Bob Dylan e outros heróis da galeria do rock'n'roll têm sempre lugar marcado em todos os noticiários. Agora Mister Tambourine voltou a ser notícia e destaque nas redes sociais da internet por conta da confirmação do Brasil na rota da “turnê que nunca acaba” (Never Ending Tour), com shows anunciados para o Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. Será a quinta vez que o legendário cantor e compositor da era do rock, mentor de algumas das principais canções de protesto e hinos da contracultura, além de escritor e pintor, se apresentará no Brasil. A estreia em palcos brasileiros foi em 1990, com Bob Dylan retornando depois em 1991, em 1998, em 2008 e em 2012.
Além de incluir com frequência o país do carnaval nas turnês, Bob Dylan sempre declarou que é um admirador do Brasil e da cultura brasileira e também visitou muitas vezes o Brasil no anonimato. Recentemente, o músico fez um tributo aos cenários brasileiros que rendeu destaque no mundo inteiro: Dylan, que tem investido cada vez mais em trabalhos nas artes plásticas, iniciados na década de 1960, apresentou a nova série, intitulada "Brazil Series", em Copenhagen, Dinamarca, no Statens Museum for Kunst. A coleção do artista Bob Dylan, que reuniu 40 quadros pintados em óleo sobre tela e em acrílico, e oito desenhos em técnica mista sobre papel, está em exposição permanente em uma galeria do museu da Dinamarca e foi publicada em um catálogo de luxo pela editora Prestel.
As imagens da coleção em que Bob Dylan tenta traduzir cenas do Brasil e as pessoas anônimas que encontrou durante suas estadias por aqui, mostram paisagens da vida cotidiana nas cidades, além de cenas das favelas e das matas com sinais evidentes de devastação. O músico gosta de perambular com frequência sozinho e disfarçado pelas ruas das cidades em que apresenta seus shows no Brasil e, pelo que ele comenta nas raras entrevistas que concede, tem grandes amigos por aqui de longa data, incluindo pessoas desconhecidas do público e também cantores e compositores, entre eles Toquinho e Caetano Veloso, e o jornalista e historiador Eduardo Bueno.
Acima e abaixo,
Bob Dylan no palco, no Rod Laver Arena,
em Melbourne, Austrália, em abril de
2011, na temporada de shows batizada com o nome sugestivo
de
The Never Ending Tour (A turnê que
nunca
termina). No alto, Bob Dylan nas
artes
plásticas com seu autorretrato e com
as
pinturas da série dedicada ao Brasil em exposição no museu da Dinamarca.
Também abaixo, duas imagens que marcaram
época: na primeira, Bob Dylan diante da multidão
no Estádio de Wembley, Inglaterra, em 1984,
fotografado por Michael Putland; na segunda,
que virou capa de álbuns de suas coletâneas
de sucessos, fotografado também na
Inglaterra por Barry Feinstein
durante
a lendária turnê pela Europa
em 1966
No livro “Verdade Tropical” (Companhia das Letras, 1997), Caetano afirma que foi através de Toquinho, parceiro de Vinicius de Moraes, que ele conheceu ainda nos anos 1960 as canções de Bob Dylan, de quem há alguns anos passou a ser amigo. “Achei curiosa a voz fanha e o jeito sujo de tocar violão e gaita”, recorda Caetano, que já gravou duas músicas de Bob Dylan: “Jokerman”, em “Circuladô Vivo”, de 1992, e “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, em "A Foreign Sound”, de 2004.
Amigos brasileiros
“It’s Alright, Ma”, na versão original, está em “Bringing It All Back Home”, de 1965, um dos anunciados favoritos de Caetano, que registra no livro: “É este o disco de Dylan que mais me emociona”. Caetano também dividiu nos anos 1970 com Péricles Cavalcanti a autoria da mais conhecida das versões de Dylan em português: “Negro Amor”, escrita a partir de “It’s All Over Now, Baby Blue”, que foi gravada primeiro por Gal Costa em 1977.
No seleto grupo de brasileiros entre os amigos de Bob Dylan também estão, entre outros, o baiano Gilberto Gil, o pernambucano Naná Vasconcelos (que já atuou como percussionista em álbuns de estúdio de Dylan e em shows) e o gaúcho Eduardo Bueno, que acompanhou o músico em duas de suas visitas sem agenda de shows por cidades brasileiras, em 1990 e 1991. Entrevistei Bueno por telefone em 2003, quando ele estava lançando “Brasil: uma História: a Incrível Saga de um País” (Editora Ática), que se tornaria best-seller. Ele confessou a paixão desmedida por seu ídolo e afirmou que se considera um dos maiores “dylanófilos” do planeta. Segundo Bueno, tudo começou em 1975, quando, aos 17 anos, ouviu pela primeira vez o álbum “Before the Flood” e sua música predileta, “Like a Rolling Stone”.
Bueno também disse que até aquela data, em 2003, teve a sorte de assistir a mais de 100 shows de Dylan, sendo que em pelo menos 70 deles com presença privilegiada no backstage. “Like a Rolling Stone é a melhor e mais importante canção já composta na história do rock”, justificou Bueno – que assinou o posfácio e a tradução da edição brasileira de “Crônicas” (editora Planeta, 2005), o primeiro volume da trilogia autobiográfica de Dylan.
Na entrevista, ele comentou suas melhores lembranças de quando acompanhou as viagens do músico pelo Brasil, convidado por Victor Maymudes, que gerenciava toda a infraestrutura da turnê de estreia de Bob Dylan no Brasil. O roteiro das viagens de Dylan, segundo Bueno, incluiu entre outras cidades Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. "Sei que ele também já visitou várias vezes a serra gaúcha, o parque das Agulhas Negras e Ilha Grande, entre muitos outros lugares do Brasil, sem que ninguém o reconhecesse”.
Bueno recorda que Dylan também presenciou cenas fortes nas ruas brasileiras, mas nem por isso parece ter ficado nada amedrontado. “Logo depois que o conheci, em 1990, quando fomos apresentados por Victor Maymudes, seu empresário no Brasil, estávamos passeando por alguns 'points' da noite paulistana e vimos um homem ser baleado no meio da rua, na Barão de Itapetininga, em São Paulo. Em seguida, no Rio de Janeiro, ele tentou ir a pé do hotel para o show, mas de tanto ser alertado pelos seguranças sobre os perigos, acabou desistindo”.
Robert
Allen Zimmerman: acima, no álbum
de família,
fotografado aos 19 anos, em 1960.
No
ano seguinte, ele abandona a universidade
e
se muda de Minneapolis para Nova York,
com
a esperança de encontrar seu ídolo musical,
Woody
Guthrie. Em Nova York, adotou o nome
artístico de Bob Dylan, em
homenagem ao poeta
Dylan Thomas, e
passava as noites tocando
gaita e cantando em
pequenos bares do bairro
boêmio de Greenwich
Village. Sua habilidade
musical e
as letras de suas canções chamaram a
atenção
do conhecido produtor de jazz
John
H. Hammond, que em 1962 lançaria
o
primeiro LP de Bob Dylan pela Columbia
Records.
O sucesso viria somente com o segundo
LP, The Freewheelin', de 1963, que trazia
canções como Blowin' in the Wind e, na capa,
em fotografia de Don Hunstein, o músico com
Suze
Rotolo, na época sua namorada, com quem
Dylan viveu de 1961 a 1964, e que exerceu
forte
influência em suas primeiras composições.
Também
abaixo, com outra namorada, a cantora
e
compositora Joan Baez, fotografados em 1965
por David
Gahr. O namoro com Joan Baez
terminou
no ano seguinte, mas continuaram amigos
e
fizeram, juntos, turnês e gravações em estúdio
nos
anos seguintes. Abaixo, em preto e branco,
Bob
Dylan em Paris, 1966, durante a turnê
pela
Europa, fotografado por Barry Feinstein
Nas palavras de Eduardo Bueno, Bob Dylan é um daqueles caras cheios de manias. “Se tem uma coisa que ele gosta de fazer é andar a esmo pelas cidades. Não pergunta nada, sai andando. Ele parece não ter medo de nada e vai entrando em qualquer bocada. Em geral tinha pelo menos um segurança atrás, a uns dez metros. Tem muitas manias esquisitas, mas é genial. De todo mundo que eu já conheci na vida, Dylan é o mais difícil de definir. É um cara enigmático que prefere lavar ele mesmo suas próprias roupas nos quartos de hotel, é um cara inconstante e, às vezes, chega até a ser gentil, quando menos se espera".
Estudos biográficos
Com o reforço provocado pela turnê no Brasil, o que não faltam nas lojas são CDs e DVDs de Bob Dylan, que também está nos jornais e nas capas de revistas. Há também muitos livros, incluindo alguns escritos por ele mesmo. Entre os destaques na extensa lista de publicações estão duas preciosidades biográficas: “No Direction Home”, de Robert Shelton, e "Bob Dylan – Gravações Comentadas & Discografia Completa", de Brian Hinton. Os dois livros, lançados pela editora Larousse do Brasil, são considerados os mais completos estudos biográficos da carreira de Dylan.
Mais do que um biógrafo, o ex-crítico musical do The New York Times, Robert Shelton, que morreu em 1995, foi talvez o maior amigo e confidente do artista. Os dois se conheceram em 1961, quando Dylan falou pela primeira vez à imprensa após um show no Gerde’s Folk City, reduto boêmio do Greenwich Village, em Nova York. Dali por diante, viraram “amigos de infância”. “A biografia de Shelton continua a ser a única escrita com a colaboração de Dylan”, explica Elizabeth Thomson, que divide com Patrick Humphries a edição revista, atualizada e ampliada de “No Direction Home”.
O outro estudo biográfico, "Bob Dylan – Gravações Comentadas & Discografia Completa", integra a mesma coleção que já tem livros sobre os Beatles e os Rolling Stones. É uma bela obra de referência, completa e irrepreensível, sobre o artista nascido Robert Allen Zimmerman no estado norte-americano de Minnesota, neto de imigrantes judeus russos e que, diz a lenda, aprendeu sozinho a tocar piano e guitarra. Sobre a escolha do nome artístico, adotado a partir de 1959, ele próprio confessa, no primeiro volume de “Crônicas”, que foi uma homenagem a um de seus ídolos, o lendário poeta galês Dylan Thomas (1914-1953):
"Eu havia visto alguns poemas de Dylan Thomas. A pronúncia de Dylan e Allyn era parecida. Robert Dylan. A letra D tinha mais força. Entretanto, o nome Robert Dylan não era tão atraente como Robert Allyn. As pessoas sempre haviam me chamado de Robert ou Bobby, mas Bobby Dylan me parecia vulgar, e além disso já havia Bobby Darin, Bobby Vee, Bobby Rydell, Bobby Neely e muitos outros Bobbies. Mas aí aconteceu. A primeira vez que me perguntaram meu nome em Saint Paul, instintiva e automaticamente soltei: Bob Dylan".
Trajetória surpreendente
Às
vésperas de completar 71 anos (em 24 de maio), o cantor e compositor
mantém a plena força criativa que influencia gerações e gerações
pelo mundo afora, desde o inícios dos anos 1960. Além das histórias
saborosas por trás de cada canção, o biógrafo Brian Hinton reúne
informações minuciosas para deleite de fãs e pesquisadores, como
datas de lançamento, encartes, fotografias, produtores, versões
alternativas, arranjos, desavenças entre os músicos e sobras de
estúdio.
E
não é apenas uma avaliação de Brian Hinton: a maioria dos
biógrafos são unânimes em destacar a importância inquestionável
de Bob Dylan em várias frentes, da música à militância política
de esquerda. Como cantor, ele redefiniu o papel do vocalista. Como
músico e compositor, sua "petulância" foi muito além de
gêneros como o rock, o pop, o blues, o folk ou o country, com
canções que se tornaram trilha sonora de muitas histórias e
influenciam há 50 anos o estilo e as opiniões de muitos músicos e fãs.
Música
em cores fortes: a partir do alto, a capa e páginas da biografia escrita por Robert Shelton, com o artista em Nova York nos anos 1970 em foto de Lynn Goldsmith, e a capa do catálogo que reúne as gravações completas e comentadas. Nas imagens do alto e acima, Bob
Dylan em sua casa de
campo em Byrdcliffe, lugarejo próximo a
Woodstock, em 1965 e 1968, em
fotografias de por Elliot Landy.
Abaixo: 1) a fotografia que o próprio
Bob Dylan aponta como sua preferida,
registrada no camarim, em New Haven,
Connecticut (EUA), em novembro de
1975 por Ken Regan; 2) Bob Dylan em outro
flagrante registrado por Ken
Regan em 13 de
julho de 1985, nos bastidores do show
beneficente Live
Aidno JFK Stadium na
Philadelphia, Pennsylvania (EUA), com o
raro
encontro comKeith Richards, a dupla
Daryl Hall e John Oates, Ron
Wood,
Tina Turner, Mick Jagger e Madonna;
3) em três imagens marcantes registradas
em 1966 por Barry
Feinstein: no estúdio
em Nova York;
durante a turnê em Paris;
e em visita à Factoryde
Andy Warhol,
também em Nova York; 4) na capa de sua
primeira coletânea de grandes sucessos, em
imagem criada em 1967 pelo designer
Milton Glaser; e 5) na capa de "Desire",
seu 17° álbum de estúdio, lançado em 1976.
No
final deste artigo, três gravações de
canções de
Bob Dylan em versões
nacionais interpretadas por
Zé
Ramalho (“Tá tudo mudando”),
Gal
Costa (“Negro amor”) e
Caetano Veloso (“Jokerman”)
Enquanto mergulha na trajetória surpreendente de um dos nomes fundamentais da história da música, o leitor atento pode saborear uma aula divertida sobre os percalços da indústria cultural de nossos dias. Com 56 álbuns lançados desde a estreia – com "Bob Dylan", de 1962, totalmente dedicado ao folk mais tradicional – o cantor e compositor sempre se destacou pela ousadia e pelo pioneirismo que aponta em várias direções.
O livro de Robert Shelton por certo é mais divertido, recheado de histórias de bastidores e anedotas impagáveis, mas o estudo de Brian Hinton, que publicou biografias consideradas definitivas de nomes como Van Morrison, Joni Mitchell e Elvis Costello, vai fundo nos detalhes sobre a obra do compositor de canções como "Like a Rolling Stone" – como lembrou Eduardo Bueno, o clássico dos clássicos da era do rock, listado em primeiro lugar entre as 500 melhores músicas da história, segundo a revista "Rolling Stone".
Hinton também é sábio no juízo de valor sobre a trajetória do artista ao apontar alguns dos aspectos que confirmam a importância inquestionável de Dylan. O biógrafo destaca que, como cantor, Dylan redefiniu o papel do vocalista. Como músicoe compositor, sua "petulância" foi muito além de gêneros como o rock, o pop, o blues, o folk ou o country, com canções que se tornaram trilha sonora de muitas histórias e influenciam há 50 anos o estilo e o conteúdo de muitos em muitos países dos cinco continentes.
Bob Dylan segundo Zé Ramalho
Mesmo sem constar da lista privilegiada de amigos brasileiros do músico norte-americano, Zé Ramalho sempre foi associado a Bob Dylan por suas letras messiânicas e seu tom politizado de fazer música. Em 2008, o "parentesco" foi realçado com "Zé Ramalho Canta Bob Dylan - Tá Tudo Mudando" (EMI), CD e DVD produzidos por Robertinho do Recife (parceiro de longa data), e que reúnem canções de Dylan, sucessos dos anos 1960 e 1970, reinventadas pelo paraibano.
As mais conhecidas letras e melodias de Dylan ganharam equivalentes fieis e inspirados em português, além de arranjos que trazem os standards da galeria do rock para o universo da MPB e da música nordestina de repentistas e rabequeiros. Clássicos como "Like a Rolling Stone" ("Como uma Pedra a Rolar") e "Blowin' in the Wind" ("O Vento Vai Responder") incorporam novas sonoridades que lembram xotes, forrós e baiões.
"Like a Rolling Stone" é conhecida no Brasil de outros carnavais: teve uma versão em português de sucesso na década de 1970, gravada por Diana Pequeno, e volta e meia surge cantarolada, em sua versão original, pelo senador Eduardo Suplicy no Congresso e em outras ocasiões públicas. Dos mais de 50 álbuns lançados por Dylan, Zé Ramalho elege três – “Blood On The Tracks”, “Desire” e “Slow Train Coming”, todos da década de 1970 – como os seus prediletos.
Em 30 anos de carreira, o compositor de "Admirável Gado Novo" e "Chão de Giz" continua a surpreender. No ano 2000, lançou "Nação Nordestina", álbum com belas canções inéditas e uma capa surpreendente (imagem abaixo), paródia para a capa do antológico "Sgt. Pepper's" dos Beatles. Em 2001, reinventou sua própria trajetória ao lançar o CD de estreia do projeto "Zé Ramalho canta...", com releituras de Raul Seixas. Depois viriam o também surpreendente “Zé Ramalho canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando” (EMI, 2008), seguido por “Zé Ramalho canta Luiz Gonzaga” (Discobertas/Sony, 2009), mais “Zé Ramalho canta Jackson do Pandeiro” (Discobertas/Sony, 2010) e “Zé Ramalho canta Beatles” (Discobertas/Sony, 2011).
Hurricane: Frevoador
Quanto a Bob Dylan, não é a primeira vez que ele foi traduzido por Zé Ramalho – que há mais de duas décadas já havia gravado "Blowin'in the Wind" ("O Vento Vai Responder") e "Knocking on Heaven's Door" ("Batendo na Porta do Céu"), além de "Hurricane" (que, traduzida como "Frevoador", foi a faixa-título do CD de 1992). Zé Ramalho também recupera a beleza de "Negro Amor", versão de Caetano e Péricles Cavalcanti para "It's All Over Now, Baby Blue", lançada por Gal Costa e regravada por Toni Platão, Zé Geraldo, Paulo Ricardo e Engenheiros do Hawaii, entre outros.
Com sua voz única, cavernosa e apocalíptica, Zé Ramalho junta sonoridades nordestinas para surpreender quem espera um mero disco de versões. Inteligente e criativo, o artista foge do óbvio e busca músicas não tão famosas de seu ídolo, como o caso de "Man Give Name To All Animals", que virou "O Homem Deu Nome a Todos os Animais" – canção que também também ganhou outras duas versões bastante diferentes entre si, uma recente, gravada por Adriana Calcanhotto, e outra na década de 1980, gravada por Ruy Maurity. A única faixa que Zé Ramalho não verteu ao português foi "If Not For You", mas, em compensação, recriou a música, indo ao extremo nos ritmos populares do Nordeste brasileiro.
Uma exceção entre as mais antigas é "Tá Tudo Mudando", faixa-título do CD e do DVD, versão de "Things Have Changed", da trilha do filme "Garotos Incríveis" (2000), de Curtis Hanson, que rendeu um Oscar a Dylan. A versão tem assinatura de Maurício Baia e Gabriel Moura, carioca identificado com o samba. Baia é colaborador de Zé Ramalho também em "Tombstone Blues", transformada em "Rock Feelingood".
Outra boa surpresa é a versão para a instrumental "Wigwam" - que virou "Para Dylan". A letra diz: "Eu te vejo assim como uma vela que acende/ Ou como disse Elton John/ 'Like a candle in the wind". Na capa do CD e DVD, Zé Ramalho posa com um cartaz, em referência ao clipe de Dylan para "Subterranean Homesick Blues" – mais um cuidado da produção que vai agradar tanto aos fãs de Dylan quanto ao público de Zé Ramalho. É um belo disco, que mantém a verve autoral do cantor e compositor sem se afastar do universo nordestino que desde o disco de estreia, em 1978, norteia sua carreira e discografia.
Além de “Zé Ramalho canta Bob Dylan”, outro tributo feito no Brasil merece muita atenção dos fãs de Mister Tambourine: o quinto volume da série em CD "Letra & Música", lançamento do selo Discobertas, que é dedicado ao cantor e compositor. São 14 faixas que trazem as melhores gravações feitas ao longo das últimas décadas.
Entre as canções selecionadas, há regravações e versões inéditas das canções de Dylan por Caetano Veloso (“Jokerman”), Gal Costa (“Negro Amor”), Evandro Mesquita ("Knockin'on Heaven's Door"), Renato Russo ("If You See Him Say Hello"), Mallu Magallhães ("It Ain't Me Babe")e Ruy Maurity (“Batismo dos Bichos / Man Gave Name To All Animals”), entre outros. Se por acaso ouvir o tributo de Zé Ramalho ou a coletânea de versões selecionadas para o CD "Letra & Música", mister Bob Dylan por certo vai aprovar, sem nenhuma ressalva.
tessitura
única, quente como um pôr-do-sol tropical.
–– Tad
Hendrickson.
O que impressiona, no primeiro momento, é a cadência rítmica mais lenta, as texturas sonoras estranhas, os arranjos de instrumentos que lembram o fado português, mas também lembram os clássicos do jazz da Louisiana, a música tradicional do Caribe e da velha guarda do samba do Brasil, o batuque dos rituais de dança e de celebração das tribos da África. Para o público brasileiro, a cena e a música podem parecer ainda mais estranhamente familiares: um grupo afinado e sorridente de músicos, todos negros, uma percussão suave, exótica, dançante e irresistível. Depois dos breves acordes iniciais, a velha senhora entra em cena e caminha, hesitante, descalça, para o centro do palco. A plateia do teatro aplaude com euforia.
A velha senhora também é negra, baixa estatura, mais gordinha, ou talvez "nutridinha", como ela entoa em um verso das canções que virão a seguir. Está vestida em tons escuros, de certa simplicidade, mas com indiscutível elegância e dignidade. Olhar humilde, alguma timidez, mas quando começa a cantar a voz encanta e evoca uma aura de respeito e sofisticação. Canta em português, com um sotaque de nuances indescritíveis, que misturam em sua voz personalíssima e triste, aqui e ali, uma ou outra palavra em francês, uma ou outra expressão que talvez venha dos dialetos africanos.
É Cesária Évora, rainha da morna, embaixadora da música de Cabo Verde, o pequeno arquipélago do Atlântico, na costa africana, que entoa dramática seus grandes sucessos – um repertório que além de mornas também reúne coladeiras, batuques e funanás, melodias e ritmos típicos de seu país, ao mesmo tempo próximos e distantes da música brasileira, da música de Portugal e de outros povos falantes da língua portuguesa, em seu parentesco que mistura alegria e melancolia com nostalgia e com sonoridades de outros lugares, outros continentes, outras tradições culturais.
Aos 70 anos, a diva dos pés descalços, como foi batizada pela imprensa da França, na década de 1980, morreu hoje em sua terra natal, três meses depois de seus músicos terem anunciado o fim de uma carreira de mais de 50 anos, por conta do estado de saúde que atingiu uma situação muito delicada. Em sua trajetória de mais de cinco décadas dedicadas à música e aos palcos de sua terra natal e de outros países, Cesária lançou 25 discos, entre originais, coletâneas, remixes celebrados pelos principais DJs em atividade e parcerias com outros artistas – entre eles Caetano Veloso e Marisa Monte. “Sôdade”, lançada na década de 1980, foi o maior de seus grandes sucessos e com o passar dos anos permanece como a música mais conhecida da cantora e compositora de Cabo Verde.
Performance parisiense
Além dos discos gravados em formatos de LPs e CDs, ela lançou dois belos DVDs: “Cesária Évora Live D'Amor” e “Live in Paris”. O primeiro, gravado em abril de 2004 no Le Grand Rex, um dos principais teatros de Paris, traz um registro à perfeição que, além da íntegra das 20 canções do repertório do show, inclui três bônus de primeira: um documentário com os bastidores da performance parisiense (que a acompanha do desembarque no aeroporto da capital da França à entrada em cena no teatro), outro com entrevistas e cenas das turnês pelos Estados Unidos, Japão e capitais da Europa, e “Mar del Canal”, um comovente videoclipe com ela e sua banda, produzido para o World Food Programme, fundo humanitário da ONU que atende crianças carentes e refugiados de guerra em 70 países.
O segundo, “Live in Paris”, de 2002, é mais modesto, com o registro do show em som direto. Foi gravado ao vivo no Zenith parisiense e inclui como bônus duas breves sequências: cenas da apresentação de Cize (como era chamada carinhosamente pelos amigos e pelos músicos que a acompanhavam desde os anos 1980) em Havana, Cuba, com participação especial dos remanescentes do Buena Vista Social Club, e da apresentação no mesmo ano no Brasil, onde a rainha da morna dividiu a cena com Marisa Monte.
No Brasil, ainda nos anos 1980, Caetano Veloso foi o primeiro a elogiar as mornas e coladeiras de Cesária Évora. Nos shows do final da década de 1980 e começo dos anos 1990, Caetano incluía “Sôdade”, “Angola” e “Petit Pays”, imitando o sotaque de Cize, quase incompreensível aos ouvidos brasileiros. Eu mesmo, assim como muitos dos fãs da cantora que conheço, temos que confessar que foi através de Caetano que chegamos à arte de Cesária Évora.
Caetano alardeava em entrevistas sua admiração por Cize, a diva que saiu da simplicidade do pequeno país no litoral africano para ganhar o mundo, apresentando-se sempre com os pés descalços em solidariedade às mulheres e crianças miseráveis de seu país. Os elogios de Caetano por certo contribuíram para que os discos de Cesária fossem lançados por aqui, com boas críticas e surpreendente sucesso de vendas.
Mornas, blues, boleros e MPB
Em cenas dos documentários incluídos como bônus em “Live D'Amor”, Cesária Évora fala com carinho do seu público – especialmente dos fãs apaixonados que conheceu no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e na França. Diz que canta porque não saberia fazer outra coisa na vida. Modéstia de uma artista genial, que comprova na performance gravada com a plateia do Le Grand Rex porque era considerada uma das presenças mais marcantes e poderosas da música contemporânea.
Sua arte cresceu em popularidade internacional especialmente a partir de 2004, quando bateu estrelas de primeira grandeza na mídia e conquistou o Grammy para melhor disco de “world music”. Sempre acompanhada pelos músicos de Cabo Verde, com quem trabalhava desde a gravação do primeiro disco na França, em 1988 (“La Diva aux Pieds Nus”), Cize mistura um aparente descompasso do fraseado com elaboradas harmonias acústicas de violões, cavaquinho, violino, acordeão, percussão e clarineta.
Os ritmos são uma diversidade. As canções do repertório vão desde a morna tradicional de Cabo Verde até o bolero, passando pelo blues norte-americano, com um toque de música do Caribe, alguma coisa do fado português e muito do samba-canção da velha guarda da melhor música popular brasileira. Sim: a música brasileira é o que Cesária Évora destaca como sua maior referência.
Quando no documentário de “Live D'Amor” um jornalista pergunta sobre Billie Holiday e outras possíveis influências do jazz, Cesária sorri, baixa os olhos, faz silêncio, tira uma longa baforada do cigarro, recusa e diz que não concorda com a comparação. Fala com carinho da música dos Estados Unidos, agradece o carinho do público que cultiva em vários países, mas diz que prefere ser comparada às vozes brasileiras, que desde a infância ouvia no rádio.
Quem conhece seus discos sabe que Cize sempre incluiu aqui e ali algum clássico do samba, caso de “Beijo Roubado”, de Adelino Moreira, sucesso dos anos 1950 na voz de Ângela Maria e destaque no repertório de “Live D'Amor”. “Negue” (“seu amor, seu carinho...”), do mesmo Adelino Moreira, é outra pérola da MPB que sempre esteve presente nos shows de Cesária, além de canções dos baianos Dorival Caymmi e Caetano Veloso.
Amor e liberdade
Impressiona o toque sentimental de profunda devoção, algo entre o transe místico e o cantarolar casual numa mesa de bar, registrada por uma edição sempre discreta nas imagens de “Live D'Amor”. Ao invés do ritmo alucinante de videoclipe de hip-hop, que vem contaminando as gravações ao vivo de qualquer gênero, as imagens do show no Le Grand Rex são contemplativas, quase nunca se afastam da bela performance em closes e um ou outro passeio das câmeras pelo palco, no momento dos poucos e inspirados solos do violinista Julián Corrales Subida ou do pianista Fernando Andrade, responsável há décadas pelos arranjos das canções de Cesária.
As mornas e os sambas cantados com a voz sentida de Cesária Évora são acompanhados quase sempre em coro pela plateia parisiense, especialmente “Nho Antone Escaderode”, “Nha Cancera ka Tem Medida”, “Angola” e “Sôdade” (“quem mostrava este caminho longe...”). Mesmo as então inéditas “Isolada” e “Velocidade” provocam comoção e passagens espontâneas com palmas ritmadas.
São canções inesquecíveis, depois que se ouve uma delas pela primeira vez, com atenção, com sons de cordas e percussão suave, pautadas com gentileza, talvez por isso distantes dos ritmos brasileiros mais dançantes. Falando de saudade, de amores errados e de sentimentos que mais separam do que unem as pessoas, a música de Cesária Évora, com seu sotaque carregado que constrói enigmas para outros falantes da mesma língua portuguesa, é daqueles casos que encantam.
Cantora de Mindelo
Cesária Joana Évora nasceu em agosto de 1941 em Mindelo, cidade portuária de São Vicente, uma das ilhas mais áridas, escarpadas e pobres do arquipélago de Cabo Verde, país formado por uma dúzia de pequenas ilhas montanhosas e quase sempre desérticas, de formação vulcânica, ao largo do Senegal, na costa da África no Atlântico. Descoberto em 1456, o arquipélago foi uma importante base de expansão marítima e do comércio colonial português, particularmente no tráfico de escravos.
Desde sua independência de Portugal, em 1975, entretanto, Cabo Verde tem enfrentado dificuldades econômicas as mais complicadas, motivo pelo qual se diz que a música de Cesária Évora é o principal produto de exportação daquele país, que sobrevive do cultivo de milho, café e processamento de pescado. As mornas e coladeiras que Cesária canta quase sempre tocam na história amarga e violenta da dominação portuguesa e do isolamento secular de Cabo Verde.
Na entrevista incluída em “Live D'Amor”, Cesária conta que nasceu em uma família de músicos e que canta desde a infância, em festas populares de sua terra-natal e em programas de rádio. Mas sua carreira ficou interrompida entre 1975 e 1985, quando parou de cantar para procurar trabalho em fábricas e no comércio fora de Cabo Verde.
Em 1985, a sorte sorriu para a diva dos pés descalços: a convite do proprietário de um restaurante e de uma discoteca com música ao vivo em Lisboa, ela volta a cantar e grava um disco, “Crioula Sofredora”, que passou despercebido. No ano seguinte, vai para Paris e é "descoberta" pela imprensa cantando em praças e bares. Dali seguiria para os palcos do mundo.
Em 2004, depois de vencer o Grammy, iniciou sua fase de maior popularidade e chegou às pistas de dança e ao circuito das “raves” por conta do lançamento de “Club Sodade”, surpreendente disco em que suas canções mais populares ganharam remixes e versões eletrônicas por alguns dos DJs mais famosos do planeta, como Rork & Demon Ritchie, Uwe Schmidt (Señor Coconut), Kerri Chandler, Carl Craig, Pepe Bradock, Cris Prolific e François K., entre outros.
Um dos parceiros de Cize de longa data, o músico cabo-verdiano Tito Paris foi entrevistado hoje pela agências de notícias France Presse (AFP) e lamentou a perda. "O artista e o poeta praticamente não morrem. Desaparecem mas não morrem e nós vamos ouvir Cesária até ao fim da nossa vida, ela vai existir com as suas mornas e coladeiras até ao último dia das nossas vidas", afirmou Tito. O mundo da música e Cabo Verde a partir de hoje ficaram mais pobres, tal como enriqueceram no dia em que Cesária Évora nasceu.