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22 de fevereiro de 2012

Presente verde-amarelo







No mundo da ilustração, muitos acham que o ilustrador 
é artista plástico. Eu discordo. O ilustrador é um escritor. 
Só que o seu instrumento de escrever é o desenho. 
O ilustrador é um escritor de imagens
––  Odilon Moraes.   

 

Em um de seus célebres ensaios, o francês Roland Barthes (1915-1980) interroga o leitor sobre as competições esportivas que, ele recorda, são espetáculos que vêm de outras eras, herdados de épocas ancestrais, resquícios dos antigos sacrifícios religiosos. "Que necessidade têm esses homens de atacar? Por que ficam perturbados diante desse espetáculo? Por que dão tudo de si? Por que esse combate inútil? O que é o esporte?"  questiona o pensador.

O próprio Barthes encontra a resposta, na frase seguinte, segundo a qual o esporte remete sempre a outra pergunta – quem é o melhor? – e dá novo sentido à questão dos antigos duelos. "Quem é o melhor para vencer a resistência das coisas, a imobilidade da natureza? Quem é o melhor para trabalhar o mundo e oferecê-lo a todos os homens? Eis o que diz o esporte. O esporte é feito para relatar o contrato humano", professa a sabedoria de Barthes.

Escrito em 1961 e mantido inédito em português até 2009, quando foi publicado no terceiro número da revista "Serrote", do Instituto Moreira Salles (IMS), o ensaio de Barthes, intitulado "O que é o esporte?", destaca aspectos mitológicos e cotidianos das arenas esportivas, nas quais o homem não enfrenta diretamente o homem: há entre eles um intermediário, algo que está em jogo na cerimônia da disputa, algo que pode ser máquina, pode ser disco, pode ser bola.












No caso brasileiro, entretanto, o que faz do futebol um esporte nacional? O ilustrador, pintor e escritor Odilon Moraes enfrenta a questão e busca a natureza mitológica do mais nacional dos esportes criando uma sequência de imagens que seduz e encanta até mesmo os pequenos leitores ainda não alfabetizados. A resposta do ilustrador e contador de histórias é construída pela simplicidade de um fragmento de memória da vida cotidiana de um garoto comum representada de forma muito pouco usual.



O traço azul do lápis



Sem nenhuma palavra – apenas com o traço azul do lápis que preenche com cores verde-amarelas camisas da seleção e bandeirinhas brasileiras – Odilon Moraes constrói, nas 48 páginas do livro-imagem "O Presente" (editora Cosac Naify), uma sequência de reminiscências da infância que deixa em destaque uma vivência comum a gerações e gerações de brasileirinhos: a descoberta da paixão pelo futebol.

"Meu livro é uma mistura de várias referências, principalmente minhas próprias memórias de infância e as experiências vividas com as primeiras Copas do Mundo assistidas pela TV", explica Odilon, respondendo à pergunta que fiz para esclarecer minha suspeita de que "O Presente" contava uma história autobiográfica de algum momento da infância do autor, um paulista que nasceu na capital, em 1966, mas passou a infância e a adolescência em Tanabi e outras cidades do interior paulista.







"Meu pai comprou a primeira TV a cores depois da Copa de 1974. Mas assistimos aos jogos do Brasil na casa de um amigo dele. Foi inesquecível, apesar das imagens cheias de chuviscos e de fantasmas", ironiza o autor, na breve entrevista que fiz com ele por telefone. Depois que confesso que "O Presente" me fez lembrar de minha própria infância, com os mesmos cenários e personagens, Odilon resgata na conversa ou ou outro caso curioso que permaneceu gravado em suas lembranças de criança e conta que tem dois filhos pequenos, de quatro e de um ano de idade, que atualmente fazem as vezes de primeiros leitores do pai escritor e ilustrador.

"Como toda arte e toda literatura, 'O Presente' é um apanhado de várias verdades para formar uma ficção", define. A opção pela ausência de palavras no livro, ele reconhece, nasceu da atividade profissional que o leva no dia a dia a ilustrar textos de outros autores. "A experiência me fez perceber que o desenho conta coisas diferentes da palavra, assim como as palavras dizem coisas que a imagem sozinha às vezes não consegue traduzir", explica.

Ele também acredita que um livro ilustrado, sem palavras, destaca melhor o poder que a imagem tem, inclusive de transformar a palavra. "Mesmo em um livro ilustrado em que há palavras, acontece este poder quase mágico da transformação da realidade. Você vê a palavra e entende uma coisa, olha a imagem entende outra, e vice-versa. A grande riqueza é esse jogo entre palavras e imagens e isso significa interdependência", ressalta o autor, com o conhecimento de causa de quem é também o ilustrador.

Segundo Odilon Moraes, a forma de narrativa do livro ilustrado traduz a maneira como compreendemos o mundo. "A gente não compreende o mundo apenas pelas palavras. A gente compreende o mundo pelas palavras e pelas imagens. O leitor precisa se sujeitar a essa dupla orientação, uma coisa contada pela imagem e outra pela palavra, que muitas vezes não se cruzam. Mesmo quando querem contar a mesma coisa, são coisas contadas de forma diferente", completa.







Formado em Arquitetura, Odilon Moraes estreou como autor em 2002, com "A Princesinha Medrosa", relançado pela Cosac Naify em 2009. Depois vieram "Pedro e Lua" (2004) e o livro-objeto "Ismália" (2006), criado a partir do poema de Alphonsus de Guimaraens. Recebeu prêmios de melhor livro do ano pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e também ilustrou "O Homem que Sabia Javanês" (2003), de Lima Barreto, "O Presente dos Magos" (2004), de O. Henry, e "Será o Benedito!" (2008), de Mário de Andrade, entre outros. 



O melhor caminho 



Ele também faz questão de ressaltar que nem sempre o livro ilustrado é literatura infantil. "A literatura infantil existiu antes do livro ilustrado. Existiam histórias para crianças, mas eram os pais ou os adultos que liam para elas. A partir do final do século 19 é que surge o livro-brinquedo, o livro que é criado para ser manuseado pela criança. O próprio fato de usar a imagem como narrativa é uma derivação do universo da criança, assim como imagens coloridas, pouco texto, imprevisibilidade na exploração do objeto. Então, podemos dizer que o livro ilustrado nasce dentro desse pensamento do livro-brinquedo, onde desponta uma curiosidade, que é a ilustração passar a ser um trilho para construir histórias".











Ilustrações de Odilon Moraes: acima,
o autor trabalhando em "mesa de luz"
para o projeto do livro O Presente.
Também acima, imagens extraídas
de seus livros Será o Benedito! e
O Homem que Sabia Javanês.

Abaixo, a capa da primeira edição
de A princesinha medrosalivro de
estreia do autor, que além de ilustrar,
também escreveu o texto, conquistando
prêmio de Melhor Livro para Crianças,
concedido em 2002 pela FNLIJ. Também
abaixo, e nas ilustrações a partir do alto
da página, imagens de O Presente









Na atualidade, alguns autores dizem que o livro ilustrado é literatura pós-moderna, porque congrega vários elementos: a imagem, a palavra e às vezes o objeto. Minha teoria é que, pelo fato de o livro ilustrado ter nascido dentro da literatura infantil, guarda-se o território da criança, da experimentação. Mesmo se há um adulto que fala 'não faço livro ilustrado para criança', na verdade ele está se utilizando de recursos do universo infantil que foram muitos expressivos", ele explica, sempre tendo como exemplo seu próprio trabalho como autor e ilustrador.
  
"Não basta uma boa ideia ou uma bela imagem. É preciso desenvolver esta ideia em etapas e criar uma sequência", ele diz, referindo-se à experiência de vida transformada nas imagens de "O Presente". No livro, o garoto protagonista tem uma frustração ao assistir aos jogos da Copa do Mundo pela TV, vestindo a camisa verde-amarela que ganhara do pai. Mas ele alcança a superação através do próprio jogo, quando é convidado para uma "pelada" com os amigos. Trata-se de um livro sobre futebol, mas que também alcança questões mais profundas sobre amizade, lembranças e amadurecimento

Na origem de “O Presente”, o autor confirma, estão muitas de suas lembranças da infância. “Pensei em datas que marcam as pessoas. Por exemplo, em todo Natal você se lembra no do ano passado, e pensa em como será o próximo... E com a Copa do Mundo ocorre algo semelhante. Quando comecei a fazer o livro, me vi refletindo sobre isso, e pensei no meu filho pequeno, João. Aí me veio à cabeça uma lembrança muito especial da primeira Copa que me lembro de ter assistido com atenção”.

Trabalhando como ilustrador desde 1989, ele diz que foi de certa forma influenciado pelo pai, que sempre pintou, e que um dia, quando resolveu levar seus desenhos a uma editora, pouco antes de se formar em Arquitetura, conseguiu mudar toda a sua vida. Sobre seu ofício como autor e como ilustrador, ele confessa: "Hoje sei que o melhor caminho é desenhar quando não consigo escrever e escrever quando não consigo desenhar".



























A infância do autor



Ele recorda que o ponto de partida para criar o livro foram suas memórias sobre a Copa do Mundo de 1974, que assistiu pela TV. “Eu morava no interior e meu pai me levou pra ver uma partida na casa de um amigo, o primeiro cara que tinha televisão em cores na cidade. O que mais me lembro é que ninguém conseguia assistir direito ao jogo porque a TV era mal regulada e só víamos uma coisinha amarela passando para lá e para cá, uma mancha amarela que eram as camisas da seleção. Só depois da Copa meu pai conseguiu comprar nossa primeira TV em cores”.

A experiência da infância do autor conseguiu gerar uma obra das mais especiais sobre a paixão de muitos brasileiros pelo futebol. Como escreve Tales Ab'Sáber, que assina o texto da contracapa do livro, o futebol é "uma das mais complexas formações que a cultura e a sociedade brasileira foram capazes de produzir. O despertar do amor ao futebol se confunde com o despertar da própria consciência de si".

Traduzindo algumas de suas memórias de infância na simplicidade e na beleza de um livro sem palavras, Odilon Moraes tematiza o futebol com o que ele tem de tristeza e alegria, frustração e surpresa. A partir de suas próprias lembranças, como acontece sempre na grande arte da literatura, ele compõe um presente de fato muito especial para crianças e para adultos de todas as idades: uma história que comove com seu texto invisível porque incorpora muito afeto desenhado em verde, amarelo, azul e branco.


por José Antônio Orlando.



Como citar:


ORLANDO, José Antônio. Presente verde-amarelo. In: Blog Semióticas, 22 de fevereiro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/presente-verde-amarelo.html (acessado em .../.../...).



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Odilon Moraes no estúdio de trabalho,
fotografado por Nino Andrés





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