Márquez, entre outros. Para ele, o prestígio de Borges era
exagerado: Rubião preferia Cortázar, que ele considerava como o mais importante entre os autores do gênero da literatura fantástica e que chegou a conhecer
pessoalmente, nas visitas que Cortázar fez a Minas Gerais. Cortázar era um autor que admirava de longa data.
Todos os contos
Ele foi um homem
público destacado em Minas Gerais durante décadas. A lista de sua atuação registra, entre outras funções, seu papel como fundador e
redator de jornais e revistas; criador do "Suplemento Literário
do Minas Gerais" (que, sob seu comando, seria por alguns anos
uma das melhores publicações do gênero no Brasil); Oficial de
Gabinete em Belo Horizonte do governador Juscelino Kubitschek, de 1951 a 1955; chefe da
publicidade de JK na disputa pela Presidência da República, em
1956; Adido Cultural do Brasil na Espanha de 1956 a 1960; diretor da Rádio Inconfidência e diretor da Escola Guignard, de Belas Artes e Artes Gráficas, a partir de 1967. Além da trajetória nos gabinetes e em cargos executivos no serviço público, Murilo Rubião também ocupa um lugar ímpar na literatura brasileira, com sete
livros publicados de 1947 a 1990, reunindo 33 contos tão breves
quanto fora do comum.
Morto
em 1991, aos 75 anos, o escritor retorna à cena com a edição de sua "Obra
Completa" pela editora Companhia das Letras, que reúne 33 de
seus textos fantásticos. "Incluímos nas edições da obras
completas o conto 'A Diáspora', que não foi publicado em vida pelo
autor, mas que estava em versão final, datilografada e revisada por
ele, nos arquivos que fazem parte do Acervo dos Escritores Mineiros
instalado na UFMG", explica a professora aposentada de
literatura da UFMG, Vera Lúcia Andrade, responsável pela
transferência dos arquivos de Rubião para a universidade e pelo
estabelecimento dos textos na nova edição.
"Na
verdade, todos os 33 textos fantásticos do Murilo Rubião já tinham
sido publicados. Eu mesma havia feito o estabelecimento dos textos
definitivos para a primeira publicação na editora Ática, que
aconteceu em 1998, sob o título 'Contos Reunidos', tendo como editor
Fernando Paixão. Foi quando, pela primeira vez, todos os contos do
Murilo apareceram juntos em uma única edição em livro”, explica a professora.
Como
naqueles eventos insólitos que pontuam a literatura que ele
produziu, Murilo Rubião morreu às vésperas da abertura de uma
grande exposição no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
Organizada para ser uma homenagem em retrospectiva sobre sua vida e
obra, a exposição contou com curadoria do professor, escritor e
artista plástico Márcio Sampaio, apoiado por vários colaboradores
e pesquisadores da obra do autor de "O Ex-Mágico". Com a
morte do escritor, todos os arquivos, livros e objetos reunidos para
a exposição acabaram transferidos ao final do evento para o acervo
de escritores mineiros da UFMG.
"Murilo
Rubião passou a vida reescrevendo sempre os mesmos textos, de tão
perfeccionista e cuidadoso que era", destaca Vera Andrade,
revelando que no acervo de Rubião ainda existem vários textos
incompletos que nunca foram publicados. "Os herdeiros não
autorizaram a publicação porque o próprio autor disse que eles
ainda não estavam concluídos. Então, todos eles permanecem
inéditos".
Um mundo à parte, fabuloso
O
espantoso talento de Murilo Rubião para narrar, como se fossem fatos
corriqueiros, acontecimentos os mais inusitados, transparece nas 33
obras-primas reunidas na "Obra Completa". Como na história
só aparentemente absurda do pirotécnico que, morto, segue vivendo.
Ou no caso da mulher que engorda desmedidamente conforme seus desejos
vão sendo atendidos por seu amado.
Na
obra de Rubião, cada texto breve encerra um mundo à parte,
fabuloso, como na história do coelhinho falante que aborda o
narrador com um pedido e, mutante, vai se insinuando em sua vida
cotidiana. Ou ainda no desespero do mágico devorado por sua própria
capacidade de operar prodígios, entre outros relatos insólitos e
imprevisíveis. Confira, a seguir, os principais trechos da
entrevista que fiz com a professora Vera Andrade, que destaca a
importância e a atualidade da obra de Murilo Rubião.
Quem
foi mais importante e influente, o Murilo Rubião da política ou o
escritor ?
Vera
Andrade – Ambos são igualmente importantes. O escritor
produziu uma obra preciosa, até porque é o precursor da literatura
fantástica no Brasil e o seu exemplo mais bem acabado. Já o Murilo
da política cultural influenciou toda uma geração de escritores,
que ficou conhecida como a "Geração Suplemento". Ele foi
o "guru" dessa geração.
Que
lugar Murilo Rubião ocupa na literatura e na cultura brasileira?
Ele
ocupa um lugar de destaque porque foi um homem público comprometido
com o seu tempo, além de ser um escritor de uma escrita impecável,
preocupado sempre em escrever e reescrever seus textos.
Ele
sempre dizia que seus contos traziam a influência de Machado de
Assis, da Bíblia e da Mitologia Grega. Esta tríade resume o
universo de Murilo Rubião?
Na
verdade, essa tríade representa bem as influências que ele traz em
sua obra, mas não "resume" o universo de sua literatura,
que é riquíssimo. Murilo foi leitor também de E. T. A. Hoffmann e dos
demais românticos alemães, bem como do italiano Luigi Pirandello, para citar
apenas alguns autores do universo da literatura fantástica.
Qual
a importância da publicação da "Obra Completa"?
É
de grande importância, por dar mais visibilidade ao trabalho ímpar
de Murilo Rubião, colaborando para uma maior divulgação de sua
obra, não só para o grande público leitor, mas também para os
especialistas e para a pesquisa acadêmica.
Um certo Rubião: dois retratos do escritor, na maturidade e no primeiro ano de vida. Abaixo, homenageado em pintura de 1985 do amigo Petrônio Bax |
Para um autor que publicou durante quase 50 anos, surpreende que a obra completa compreenda apenas 33 contos breves, ainda que sejam todos textos emblemáticos e irrepreensíveis. O que ainda existe de inédito entre os escritos de Murilo Rubião?
Existem
contos praticamente acabados, além de esboços de outros contos, e
até de uma novela, mas tudo indica que esses textos, parece-me,
continuarão inéditos, pelo menos por muito tempo.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Um
certo Rubião.
In: Blog
Semióticas,
23
de março
de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/um-certo-rubiao.html
(acessado em .../.../...).
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Obra Completa / Contos (Companhia das Letras)
1. O pirotécnico Zacarias 14
2. O ex-mágico da Taberna Minhota 21
3. Bárbara 27
4. A cidade 33
5. Ofélia, meu cachimbo e o mar 39
6. A flor de vidro 44
7. Os dragões 47
8. Teleco, o coelhinho 52
9. O edifício 60
10. O lodo 67
11. A fila 76
12. A Casa do Girassol Vermelho 90
13. Alfredo 98
14. Marina, a Intangível 103
15. Os três nomes de Godofredo 111
16. Memórias do contabilista Pedro Inácio 118
17. Bruma (a estrela vermelha) 124
18. D. José não era 129
19. A Lua 132
20. A armadilha 135
21. O bloqueio 139
22. A diáspora 145
23. O homem do boné cinzento 151
24. Mariazinha 156
25. Elisa 161
26. A noiva da casa azul 164
27. O bom amigo Batista 169
28. Epidólia 175
29. Petúnia 183
30. Aglaia 190
31. O convidado 197
32. Botão-de-rosa 207
33. Os comensais 216
Livros publicados por Murilo Rubião:
O ex-mágico (Universal, 1947)
A estrela vermelha (Hipocampo, 1953)
Os dragões e outros contos (Movimento-Perspectiva, 1965)
O pirotécnico Zacarias (Quíron, 1974)
O convidado (Ática, 1974)
A casa do girassol vermelho (Ática, 1978)
O homem do boné cinzento e outras histórias (Ática, 1990)