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6 de outubro de 2013

De Humani Corporis Fabrica







Todo corpo de cada ser humano é algo sagrado porque 
tornou-se alojamento temporário e um instrumento da alma 
imortal, uma morada que em muitos aspectos corresponde ao 
universo, razão pela qual os seres humanos eram chamado
pelos antigos sábios de microcosmos [pequenos universos]. 

–– Andreas Vesalius (1514-1564).  


Fonte inesgotável dos mais vivos e duradouros prazeres, dos sofrimentos mais lancinantes e também das mais grandiosas volúpias sensuais ou filosóficas ou científicas, o corpo humano, em sua aparência e estrutura de ossos, músculos, pele, sangue, veias, nervos, membros, vísceras, secreções, coração e cérebro, tem um capítulo fundamental na obra-prima "De Humani Corporis Fabrica" (A estrutura do corpo humano), publicada originalmente em 1543 pelo sábio renascentista Andreas Vesalius (1514–1564). O livro, que tem uma trajetória lendária nos últimos séculos, finalmente ganhou uma edição no Brasil em parceria da Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP e Ateliê Editorial, em parceria com a Editora Elsevier, da Holanda, uma das principais editoras internacionais especializadas em publicações científicas.
A versão nacional do livro de Vesalius também se tornou um fenômeno editorial, com tiragem esgotada poucos meses após o lançamento. Em sua época, a edição completa do livro que se tornaria uma relíquia lendária para colecionadores e especialistas, com a aura de ter sido a primeira obra a ilustrar em planos e posições perfeccionistas as diferentes partes do corpo humano, foi proibida e excomungada, para depois permanecer irremediavelmente perdida durante séculos. Um exemplar da primeira edição, de 1543, assim como a maioria das chapas em madeira das xilografias originais, reapareceriam quase por milagre quatro séculos mais tarde, na Inglaterra, na década de 1930.
Saudado, desde então, como obra de arte e marco incontestável da Ciência, o livro de Vesalius foi novamente editado em sua versão completa, com textos em inglês e alemão e fac-símile das anotações em latim. Esta edição completa ganhou agora, finalmente, sua primeira publicação no Brasil (veja link para a edição nacional no final deste artigo). Contemporâneo de artistas geniais como Michelangelo e Leonardo da Vinci, Vesalius passaria à História como fundador da Medicina e da Anatomia modernas, sempre citado por todos os compêndios e pesquisadores, mas pouco conhecido durante séculos. Quando se observa suas centenas de estudos reunidos em “De Humani Corporis Fabrica”, saltam aos olhos as qualidades de metodologia científica e registro historiográfico, assim como o progresso que representou no “diálogo” que seu livro impresso inaugura entre figuras e texto.








No alto, frontispício das edições originais
de 1543 e 1642, com trabalho de ourives
em policromia. Acima e abaixo, retratos em
xilogravuras do século 16 do mestre
Andreas Vesalius de Bruxelas e reproduções de
xilogravuras que retratam Johann Gutenberg
 e uma página de sua Bíblia de 42 linhas.
 
Também abaixo, imagem de um exemplar
original da Bíblia de Gutenberg que está
no acervo da Biblioteca do Congresso
em Washington D.C. (EUA)






Magia e ciência na Renascença


Andreas Vesalius de Bruxelas, como a maioria dos sábios de sua época, também foi acusado de feitiçaria, enfrentando as ameaças terríveis da Inquisição e os princípios sagrados da tradição judaico-cristã para sobreviver como pioneiro no que estuda e ensina dissecando o cadáver humano. As pesquisas muito avançadas e as experiências de mestre Vesalius, que por diversas vezes foram consideradas heresias e o levaram aos tribunais e às listas de persona non grata, da qual faziam parte os "alquimistas" e integrantes das irmandades secretas, cometeram o sacrilégio de estabelecer a prioridade à ciência, e não mais tão somente à religião, como base e referência primeira para a observação direta dos fenômenos. Mais um motivo para reconhecer sua obra de 1543, também, como notável revolução na historiografia do livro – como destacaram autoridades contemporâneas como Marshall McLuhan em "Galáxia de Gutenberg" (1962), Alberto Manguel em “Uma História da Leitura” (1996) ou Umberto Eco em “Conceito de texto” (1984) e “Sobre a Literatura” (2003), entre outros.
Não bastasse o inventário completo descritivo e ilustrado da composição do corpo humano que Vesalius descobre e apresenta, suas ilustrações e elaborações em técnicas gráficas e tipográficas para as xilogravuras, que ele prepara em parceria com o impressor Johannes Oporinus e de outros artistas de renome, como Ticiano, inventaram procedimentos instrumentais para os processos de impressão, como cinzel em hachuras e retículas – no pontilhado e nos traços paralelos, oblíquos ou cruzados que ainda hoje, com a tecnologia digital, são usados como ferramentas de desenho e pintura para ressaltar sombreamentos, detalhes, dimensões e texturas para impressão e visualização em suportes variados.







Entre ordenações de traços e reticulados que formam detalhes para ilustrações minuciosas, as invenções de Vesalius, e dos artistas e artesãos com os quais colaborou, deixaram como saldo a primeira representação científica e pictórica, não mais manuscrita, mas em folhas impressas e encadernadas no formato do livro. Reunidos em páginas consecutivas que resumem um vasto acervo de pesquisas e de dissecções, surgem em exposição ossos e vísceras e músculos dorsais e colunas vertebrais, com as figuras e os breves textos de Vesalius dialogando e mesclando-se com surpreendente criatividade. “De Humani Corporis Fabrica” leva o leitor-observador contemporâneo a perceber um primoroso e estranho trabalho de diagramação em perspectiva e em arte descritiva, algo inigualável e que sobrevive, ainda hoje, nos diversos formatos gráficos similares do papel impresso ou das telas de tecnologias digitais.


Bíblia de 42 linhas


A combinação de forma, tipografia e ilustração, na obra de Vesalius, representa um todo inseparável de precisão em referências cruzadas que ultrapassa e aperfeiçoa os padrões das formas gráficas de letras em frases e colunas de textos que simulam o traço da caligrafia – tudo isso poucas décadas depois do aparecimento da “Bíblia de 42 linhas” do ourives alemão Johann Gutenberg (1398 – 1468), reconhecida como primeira obra encadernada e impressa em série sobre papel, por volta do ano 1450.











Porém, enquanto o livro original de Andreas Vesalius utiliza a ilustração na página para eliminar ambiguidades e delimitar aspectos de exposição verbal, os exemplares da Bíblia Sagrada de Gutenberg eram impressos apenas com números e letras uniformes. Em Vesalius, o leitor encontra evidências de um diálogo esclarecedor e extremamente inovador na composição de palavras com cada gravura, enquanto a Bíblia de Gutenberg reunia manchas gráficas ordenadas em páginas com duas colunas de texto, cada uma com 42 linhas simétricas e paralelas, sendo que apenas as impressões sob encomenda da realeza eram ilustradas com iluminuras decorativas, pintadas a mão com variações cromáticas, repetindo o que havia sido prática com manuscritos medievais produzidos principalmente nos conventos e abadias.
Na impressão da Bíblia de Gutenberg, pelo processo que teve início por volta de 1450 e terminou somente em 1455, as páginas eram vendidas em separado, sem encadernação e sem ilustrações – ficando a cargo do comprador a ilustração e pintura posterior, feita a mão, por ourives, de acordo com gostos ou posses de seus privilegiados e nobres proprietários. Apontado como marco comparável à Bíblia de Gutenberg, o livro de Vesalius também estabelece parâmetros técnicos para impressão e composição de figuras e textos, motivo pelo qual seu pioneirismo é referência obrigatória em campos tão diversos do conhecimento como a História da Arte, da Medicina, da Anatomia, das Artes Gráficas, da Semiótica (ou das linguagens) e da Metodologia Científica. Como se não bastasse, "De Humani Corporis Fabrica" também apresenta raridades da melhor xilogravura produzida nos últimos séculos.











De Humani Corporis Fabrica: acima e
abaixo, amostras em fac-símile das primeiras
pranchas anatômicas do corpo humano
segundo Vesalius de Bruxelas,
impressas por xilogravuras em 1543









.







Lição de Anatomia


Nos detalhes das mais de 200 gravuras reunidas na edição nacional, e nas breves e precisas anotações de Vesalius, é possível reconhecer tanto a perfeição plástica quanto o entusiasmo com que o homem sábio da Renascença descobriu o corpo humano do obscurantismo medieval e dos milênios de tabus e dogmas religiosos. Na edição nacional, que faz parte do projeto Edições Históricas de Medicina, parceria entre Editora da Unicamp, Imprensa Oficial de SP, Ateliê Editorial e Editora Elsevier, o trabalho de Vesalius é apresentado em fac-símile à edição bilíngue inglês/alemão, de 1934, publicada pela Academia de Medicina de Nova York e pela Biblioteca da Universidade de Munique.
A edição bilíngue de 1934, intitulada “Icones Anatomicae” – que também foi a primeira sobre a qual há registros desde 1543 – em sua maior parte foi impressa direto das chapas de madeira originais, entalhadas em Veneza por Vesalius e redescobertas depois de 400 anos. A bela edição nacional, em capa dura e projeto gráfico que respeita as dimensões da publicação original, em formato semelhante à página de jornal impresso tamanho standard, inclui ensaio biográfico, análise das ilustrações e reprodução da íntegra da arte de Vesalius que sobreviveu até nossos dias.










A partir das anotações traduzidas do latim por J.B.D. Saunders e Charles O'Malley, a edição nacional apresenta as séries de entalhes didáticos das “Tabulae Sex” e da “Carta da Vivissecção”, que circularam como excertos anônimos em diversos livros de Medicina desde o século 16, e os impressionantes esboços de frontispício (as primeiras páginas da edição, ou páginas de rosto originais) para o “De Humani Corporis Fabrica” – com as cenas de sábios e seus discípulos reunidos em uma cerimônia de dissecação do cadáver, as mesmas cenas que seriam recriadas quase um século depois, em 1623, por Rembrandt, na célebre pintura “Lição de Anatomia do Professor Tulp”.


Náufrago no Paraíso


Vesalius, nascido Andries Van Wesel, em Bruxelas, antes mesmo da publicação do seu livro havia ficado muito conhecido nas academias da Europa na Renascença por conta suas aulas e demonstrações de dissecação do corpo humano, testemunhadas por estudiosos, nobres e magistrados. Catedrático da Universidade de Bolonha, o sábio autodidata centralizou todos os processos envolvidos no seu livro. Ele mesmo escreveu, organizou e acompanhou cada passo dos minuciosos trabalhos da impressão pioneira de sua obra magnífica em diversos aspectos.
Em ilustrações, diagramações e considerações teóricas, o trabalho de Vesalius também revela tributos e correções importantes para estudos clássicos que vieram antes dele, na tradição greco-latina, com interpretações revolucionárias e releituras para a fisiologia do corpo humano e sobre preceitos de saúde, da interação com a natureza e das recomendações sobre a atividade física que vigoravam desde a Antiguidade, atribuídos a Aristóteles (384-322 a.C.) e Galeno de Pergamum (século 2 d.C.), entre outros mestres.


















Acima, pranchas anatômicas publicadas em
1543 no livro De Humani Corporis
Fabrica e Vesalius em autorretrato em
xilogravura com detalhes de ourives na
policromia sobre papel. Abaixo, Vesalius
representado em litografia em policromia
de 1861 por Edouard Hamman; a capa
da edição nacional; e a célebre pintura
de Rembrandt de 1632, considerada
uma homenagem a Vesalius, intitulada
Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp






O pioneirismo de Andreas Vesalius também estende-se à noção de arte, concebida por ele como “criação da inteligência, sujeita a regras de perfeição apreensíveis e que podem ser formuladas e ensinadas com precisão científica”. Pela audácia de suas experiências e de seu empreendimento com o livro, um trabalho sem precedentes, Vesalius de Bruxelas acabou condenado à morte pela Inquisição, sob acusação de que teria dissecado um homem vivo. Mas escapou, por misericórdia de Filipe 2°, rei da Espanha, que conseguiu transformar a sentença final em uma peregrinação de Vesalius à terra santa de Jerusalém.
No breve ensaio biográfico que acompanha “De Humani Corporis Fabrica”, o leitor descobre que, depois de enfrentar séries intermináveis de peripécias dignas de galerias de heróis picarescos da melhor ficção, Vesalius ainda sobreviveria de forma mirabolante a um terrível naufrágio, na sua viagem de volta de Jerusalém à Europa. Morreu, finalmente, na condição de náufrago, um sobrevivente esquecido à espera de resgate na ilha de Zante, periferia da Grécia, na época um território desabitado, até hoje citado como um dos cenários especialmente paradisíacos no Hemisfério Norte.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. De Humani Corporis Fabrica. In: _____. Blog Semióticas, 6 de outubro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/10/de-humani-corporis-fabrica.html (acessado em .../.../...).


Para comprar o livro ilustrado de Andreas Vesalius (em inglês),  clique aqui.
 








1 de abril de 2013

Aventuras da percepção

 





Ut quod ali cibus est aliis fuat acre venenum.

(O que é alimento para alguns, é amargo veneno para outros – In:
"De Rerum Natura"Titus Lucretius Carus, século 1° antes de Cristo).



Enquanto os brasileiros acompanham sucessivas ameaças de retrocessos nas questões dos Direitos Humanos e das liberdades individuais, com propostas anacrônicas de legislações para internação compulsória e endurecimento da repressão ao uso de psicoativos, em muitos países a discussão avança não só na descriminalização, mas também na abrangência em questões de saúde, educação e – por que não? – arte e cultura. Uma seleção de peso da produção de artistas sob a influência das drogas é o que propõe uma corajosa e oportuna exposição organizada pela Maison Rouge, um dos nobres endereços de referência em Paris sobre artes plásticas e design.

Sous Influences – Arts plastiques et produits psychotropes” (Sob influência – artes plásticas e psicotrópicos) reuniu um acervo extenso e diversificado de 250 obras-primas de 90 artistas de vários estilos, várias épocas e vários países, incluindo trabalhos do brasileiro Hélio Oiticica. Todas as obras selecionadas para a mostra, de algum modo, estão ligadas aos efeitos de substâncias psicoativas e a maioria delas vem com a indicação “criada pelo artista em estados alternativos de consciência”. Como se pode prever, cada artista em cada criação apresentada tenta capturar sensações ou até mesmo alucinações provocadas pelas mais variadas experiências nas aventuras da percepção.










Aventuras da percepção: no alto da página,
Cogumelo venenoso fluorescente, instalação
e fotografia de 2004 de Carsten Höller, obra
que abre o catálogo da exposição apresentada
na Maison Rouge, em Paris. Acima, 
Trip triptych (1983), uma homenagem
do alemão Ralf Winkler ao outsider e
artista do grafite Jean-Michel Basquiat.

Abaixo, Basquiat em Nova York, em 1982,
com Annina Nosei, que foi sua primeira
agente; Dos cabezas, Andy Warhol e
Basquiat em pintura de 1982 de Basquiat;
e Basquiat em ação na Factory de
Andy Warhol, em Nova York, fotografado
em 1985 por Lizzie Himmel em 1983
por Lee Jaffe. Também abaixo, visitante
observa uma pintura de Basquiat sem
título, identificada como Pecho/Oreja


















Desde o início dos tempos, desde o alvorecer da civilização humana, os artistas sempre encontraram pelo caminho substâncias psicoativas em plantas, fungos, maceração e bebidas as mais variadas, que levaram a passagens místicas, à iluminação, mas também provocaram confusão, intoxicação, morte” – explica Antoine Perpère, curador da exposição na Maison Rouge e coordenador de um centro de atendimento a dependentes químicos em Paris.

No texto em que apresenta a exposição, Perpère repete um célebre enunciado – “a diferença entre remédio e veneno é a dose” – atribuído desde a Idade Média ao místico Paracelso (1493–1541), um dos fundadores da Farmacologia, mas também poderia lembrar grandes poetas e pensadores dos últimos séculos como Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Dylan Thomas, Aldoux Huxley, Allen Ginsberg, William Burroughs, Timothy Leary, Michel Foucault e Jim Morrison, entre outros que dedicaram a experiências com embriaguez, alucinógenos, e outros estados alterados de consciência, escritos preciosos, alguns deles destacados entre os documentos em exposição.





 








Aventuras da percepção:  acima,
entrada principal da Maison Rouge, em
Paris, com instalações multicoloridas,
ópio no aroma do incenso e sensações
lisérgicas provocadas por peças exclusivas
de design e pelas obras da exposição
Sob influência. Acima, três cartazes em
homenagem a Timothy Leary, um dos
mentores do LSD, com arte do músico e
performer multimídia francês Jaïs Elalouf.
Abaixo, Sans titre, escultura em tubos de
PVC de 2007 de Vincent Mauger




.


Psicofármacos e êxtase, pesquisa estética



"Os artistas, que sempre permanecem em busca de novas formas de criação, de transgressões, de estímulos, de caminhos para a imaginação, nunca estiveram alheios à descoberta dos efeitos das mais variadas experiências, inclusive a transgressão das drogas", reconhece Perpère. Para ressaltar os fundamentos da exposição, ele alerta sobre um necessário juízo de valor, uma vez que a proposta da curadoria foi traduzir, transcrever e documentar determinadas experiências de artistas a partir de substâncias psicotrópicas, antigas e novas, na tentativa de permitir que cada indivíduo perceba a complexidade constante de seus efeitos.

O artista não é um drogado como qualquer outro porque o artista tem a preocupação de traduzir e transmitir o que vivenciou ao estar sob aquela influência", afirma o curador. Perpère enumera algumas questões conceituais sobre o “corpus”, antes de concluir a breve apresentação com um alerta: segundo o curador, a exposição, inédita e ousada, não tem por objetivo fazer julgamentos morais e muito menos apologia das drogas, mas sim buscar a reflexão e um melhor entendimento sobre as conexões entre processos criativos e o uso instrumental de substâncias psicoativas.

Entre os artistas reunidos em “Sous Influences” estão desde expoentes das vanguardas do começo do século 20, como Francis Picabia, Antonin Artaud e Jean Cocteau, até nomes contemporâneos como o grafiteiro e pintor Jean-Michel Basquiat, o cineasta Larry Clark, os fotógrafos Nan Goldin e Irving Penn, o pioneiro da arte multimídia Nam June Paik e também seu discípulo Takashi Marakami, entre outros, além de Damien Hirst, o multimilionário e supervalorizado inventor de instalações bizarras e polêmicas que ganharam a mídia na última década – com suas esculturas hiperrealistas de casais em mirabolâncias sexuais e urnas de vidro transparente com tubarões, vacas e ovelhas reais flutuando em formol.













Aventuras da percepção: no alto,
L'Aspirine c'est le champagne du matin,
instalação criada em 2009 em lâmpadas de
LED e alumínio pela francesa Jeanne
Suspuglas. Acima e abaixo, Dots Obsession
(Infinity Mirrored Room), 1998 
(Obsessão pelas bolinhas no infinito
quarto espelhado), instalação psicodélica
com espelhos, luzes e formas infláveis de
plástico flutuantes que simulam o infinito,
uma criação da arquiteta e artista plástica
japonesa Yayoi Kusama








Nesta exposição em Paris, Hirst surpreende mais uma vez com uma obra inédita, cifrada e complexa, simples apenas na aparência: batizada de “A Última Ceia”, pode ser descrita como uma série de serigrafias emuldoradas e dependuradas em uma parede. O que Damien Hirst faz é substituir as figuras de Jesus Cristo e seus 12 apóstolos por embalagens de remédios, cujos nomes foram trocadas por marcas de alimentos típicos da Inglaterra, como batatas, tomates, salsicha e feijão. Com isso, põe em destaque a denúncia sobre o peso que medicamentos controlados têm na vida cotidiana de milhões e milhões de pessoas.



Oiticica: anarquista, concretista, tropicalista



Mas Damien Hirst não é o maior destaque nem o mais ousado entre os artistas reunidos na exposição pioneira em Paris. Um dos que roubaram a cena e provocaram sensação na imprensa internacional, na abertura da exposição, foi o brasileiro Hélio Oiticica (1937–1980) , único latino-americano selecionado para a mostra. Apontado como “anarquista e atualíssimo” pela curadoria, pioneiro da Arte Concreta, do Neo-Concretismo e do Tropicalismo, iconoclasta e teórico, Oiticica está presente em “Sous Influences” com uma de suas intervenções incendiárias e incomuns nas proposições de suporte: a obra “Quasi-Cinema 02.CC5”, desenvolvida em 1973 para a série “Cosmococa”.











    Aventuras da percepção: no alto,
    Last Supper (2013), a “ última ceia”
    em instalação com serigrafias de
    Damien Hirst, que substituiu as
    imagens de Cristo e seus 12
    apóstolos por embalagens de
    remédios com nomes de marcas
    de alimentos típicos da Inglaterra.
    Acima, o brasileiro Hélio Oiticica no
    ateliê, no Rio de Janeiro, e a imagem
    de Jimi Hendrix na incendiária
    Quasi-Cinema 02.CC5, instalação
    que Oiticica desenvolveu em 1973
    para a série Cosmococa, agora em
    destaque na mostra da Maison Rouge.

    Abaixo, duas fotografias selecionadas de
    1998 de Michel François, "Petite fille
    et boteille"  e "L. a la datura"; três grafites
    de Ernest Pignon fotografados nas ruas de
    Paris em homenagem a Arthur Rimbaud;
    e um breve registro em vídeo sobre
    as obras e instalações da exposição


      

     
















Hélio Oiticica, sempre lembrado por seus “Parangolés”, alegorias pontuadas de enigmas para vestir, questionador e indiferente a estilos e modismos, traduz o universo e a mística das drogas ilícitas através da distorção sobre uma imagem conhecida de um dos heróis da era do rock. Em direções opostas das previsíveis variações cromáticas chapadas de seu contemporâneo Andy Warhol, com quem conviveu durante vários períodos em Nova York, na década de 1970 – a intervenção de Oiticica questiona não a percepção das cores, mas o sentido das coisas: sua instalação fica em cima de uma mesa tradicional de madeira que tem, sobre os traços do rosto de Jimi Hendrix, linhas de pó branco, utilizando a capa do disco “War Heroes” como bandeja e, sob a capa, uma folha de papel alumínio.

Warhol, aliás, é uma das ausências sensíveis em “Sous Influences” – lembrado apenas indiretamente por citações ou por obras de seus pupilos e discípulos selecionados, certamente deixado de fora por conta das dificuldades burocráticas para a exibição de suas obras originais ou de réplicas em suportes variados. Mesmo considerando uma ou outra ausência sensível pelas afinidades do tema abordado, pelo que se vê nas imagens de divulgação e no “dossiê de imprensa” (veja links para visita virtual à mostra na Maison Rouge no final deste artigo), a curadoria teve o cuidado de reservar detalhes que podem levar o visitante à imersão em uma autêntica experiência psicodélica, com ambientes que aguçam por contraste todos os sentidos, em roteiros com iluminação surpreendente, pontuados de belas e estranhas imagens, acordes de música suave, ruídos intrigantes e até aromas simultâneos.








    Aventuras da percepção: no alto,
    pílulas e comprimidos diversos,
    agulhas, fragmentos de radiografias,
    acrílico e resina sobre madeira na
    instalação Gravity's Rainbow Small
    (Arco-íris de pequena gravidade),
    trabalho de 1998 do norte-americano
    Fred Tomaselli. Acima, artista islandês
    Erró, colaborador de Björk, compara
    seringa usada por viciados a arma
    poderosa em Dáileog 2013 (Uma dose),
    painel de 1,70cm de altura em diversas
    técnicas, inspirado em personagens e
    design de histórias em quadrinhos.

    Abaixo, Autorretratos: o primeiro de
    Antonin Artaud, ator, dramaturgo, poeta,
    escritor, artista plástico, anarquista e
    dissidente do movimento surrealista,
    com obra em giz e carvão sobre papel,
    de 1947; o segundo, pintura
    em óleo sobre tela de 1939 do polonês
    Stanislaw Ignacy Witkiewicz, também
    dramaturgo, romancista, pintor,
    fotógrafo, filósofo da arte e antropólogo,
    que foi oficial do Exército Russo durante
    Primeira Guerra Mundial. Tanto Artaud
    como Witkiewicz, com suas experiência
    na arte e na literatura, traduzem e
    simbolizam os efeitos das
    drogas psicotrópicas e alucinógenas
    sobre as sensações táteis e visuais








O visitante encontra, a partir da entrada da galeria principal da Maison Rouge, decoração e objetos em cores contrastantes, espelhos estrategicamente posicionados para provocar sensações de duplicidade ou vertigem, incensos que simulam cheiro de ópio e uma instalação lisérgica em Optical Art, do artista belga Carsten Höller, nomeada como "Swinging Corridor" (Corredor flutuante), criada em 2005 e reconstruída para o espaço de acesso à exposição, que leva o observador a acreditar que as paredes estão tremendo e em ligeiros movimentos contínuos. Os relatos do público indicam o efeito alcançado: segundo a curadoria, a maioria dos entrevistados na saída da instalação diz, muito surpresa, que chegou a sentir de forma nítida os efeitos da embriaguez e de outras viagens alucinógenas.












Aventuras da percepção: presença
do fotógrafo Irving Penn na mostra
Sous Influence, com duas imagens
da série fotográfica Mégots, de 1974,
com resíduos e pontas de cigarro
e de marijuana elevados ao status
de obra de arte. No alto, Dessin sous
l’influence du haschich (1853), do
médico Jean-Martin Charcot,
que foi professor de Freud.

Abaixo, reconstituição de uma instalação
da década de 1960 do artista e cineasta
francês Daniel Pommereulle, nomeada
como Objetos de tentação, com uma mesa
de mármore cheia de drogas e objetos
usados para consumi-las







Além de obras-primas de vários momentos da História da Arte, a mostra em Paris também reúne objetos raros, como uma seleção de equipamentos utilizados através nos tempos nas práticas de Farmacologia. Nesta seção, são especialmente enigmáticos os desenhos da série a nanquim feitos “sob a influência de haxixe”, a partir de 1853, por um dos nomes de destaque no Panteão das Ciências: Jean-Martin Charcot (1825–1893), célebre médico e cientista francês, autor de importantes contribuições para o conhecimentos de diversas doenças e síndromes, pioneiro da psiquiatria e professor de alunos que se tornariam referência até nossos dias, entre eles Sigmund Freud, Joseph Babinski e James Parkinson, entre vários outros.



Cenas e imagens de impacto



Na mesma seção da exposição, há também uma grande sala com fotografias e réplicas de objetos usados para o consumo de drogas no mundo inteiro – com destaque para a instalação de equipamentos de experiências sociais realizadas no decorrer do século 20 e na atualidade em países europeus como Suíça, Dinamarca, Holanda e outros, que têm espaços autorizados e livres com infraestrutura para viciados e dependentes químicos.








    Aventuras da percepção: fotografia
    e cinema na exposição sobre arte e
    drogas da Maison Rouge, com Fix,
    de 2012 (no alto), do fotógrafo espanhol
    Alberto Garcia-Alix. A palavra “Fix”
    escrita na parede é uma gíria usada
    para “dose de droga”, normalmente
    injetada. Acima, Le Poète Exhale
     (O poeta exala), fotografia de 1959
    de Lucien Clergue que retrata
     Jean Cocteau, ativista cultural,
    cineasta, poeta, escritor, dramaturgo,
    artista plástico, diretor de teatro e ator.

    Abaixo, Jean Cocteau fotografado em
    1922 por Man Ray; um retrato de Jean Cocteau
    e Jean Marais, fotografados em 1939 por
    Cecil Beaton; e Jean Marais em
    cena de Orfeé, filme de 1950 de
    Cocteau. Viciado em ópio e álcool,
    Cocteau retratou as alterações dos sentidos
    da percepção provocadas pelos alucinógenos
    em diversos trabalhos, entre eles o célebre
    poema Ópium, de 1930, escrito e
    ilustrado “sob influência”








  



Entre tanta obra surpreendente em exposição, uma das séries mais inusitadas são os autorretratos do norte-americano Bryan Lewis Saunder, todos declaradamente criados sobre efeito de drogas – com seu uso minucioso desde 1995 de pelos menos uma substância diferente a cada dia, ou a cada autorretrato, inspirado pelas variações e misturas mais escatológicas, de molhos absurdamente picantes a álcool, chás alucinógenos, cristais de metanfetamina, maconha, ópio, haxixe, cocaína e os mais diversos medicamentos “legais”.

Viagens com anfetaminas, LSD e tudo o mais também são traduzidas por diversos outros, inclusive em autorretratos – caso das duas séries de homenagens ao lendário Timothy Leary, professor de Harvard, ícone maior dos anos 1960, um dos mentores do LSD. Leary e o LSD são inspiração para os cartazes do artista multimídia francês Jaïs Elalouf e para as pinturas surrealistas do austríaco Arnulf Rainer, “Faces Farces”, autorretratos após o artista ter passado por alucinações com misturas de ácidos. Rainer, há alguns anos, foi ele mesmo objeto de estudos por especialistas, tendo participado de um programa de pesquisa científica da Universade de Lausanne sobre os efeitos do uso de drogas como o LSD. 









    Aventuras da percepção: três imagens
    de Faces Farces, uma sequência de
    autorretratos do fotógrafo e pintor
    austríaco Arnulf Rainer, todos feitos
    sob influência, depois de alucinações
    provocadas por experiências com LSD.
     Abaixo, uma serigrafia da série de 1987
    American Express, do artista francês
    Raymond Hains, que reconstituiu imagens
    para demonstrar o efeito de distorções da
    visão após o consumo de LSD e ácidos





O efeito infinito



Experiências com ácidos, anfetaminas e alucinógenos também fornecem o ambiente e a pesquisa de materiais e formas para a arquiteta e designer japonesa Yayoi Kusama. A partir de suas próprias viagens, registradas em um “diário eletrônico”, Yayoi Kusama deu início às pinturas e desenhos minimalistas que se repetem na estamparia que cobre suas instalações de labirintos – cenários onde o visitante pode penetrar e que parecem saídos de um parque de diversões do futuro, com luzes, espelhos e estruturas psicodélicas que simulam o infinito.

Entre as fotografias, há muitas imagens fortes – mas as de maior impacto por certo vem de Larry Clark, conhecido no mundo inteiro desde o cruel e realista “Kids” (1995), que mostra em tom de documentário o cotidiano de adolescentes às voltas com skates, Aids e todo tipo de uso diversional de drogas. Na exposição, Larry Clark apresenta uma série documental em sépia e preto e branco sobre viciados e suas práticas nos Estados Unidos – entre eles uma grávida injetando heroína.

O visitante também tem à disposição muitos filmes e peças de videoarte exibidos em grandes telões de alta definição. “Filmes e vídeos em suportes variados desempenham um papel especialmente importante nesta exposição”, explica Antoine Perpère, lembrando que só através do registro audiovisual é possível reconstituir experiências efêmeras e em alguns casos transcendentais, místicas, como as performances de Isadora Duncan, Artaud, o cinema poético e surrealista de Jean Cocteau, as performances contemporâneas de criação coletiva. 











     

     Aventuras da percepção: acima, três

    autorretratos em técnicas diversas pelo

    norte-americano Bryan Lewis Saunders,

    que desde 1995 realiza pelo menos um

    autorretrato por dia depois de fazer

    “experiências” com os mais diversos tipos

    de drogas e medicamentos. A partir do

    alto, as telas batizadas de Marijuana;

    ½ Gramme cocaine; e Nature.

    Abaixo, Morphine








Nas palavras do curador, o potencial do audiovisual surge como uma atualização das experiências ancestrais do Shaman – o curandeiro que viaja em espírito a outra dimensão e retorna para contar o que aprendeu para seus pares na tribo. No caso dos registros em exposição, filmes e peças em videoarte parecem permitir um melhor entendimento sobre a própria produção em artes plásticas, especialmente nos casos selecionados, em que se pode acompanhar desde tentativas iniciais de criação e transcrição pelo artista até a possibilidade de reconstituir, a partir da obra final. os processos de determinadas intuições ou percepções.

Antoine Perpère também alerta sobre a urgência da sociedade discutir a questão do uso diversional e medicinal de substâncias atualmente consideradas drogas lícitas ou ilícitas. “O que posso dizer é que tudo indica que guerra às drogas não funciona. Sou a favor da descriminalização do uso de drogas”, reconhece o curador. Seu argumento principal: na História da Civilização, as experiências com psicoativos não têm nada de novo. Vêm de séculos e, em alguns casos, milênios. Sem contar que substâncias como café, tabaco, álcool e tantas outras, hoje consumidas normalmente em larga escala, no mundo inteiro, um dia também já foram proibidas e consideradas ilícitas.


por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Aventuras da percepção. In: Blog Semióticas, 1° de abril de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/04/aventuras-da-percepcao.html (acessado em .../.../...).


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