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11 de outubro de 2021

Um novo Superman

 





Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo

que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?

................ Friedrich Nietzsche, “Assim Falou Zaratustra” (1883).


As histórias de super-heróis são uma criação do século 20, mas personagens com poderes extraordinários têm uma longa tradição desde as mitologias da Antiguidade Clássica. No século 20, o primeiro da lista é Superman, criação da década de 1930 de dois estudantes de Cleveland, Ohio (EUA): o norte-americano Jerome Siegel, mais conhecido pelo apelido Jerry Siegel, e seu amigo canadense Joseph “Joe” Shuster. Superman foi criado e recriado diversas vezes pela dupla a partir de 1933, em publicações de pequenas tiragens que investiam no gênero da ficção científica, até estrear para o grande público em 1938, com o lançamento da revista em quadrinhos “Action Comics”. O sucesso foi tão grande que a revista alcançou rapidamente tiragens superiores a 500 mil exemplares e, no ano seguinte, o personagem ganharia uma revista exclusiva com o nome “Superman”.

Desde a estreia, Superman passou por várias transformações, mas mantendo sua identidade secreta disfarçado como Clark Kent, um tímido jornalista, ganhando novos superpoderes e até desenvolvendo a capacidade de voar, em 1941, para apoiar as tropas dos Aliados na luta contra o Eixo de nazistas e fascistas durante a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra começaram suas primeiras versões em filmes curtos para cinema e depois para a TV, aumentando a popularidade e o alcance do personagem alienígena – sim, alienígena, porque ele nasceu no fictício planeta Krypton, mas está sempre em ação para combater vilões e bandidos e salvar a espécie humana e o planeta Terra. A mudança mais recente e mais radical nesta trajetória agora foi lançada pela DC Comics com um novo Superman: Jonathan Kent, filho de Clark Kent e da jornalista Lois Lane, um ativista do meio ambiente que discute política e tem um relacionamento amoroso com um amigo.






Um novo Superman: no alto, Jonathan Kent, o filho
de Clark Kent e Lois Lane, dá um beijo inesperado
em seu amigo jornalista, Jay Nakamura. Acima, a capa
original da primeira edição da revista "Action Comics",
que marca a primeira aparição do Superman, em 1938.

Abaixo, a mais antiga imagem do Superman, em uma
história criada para uma revista de ficção científica
da qual resta apenas uma página, que é a capa.
Também abaixo, uma página de "Superman: Son
of Kal-El"
, lançamento da DC Comics com uma
atualização do super-herói que agora combate
incêndios florestais causados pelas mudanças
climáticas, impede tiroteios em escolas de
ensino médio e protesta contra a deportação
de refugiados em Metrópolis










Como era de se esperar, a mudança, apresentada pela DC Comics com o lançamento de “O Filho de Kal-El” (“Son of Kal-El”), foi recebida com muitos elogios e algumas críticas furiosas. As críticas, como sempre, vêm dos conservadores, dos fundamentalistas que usam a religião como plataforma para interesses políticos e dos fãs saudosistas que se sentem traídos com a atualização do personagem para os novos tempos. Contudo, a salvação do planeta e as questões políticas fazem parte do enredo das histórias do Superman desde sempre, motivo pelo qual as críticas recaem mesmo é na orientação sexual do novo personagem. No site oficial da DC Comics, Tom Taylor e John Timms, roteirista e desenhista da nova série, explicam que é uma questão natural a opção sexual do novo Superman – que desde a estreia é um ativista do meio ambiente que discute questões de política e combate incêndios florestais causados pelas mudanças climáticas, impede tiroteios em escolas do ensino médio e protesta contra a deportação de refugiados em Metrópolis.


Símbolo de esperança e justiça


“A ideia de substituir Clark Kent por outro salvador, outro homem branco, parecia uma oportunidade perdida, porque desde o início pensávamos que o novo Superman merecia enfrentar novos problemas do mundo real”, escreveu Tom Taylor no site oficial da DC Comics. “Eu sempre disse que todo mundo precisa de heróis e todo mundo merece ver a si mesmo em seus heróis. O símbolo do Superman sempre representou esperança, verdade e justiça. Hoje, este símbolo é mais plural porque mais pessoas são representadas pelo super-herói mais poderoso dos quadrinhos”, concluiu. Assim como seu pai Clark Kent se envolveu com Lois Lane, repórter do seu local de trabalho, a redação do jornal “Planeta Diário”, o jovem Jonathan, chamado de Jon Kent, herdou os superpoderes paternos e também se apaixona por um repórter, Jay Nakamura. O primeiro beijo entre o novo Superman e seu melhor amigo não demorou a acontecer.






Um novo Superman: acima, página de
"Superman: Son of Kal-El" em que
Jonathan Kent leva o amigo Jay para
conhecer sua casa e seus pais, Lois Lane
e Clark Kent. Abaixo, os quadrinhos com
as declarações amorosas entre os amigos
 













Superman: Filho de Kal-El” provocou a maior repercussão sobre o personagem em muitos anos. Nem mesmo os filmes recentes do Homem de Aço tiveram tantos comentários, postagens e engajamentos de amor ou de ódio nas redes sociais. Mas não foi sua primeira renovação. Desde sua criação, Superman vive de ressurgimentos e de períodos de ostracismo na cultura das mídias, apesar de nunca ter perdido seu papel de protagonista da cultura pop. Entre as superproduções que adaptaram o personagem das histórias em quadrinhos estão a primeira série de TV, “As aventuras de Superman”, precedida pelo filme de sucesso “Superman and the Mole Man” (no Brasil, “Super-Homem contra o Homem Topeira”). A série, com George Reeves no papel-título, estreou em 1952 e foi produzida até 1958. Foi a primeira versão, mas não foi a mais marcante. A versão mais celebrada, e por muito tempo considerada como versão definitiva do Superman estrearia nos cinemas em 1978: "Superman – O filme”, com direção de Richard Donner e com Christopher Reeve no papel principal.

O Superman com Christopher Reeve foi um raro sucesso de público e crítica, conquistando Oscars (melhor montagem, melhor edição, melhor mixagem de som) e reunindo um elenco de estrelas: Marlon Brando como Jor-El, Gene Hackman como Lex Luthor e Margot Kidder como Lois Lane, entre outros. O sucesso do filme renderia mais três sequências nos anos seguintes, mas nenhuma delas alcançou os resultados do primeiro filme. O personagem retornaria em seguida com duas novas séries de TV: em 1993, estreava “Lois & Clark, As novas aventuras do Superman”, com Teri Hatcher e Dean Cain; e em 2001, “Smallville”, que teve 10 temporadas até 2011, com Tom Welling no papel do jovem Superman em suas aventuras na cidade do interior do Kansas. Em 2006 haveria um novo filme, “Superman Returns”, com direção de Brian Singer, Brandon Rouch como Superman, Kate Bosworth como Lois Lane e Kevin Spacey como Lex Luthor.









Um novo Superman: acima, Christopher Reeve, astro da
performance de 1978 no cinema, sucesso de público e de
crítica; e Henry Cavill, a nova identidade visual do herói.

Abaixo, James Cain e Teri Hatcher na série de TV
"Lois & Clark"; e o casal Tyler Hoechlin e Elizabeth Tulloch
na nova série, "Superman & Lois", estreia de 2021











O capítulo seguinte de Superman no cinema foi com Henry Cavill como protagonista, com produção da Warner para o universo DC Comics. O primeiro filme foi “Homem de Aço”, em 2013, com direção de Zack Snyder. Depois vieram “Batman e Superman, A origem da Justiça”, em 2016, e “Liga da Justiça”, em 2017, ambos com Zack Snyder na direção. Superman teve ainda pequenas aparições em outros filmes de super-heróis da DC Comics, antes de ganhar uma nova série de TV em 2021, com produção da Warner e prevista para durar três temporadas, cada uma com 15 episódios: “Superman & Lois”, com Tyler Hoechlin e Elizabeth Tulloch. Na série, Clark Kent e Lois Lane deixam Metrópolis para tentar viver como pessoas comuns em Smalville com os dois filhos adolescentes, os gêmeos Jordan e Jonathan (Alexander Garfin e Jordan Elsass). Mas o clima de paz e tranquilidade em Smallville dura pouco e Superman novamente é convocado para salvar o planeta.


Mudanças de enredo


Superman não é o único personagem dos quadrinhos tradicionais a passar por mudanças de enredo e de sexualidade. Também pela DC Comics, empresa que desde a década de 1930 vem se mantendo como grande conglomerado de editoras e de direitos autorais de diversos personagens (a sigla “DC” é uma referência à primeira editora de Superman, a “Detective Comics”), estão acontecendo transformações no universo de Batman, que já havia sido recriado nos anos 1980 no “Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller. Talvez o segundo super-herói mais popular entre todos, rivalizando com Superman, o primeiro, desde que foi criado em 1939 por Bill Finger e Bob Kane para a revista “Detective Comics”, Batman tem a diferença de não contar com superpoderes, mas carrega desde a origem a atitude de ter sempre com ele um ajudante adolescente, o que já gerou muita controvérsia.

Batman também tem uma trajetória de muitas mudanças. A mais recente, também tentando se aproximar da diversidade das minorias e das questões sociais mais urgentes, traz o novo ajudante de Batman, Tim Drake, também declarando sentimentos românticos e eróticos por um amigo. Tim Drake é o terceiro Robin com maior importância depois do primeiro, Dick Grayson, que ficou mais de quatro décadas ao lado de Batman, desde que surgiu em 1940. Antes de Tim Drake, houve outros adolescentes atuando como Robin, o Garoto Prodígio, mas com pouca importância e sempre substituídos em diversas ocasiões. O principal, depois de Dick Grayson, se chamava Jason Todd, mas assim como Grayson ele também ficou adulto e abandonou o milionário Bruce Wayne (a identidade secreta de Batman) para seguir trajetória como herói independente: Dick Grayson assumiu a identidade de Asa Noturna; Jason Todd ressurgiu como Capuz Vermelho.







Um novo Superman: acima, uma redefinição
do universo da DC Comics com o lançamento
de "Crise Final", reunindo na mesma história
Superman e Batman. Abaixo, o cartaz do
filme "Batman v Superman", lançado em 2016,
com direção de Zack Snyder e Ben Affleck no
papel de Batman e Henry Cavill como Superman.
Também abaixo, a dupla Burt Ward e Adam West
na série de TV "Batman e Robin", lançada em 1966

 









Popularidade contra preconceitos


Nesses novos tempos, há também novas mudanças em curso para atualização dos temas dos enredos e da sexualidade de outros personagens do universo de super-heróis, tanto na DC Comics como em sua concorrente Marvel Comics, que detém os direitos sobre outra imensa galeria que inclui Homem-Aranha, Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, Thor, Viúva Negra e X-Men, entre muitos outros. No final das contas, as novidades sempre trazem maior popularidade para todos os envolvidos, ampliam as vendas em diversas mídias e, também, ajudam a quebrar preconceitos. No universo dos super-heróis, estes novos tempos chegam com décadas de atraso, desde o jogo duro da censura e da autocensura que surgiu na década de 1950, ao mesmo tempo em que começou a censura política criada pelo Macarthismo – os tribunais instalados nos EUA para a repressão política aos comunistas. Na onda do Macarthismo, os temas políticos e a sexualidade dos super-heróis também passaram a ser omitidos ou ostensivamente proibidos.

Ainda na década de 1950, houve o caso célebre e muito influente do livro “Seduction of the Innocent”, lançado em 1954 pelo psiquiatra Fredric Wertham, que levantou acusações e preocupações moralistas sobre sexo e violência nas histórias em quadrinhos, especialmente com os super-heróis, sugerindo uma ligação direta de causa e consequência entre a leitura de quadrinhos e a delinquência juvenil. Um dos capítulos do livro de Wertham descrevia a saga de Batman e Robin como “um sonho de desejo sexual de dois homossexais vivendo juntos e compartilhando experiências”. Em outro capítulo, a força e a independência da Mulher Maravilha a caracterizavam como lésbica. A imensa repercussão do livro levou à criação de audiências judiciais e comissões parlamentares de investigação pelo Congresso dos EUA e teve como resultado a criação de um código de censura, o Comics Code Authority (Código dos Quadrinhos), que definiu padrões sobre o que as histórias em quadrinhos podiam ou não representar.







Um novo Superman: acima, a capa da
primeira edição de "Son of Kal-El", lançamento
de 2021. Abaixo, dois momentos radicais na
trajetória do super-herói: o casamento com
Lois Lane, em 1996, e a primeira aparição
de Jonathan Kent, o filho e herdeiro dos
superpoderes de Clark Kent, em 2015.

Também abaixo, a capa e duas páginas
do livro de 1954 de Fredric Wertham
que influenciou na criação dos códigos
de censura às histórias em quadrinhos;
e as páginas com o beijo dos super-heróis
da Marvel que o prefeito do Rio de Janeiro,
ligado à seita neopentecostal de Edir Macedo,
tentou censurar na Bienal do Livro de 2019.
No final da página, uma retrospectiva da
evolução do Superman desde a primeira
edição de 1938 e uma vista da cidade
fictícia de Metrópolis como ela surgiu
no início da década de 1950









          



 

Códigos de Censura


O Código dos Quadrinhos modificou o conteúdo das revistas, transformando a sexualidade em tema tabu, modificando as tramas e a psicologia de vários personagens e alterando até mesmo as cores e as palavras apresentadas. As revistas que adotavam o código passavam a trazer um selo de identificação na capa e algumas publicações foram banidas do mercado porque recusavam as restrições. O código influenciou a criação de modelos de censura semelhantes em vários países, inclusive no Brasil, que depois da instalação da ditadura militar em 1964 teve a criação de um “Código de Ética” pelas quatro principais editoras: Abril, Rio Gráfica Editora (sigla RGE), Editora Brasil América Limitada (sigla EBAL) e O Cruzeiro (Diários Associados de Assis Chateaubriand). As editoras instituíram um selo similar ao norte-americano que indicava “aprovado pelo Código de Ética” e era estampado na capa das revistas. O selo teve vigência no Brasil até a redemocratização na década de 1980.

Os beijos entre personagens de mesmo sexo nas histórias em quadrinhos também tiveram um episódio revelador com destaque na imprensa em setembro de 2019, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Na época, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que é “bispo” da seita neopentecostal Universal do Reino de Deus, criada por seu tio, Edir Macedo, usou o cargo para mandar recolher o álbum gráfico “Vingadores, a cruzada das crianças”, publicação da Editora Salvat, porque na opinião dele o livro tinha “conteúdo inadequado” e “impróprio para menores”. A atitude autoritária do bispo-prefeito, no entanto, não encontrou respaldo jurídico e a proibição terminou não sendo cumprida. A história criada por Allan Heinberg e Jim Cheng, que faz parte do universo da Marvel Comics, abordava a equipe dos Jovens Vingadores e destacava dois personagens masculinos, Wiccano e Hulkling, que na época eram namorados e que se casaram na edição de agosto de 2020.












Um herói mitológico


Um novo Superman que tem um relacionamento amoroso com o melhor amigo, contudo, é algo inédito e muito surpreendente, mesmo para os padrões menos conservadores. Afinal, não se trata de um herói pouco conhecido ou de figuras caricatas que somente têm fãs em grupos específicos e restritos. Trata-se do primeiro super-herói, o mais popular e mais poderoso entre todos. A novidade surge como algo que ninguém poderia prever na linha do tempo original do Superman – que teve início na década de 1930, quando ele chega à Terra ainda bebê e é adotado por um casal de fazendeiros que não teve filhos. Depois ele cresce descobrindo seus poderes, frequenta a escola como se fosse um ser humano comum e, ao se tornar adulto, vai trabalhar como jornalista na cidade grande, onde, escondido em sua identidade secreta, conhece seu grande amor Lois Lane.

Houve muitas mudanças nas características do personagem e no contexto em que ele é apresentado, em quase 100 anos, ao mesmo tempo em que houve poucas alterações em sua vida íntima e pessoal. A existência e o sentido da existência de Superman foram tema de muitos estudos teóricos e filosóficos, com destaque para as abordagens de Coulton Waugh (“The Comics”, 1947), Mircea Eliade (“Mito e Realidade”, 1963), Umberto Eco (“O Mito do Superman”, 1963) e Glen Weldon (“Superman: Uma biografia não autorizada", 2013), que discutem sua presença na indústria cultural como versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos. A primeira grande metamorfose aconteceu em 1996, quando ele se casou com Lois Lane. A segunda, na passagem de 2015 para 2016, com a apresentação de Jonathan Kent como filho e herdeiro dos superpoderes de Clark Kent e o incentivo para que o filho se tornasse o novo Superman. Embora Jon Kent não seja o primeiro herói LGBTQ, e com certeza não será o último, sua presença é um sinal importante das grandes mudanças, nos quadrinhos e fora deles, que ainda estão para acontecer.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Um novo Superman. In: Blog Semióticas, 11 de outubro de 2021. Disponível no link https://semioticas1.blogspot.com/2021/10/um-novo-superman.html  (acessado em .../.../…).


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25 de outubro de 2020

Retratos do amor proibido


 




Todos nós estamos na sarjeta, 

mas alguns olham para as estrelas. 

–– Oscar Wilde (1854-1900).   

...............   


Há uma frase célebre e melancólica sempre citada e lembrada em situações variadas como uma espécie de definição para o que seja a homossexualidade tomada como tabu e como paixão proibida: um amor que não ousa dizer o seu nome. Escrita por Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde, ou simplesmente, como ele preferia, Oscar Wilde, a frase está em “De Profundis”, livro publicado no Brasil pela editora L&PM – um ensaio poético apresentado na forma de uma carta extensa e comovente, ao mesmo tempo um documento de acusação e uma confissão apaixonada, que Wilde endereçou a seu amante e algoz, o filho do Marquês de Queensberry, Lorde Alfred Douglas, que ele antes chamava carinhosamente de Bosie. A carta foi escrita em 1897, enquanto Wilde estava na prisão, condenado a trabalhos forçados por “comportamento indecente”. A frase, na verdade, já havia aparecido dois anos antes, no também célebre e trágico julgamento do poeta e escritor em 1895. Assim que Wilde pronunciou a frase em seu depoimento diante do tribunal, o promotor de justiça perguntou: “Mas o que é esse amor que não ousa dizer o seu nome?”

A resposta de Wilde ao promotor de justiça está em transcrição, na íntegra,
em um livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras: a biografia definitiva “Oscar Wilde”, escrita por Richard Ellmann em 1988 e pela qual o biógrafo venceu o Prêmio Pulitzer. As palavras do argumento de defesa que Wilde declarou em seu depoimento no tribunal têm as marcas de sinceridade e sutileza: “O amor que não ousa dizer o seu nome, neste século, caro senhor, é uma grande afeição de um homem mais velho por um outro mais novo, tal como havia no texto bíblico entre Davi e Jônatas, tal como havia na Grécia Antiga e que Platão transformou na base de sua filosofia, tal como alguém pode facilmente encontrar nos sonetos de Michelangelo e de Shakespeare. E é por causa deste amor que não ousa dizer o seu nome que fui colocado onde estou agora. Nele, não há nada que não seja natural, porque ele é a mais nobre forma de afeição. É assim que deve ser, mas o mundo não entende. O mundo o ridiculariza e às vezes coloca alguém sob tortura por causa dele”. Neste ponto, os aplausos do público interrompem o depoimento e o juiz suspende a sessão. Quando o julgamento é finalmente retomado, Wilde termina condenado e preso.














Retratos do amor proibido: no alto, Stephen Fry
e Jude Law em cena de
"Wilde", filme de 1997
com direção de Brian Gilbert e roteiro baseado
na biografia escrita por Richard Ellmann.

Acima, Rupert Everett no papel de Oscar Wilde

e Charlie Rowe como seu amante Bosie (Lorde

Alfred Douglas) em “O Beijo de Judas”, peça escrita

por David Hare em 1998, com nova montagem em

2016, sob direção de Neil Armfield. Também acima,

Oscar Wilde e seu amante, Lorde Alfred Douglas,

em foto sem data, e a capa da versão nacional

de "De Profundis", em edição da L&PM.


Abaixo, capa e contracapa de "Loving:

A Photographic History of Men 1850-1950",
livro de Hugh Nini e Nead Treadwell que reúne
uma coleção de 320 fotografias dos séculos 19 e 20.
Na capa e na contracapa, fotografias
com 
data

de 1890 dos Estados Unidos que registram

a proximidade afetuosa de uma dupla não

identificada, provavelmente dois operários









Histórias de anônimos


O amor que não ousa dizer o seu nome também poderia ter sido o título escolhido pelos autores Hugh Nini e Neal Treadwell para “Loving: A Photographic History of Men in Love 1850-1950”, livro em lançamento da editora 5 Continents nas versões em inglês, em alemão ou em italiano, na verdade um catálogo ilustrado com 336 páginas (no formato 22 x 28cm) e 320 imagens que contam, em poucas palavras, histórias de amor e afeto entre homens, na grande maioria anônimos. A coleção de fotografias, reunida pelos autores em décadas de pesquisa em antiquários, em feiras, em livrarias e em antigos álbuns de família, além das histórias de homens com coragem suficiente para irem contra a lei e encontrar o amor nos braços um do outro, também apresenta a evolução dos processos técnicos em um século da história da fotografia, de 1850 a 1950, revelando uma variedade de imagens que foram registradas em sua forma original em ambrótipos, daguerreótipos, negativos em vidro e em chapas de metal, cartões de gabinete, cartões postais e instantâneos impressos em diversos formatos de papel.

O livro de Hugh Nini e Neal Treadwell disparou nas listas de mais vendidos desde seu lançamento, em 14 de outubro de 2020. Mas o que pode dizer aos leitores e ao público de 2020 esta coleção de imagens antigas retiradas da intimidade de homens apaixonados e fotografados em uma época em que a demonstração de tal amor era uma atitude considerada totalmente ilegal, indecente e imoral? O que procuram hoje os leitores e o público em geral nos rostos anônimos dessas pessoas de outros séculos que tiveram ousadia para desafiar os costumes de seu tempo e tanto atrevimento e coragem para chegar ao ponto de registrar em fotografias o seu amor proibido?










Retratos do amor proibido: no alto, duas das
imagem mais antigas da coleção de Hugh Nini
e Neal Treadwell, com as matrizes em metal
(Tintype) com menos de 10cm, produzidas em
meados do século 19, seguidas de uma panorâmica
do acervo reunido no livro e, acima, a fotografia
mais antiga da coleção, datada de 1850. Abaixo,

amostras selecionadas por Nini e Treadwell:

1) fotografia sem data e sem identificação,
possivelmente por volta de 1900, com a dupla
mostrando o cartaz onde se lê o aviso
"não casados, mas dispostos a ser";
2) fotografia de 1900 com o cartaz
"lua de mel especial; 1ª parada: Reno"
e um detalhe de linguagem corporal com
um dedo indicador que revela os afetos;
3) cartão-postal com data de 1920 que foi 
encontrado no Canadá sem identificação; e
4) cartão-postal de 1910 com a identificação
dos nomes E. Thieniann & M. Hunter;
e 5) dois amigos no gramado em frente ao
monumento Garfield em Cleveland, Ohio, 1888

























São estas questões que abrem o livro em breves textos escritos pelos autores Hugh Nini e Neal Treadwell e por Paolo Maria Noseda, pesquisador de história da arte e da fotografia, destacando que são retratos do amor romântico de homens que estavam à frente de seu tempo, registrados por fotógrafos que também permaneceram anônimos, nos mais variados contextos, incluindo cenas em ambientes públicos, praças, clubes e praias, ambientes privados e domésticos e até casais em uniformes e em instalações militares, o que amplificava o risco potencial de repressão e de alguma punição severa para os envolvidos. O interesse atual pelos retratos de anônimos em relações amorosas do passado vem tão somente da simples curiosidade pela intimidade alheia? Vem da situação evidente de erotismo e exibicionismo de homens apaixonados e felizes posando diante das câmeras? Vem da percepção sobre o perigo iminente a que cada um se expôs ao desobedecer as regras rígidas e autoritárias da moralidade vigente?


Olhares irônicos e sorrisos


A maioria das fotos identificadas no livro de Hugh Nini e Neal Treadwell vem dos Estados Unidos, mas também há registros situados em outros países, entre eles Austrália, Bulgária, Canadá, Croácia, França, Alemanha, Itália, Grécia, Japão, Letônia, Reino Unido, Sérvia, Rússia – assim como há imagens de casais sem data e sem localização, posicionados, na ordem cronológica que o catálogo apresenta, a partir de informações sobre as técnicas originais de registro ou de reprodução dos retratos ou até mesmo a partir dos trajes usados e outros objetos presentes na cena. O que há em comum em todas as imagens são casais masculinos em destaque como únicos sujeitos da fotografia, às vezes com um olhar irônico ou com sorrisos para disfarçar os impedimentos e dificuldades daquele amor proibido e reconhecido pelos detalhes da linguagem corporal, seja em gestos explícitos, seja em poses de intenção erótica de maior ou menor sutileza.


















Retratos do amor proibido: imagens do acervo
publicado no livro de Hugh Nini 
e Neal Treadwell,
a partir do alto, 1) fotografia com a inscrição
original # 29. Cowboy dance 'stag' e, no
verso, a data de 1910; 2) o beijo do casal
anônimo na fotografia que tem, no verso, a
inscrição "Jardin d'Acclimatation, Paris, 1920";
3) fotografia de 1951 com a inscrição
Davis & J.C.; 3) fotografia sem data e sem
identificação, possivelmente da década de
1940 (note a câmera fotográfica
portátil sobre a caixa, à esquerda).

Abaixo: 1) daguerreótipo com data de 1850,
uma das imagens mais antigas do livro;
2) Soldado Charles Chapman (à esquerda),
do 10° Regimento da Cavalaria da Virgínia,
com um amigo não identificado, durante a
Guerra Civil nos EUA, por volta de 1861-65;
3) cartão de gabinete com a data 1880 e com
a inscrição McInturff, Steve Book, Delaware O.;
4) fotografia sem data, possivelmente da década
de 1920; e 5) um banho de sol, anônimos,
provavelmente na Califórnia, década de 1940











.


.

.


Nos breves ensaios que abrem o livro, os autores comentam sobre como a coleção teve início e como foi a experiência de encontrar a fotografia que deu origem ao acervo que reuniram depois em viagens pelos Estados Unidos, pelo Canadá e por países da Europa. “Nossa coleção começou há 20 anos, quando encontramos uma antiga fotografia que nos impressionou muito. O assunto naquela foto desgastada pelo tempo eram dois jovens se abraçando e olhando um para o outro, claramente apaixonados. Olhamos para a foto e ela parecia olhar para nós. Foi um momento singular encontrar aqueles jovens porque eles se abraçavam e se olhavam de uma maneira que só duas pessoas apaixonadas fariam. Pelas anotações no verso, a foto era da década de 1920. A expressão do amor que compartilharam também revelou muita coragem, porque tirar essa foto numa época em que seriam tão menos compreendidos do que hoje, não foi isento de riscos e perigos. Ficamos intrigados com o fato de que uma foto como essa pudesse ter sobrevivido até o século 21. Quem eram eles? E como uma foto tão íntima foi parar em uma loja de antiguidades em Dallas, no Texas, junto com estoques de fotos antigas sem nenhum interesse?”


Evidências do amor


As dúvidas sobre as histórias reais dos personagens do passado registrados nas antigas fotografias reunidas no livro ainda permanecem, porque são poucos os casos em que o mistério é esclarecido com identificação completa de nomes, datas e desfechos das relações que as imagens apenas sugerem. Mas as dúvidas não esclarecidas não reduziram nem o interesse dos leitores, que em pouco tempo elevaram o livro às listas de mais vendidos, nem o impacto do lançamento que teve resenhas de destaque surpreendente em jornais como “The New York Times”, “The Washington Post”, “The Guardian” e outros veículos de imprensa respeitados pela seriedade que talvez, até a bem pouco tempo atrás, apenas destinassem algum comentário sobre o livro para notas de pé de página ou de colunas sociais sobre amenidades.


















Retratos do amor proibido: imagens do
acervo publicado no livro de Nini 
e Treadwell
a partir do alto, 1) fotografia sem data e sem
identificação; 2) o beijo à beira do abismo
em Rocky Nook, na Baía de Kingston em
Massachussets, Estados Unidos, fotografia
datada de 1910; 3) fotografia com data de
1929, proveniente da Bulgária; e 4) fotografia
com data de 1953, proveniente da Croácia.

Abaixo, 1) soldados uniformização sem
data e sem identificação; 2) retrato
em chapa de metal (Tintype) sem
data e sem identificação; 3) fotografia
sem data com a inscrição John & Geo;
4) duas fotografias datadas de 1900,
ambas sem identificação; 5) uma provável
cerimônia de casamento com o casal sob
uma sombrinha, em fotografia da década de
1920; 6) fotografia de 1945, soldados
norte-americanos nos Alpes da Áustria;
7) fotografia datada de 1949 com a
inscrição Frank & I; 8 e 9) fotografias sem
identificação, possivelmente na Riviera
Francesa na década de 1940; e 10) o beijo
em fotografia sem data e sem identificação










Também há polêmicas que vão além do preconceito e da homofobia, entre elas acusações de que o livro de Hugh Nini e Neal Treadwell seria, na verdade, um plágio de outros livros sobre o mesmo tema, sendo o caso mais evidente um livro lançado em 1998 pela St. Martin’s Press de Nova York, uma das maiores editoras de língua inglesa, que também reúne uma coleção de fotografias muito semelhante e com o mesmo tema da nova publicação. Até o título do livro de 1998 é semelhante ao do livro Nini e Treadwell, com uma abordagem que também destaca o mesmo período histórico: “Affectionate Men: A Photographic History of Male Couples, 1850-1950”, de autoria de Russell Bush.

Contudo, a dupla de autores e colecionadores Nini e Treadwell se defende com o argumento de que as imagens que reuniram neste novo livro são inéditas, em sua imensa maioria, e com o diferencial das evidências afetivas relacionadas para todos os casais fotografados. Eles revelam os critérios que usaram no momento da edição, quando selecionavam as imagens: os gestos e o olhar das pessoas fotografadas. “Há um olhar inconfundível que duas pessoas têm quando estão apaixonadas. Você não pode fabricá-lo. E se você está passando por isso, não pode esconder”. O olhar dos casais reunidos nas fotografias do livro de Hugh Nini e Neal Treadwell desafia os observadores mais atentos e talvez possa confirmar o argumento dos autores. Ou não.


por José Antônio Orlando.


Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Retratos do amor proibido. In: Blog Semióticas, 25 de outubro de 2020. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2020/10/retratos-do-amor-proibido.html (acessado em .../.../...).


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