Morto
aos 51 anos, em 1911, o compositor e regente de orquestra austríaco
Gustav Mahler é sempre lembrado por quem gosta de cinema por conta
de sequências quase abstratas na abertura, no encerramento e em várias passagens de
“Morte em Veneza” (1971), do cineasta italiano Luchino Visconti,
por sua vez uma adaptação do romance homônimo do alemão Thomas
Mann (1875-1955). Difícil esquecer o filme de Visconti e os acordes de cortar o coração
do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, movimento lento e calmo,
melancólico, nostálgico. No filme de Visconti a presença de Mahler se dá de forma indireta, na caracterização do ator Dirk Bogarde, nas cenas de flash-back e na música que pontua a trilha sonora, mas quatro anos depois da estreia de “Morte em Veneza” um outro filme, escrito e dirigido por Ken Russell, iria contar detalhes sobre a biografia do compositor e traçar paralelos entre sua vida e sua música.
Em “Mahler”, que chegou aos cinemas em 1974, Ken Russel apresenta Robert Powell como Gustav Mahler e Georgina Hale no papel de sua esposa Alma, os dois enfrentando um casamento fracassado em uma narrativa em nada linear e conduzida por pesadelos e memórias em tom surrealista. A trama condensa a infância de Mahler e sua trajetória dramática, passando pelo suicídio do irmão, sua conversão do judaísmo para o catolicismo, seus problemas profissionais e conjugais e a morte de sua filha. O problemas conjugais do compositor também fornecem o pano de fundo para um filme recente, “Mahler no Divã” (Mahler auf der Coach), escrito e dirigido em 2010 em parceria de pai e filho pelos alemães Percy Adlon e Felix Adlon.
Para além da complexidade nas referências dos filmes muito diferentes entre si de Luchino Visconti, de Ken Russell e de Percy e Felix Adlon, o
compositor Gustav Mahler se mantém como um dos grandes nomes do panteão da música
erudita e teve seu prestígio em trajetória crescente no decorrer do último século. Consagradas
no repertório de referência de grandes orquestras e instrumentistas
por seu intenso lirismo, as 10 sinfonias do compositor, com
surpreendentes efeitos de harmonia e andamento, são executadas e
usadas por muitos com intenções diversas, de clássicos do cinema a
anúncios publicitários de automóveis na TV. Para os amantes da
música de Mahler, que seu amigo e confidente Sigmund Freud
definiu como uma das manifestações mais importantes e autênticas
da complexidade do humano, uma boa notícia: a edição nacional de um estudo biográfico que mereceu elogios dos críticos mais exigentes da imprensa internacional, “Gustav Mahler – Um Coração Angustiado” (Autêntica Editora),
em capa dura e ilustrado.
Um
subtítulo destacado na capa do livro, entretanto, pode levar a um
pequeno engano. “Uma biografia em quatro movimentos”, anuncia a
edição nacional, traduzida por Cristina Antunes do original “Gustav
Mahler o El Corazón Abrumado”. A ressalva é um alerta sobre uma sutileza que a maioria dos leitores talvez nem sequer perceba: não se trata de uma biografia no sentido tradicional, e
sim de uma pesquisa minuciosa sobre a obra do compositor e a história de sua
época. Nomear o livro como estudo historiográfico sobre a obra de Mahler seria a melhor definição. Escrito por um argentino, o poeta, ensaísta, crítico
musical e psicanalista Arnoldo Liberman, que atualmente reside na
Espanha, o livro reúne quatro estudos – os quatro movimentos do
subtítulo – o primeiro deles publicado em 1983.
Biografia pouco convencional
Não
ser exatamente uma biografia no sentido convencional do termo, porque destaca os percalços da obra e não somente a história de vida do biografado, é
menos um problema que uma qualidade. O próprio Arnoldo Liberman – que
define Mahler como “um homem corajoso e frágil, pleno de
perplexidades, de ambivalências inevitáveis, de encontros sempre
adiados, de um sim é não que procurava o absoluto no tempo
religiosamente fugaz de um acorde" – declara não
ter intenção de rivalizar com a obra (inédita no Brasil) de
Henry-Louis de La Grange tida como biografia monumental, “Gustav
Mahler”, apontada por Liberman como estudo definitivo sobre o
compositor.
Admirador
que se confessa apaixonado pelas melodias do compositor tomado como
protagonista do relato, Liberman, nos quatro estudos seguidos por um
posfácio tão breve quanto esclarecedor, lança as coordenadas sobre
os percalços históricos que coincidem com a trajetória das
composições de Mahler. Em busca da história por um caminho não
exatamente preocupado com a ordem cronológica ou com uma detalhada enumeração de
dados biográficos, Liberman vai sutil e sistematicamente levando o
leitor, seja ele conhecedor ou não de música clássica ou da obra
de Mahler, a aprofundar-se no entendimento de uma personalidade
fascinante.
“Não
pretendi esgotar o tema Mahler. Sinto até certo pudor em
esclarecê-lo. Mahler é – como os fantasmas queridos que povoam
nosso mundo interior – um prolongado discurso. Momentos desse
discurso penetram nestas páginas”, confessa o autor, que constrói
um mosaico instigante sobre o homem, o músico, seu modo de ver o
mundo, seus constantes questionamentos e dúvidas, suas paixões e
explosões de humor, seu processo criativo, suas sinfonias, sua vida
familiar, as posições políticas que adotou e seu percurso até chegar a
diretor da Ópera de Viena, na cidade onde viveu boa parte de sua
vida – “e lugar onde parece ter nascido todo o século XX”,
aponta Liberman.
Nomeado
“Kappellmeister” da Ópera da Corte de Viena aos 37 anos,
foi quando teve início a parte mais prestigiosa e mais importante da
carreira de Mahler. Durante 10 anos, o compositor e regente
de orquestra permaneceu em Viena e passou a ser considerado um
grande perfeccionista. Os conflitos, tanto com seus chefes como com
seus subalternos, surgiam da busca frenética pelos acordes perfeitos
e harmoniosos. E durante os ensaios, mesmo quando os músicos tinham
desempenhos brilhantes, ele exigia mais e mais, o que muitas vezes gerava discussões acaloradas e tensão entre os integrantes da orquestra.
Tradição é desordem
Liberman
destaca que Mahler costumava dizer: “Tradição é desordem…
No plano humano faço todas as concessões; no plano artístico,
nenhuma. Não posso suportar os que se desleixam, só os que exageram
me interessam”. Tanto perfeccionismo fez que com com que o
maestro ganhasse alguns admiradores, mas também muitos inimigos. Um
capítulo da maior importância na sua trajetória aconteceria em
1901, quando Mahler conheceu a filha do pintor Emil Schindler, Alma
Schindler, com raro talento como pianista e compositora e cerca de 20 anos mais nova que ele, além de ser uma jovem notável por sua beleza e muito mais alta que Mahler, que era um homem de estatura física abaixo da média de seus conterrâneos e contemporâneos.
Mahler e Alma casaram-se em 1902 e tiveram duas filhas, Anna (1904-1988), que depois se tornou escultora, e Maria Anna (1902-1907), que morreu em 1907. Neste mesmo ano, a confirmação de uma doença cardíaca e uma intensa campanha anti-semita fez com que Mahler perdesse o emprego na Ópera. Como se não bastasse, também descobriu pouco tempo depois uma relação amorosa que se desenvolvia entre sua esposa e um amigo, o estudante de arquitetura Walter Gropius, que anos depois ganharia reconhecimento como um dos principais nomes da arquitetura do século 20 e como fundador da Escola Bauhaus. Em 1915, quatro anos depois da morte de Mahler, Alma e Walter Gropius se casariam.
Mahler e Alma casaram-se em 1902 e tiveram duas filhas, Anna (1904-1988), que depois se tornou escultora, e Maria Anna (1902-1907), que morreu em 1907. Neste mesmo ano, a confirmação de uma doença cardíaca e uma intensa campanha anti-semita fez com que Mahler perdesse o emprego na Ópera. Como se não bastasse, também descobriu pouco tempo depois uma relação amorosa que se desenvolvia entre sua esposa e um amigo, o estudante de arquitetura Walter Gropius, que anos depois ganharia reconhecimento como um dos principais nomes da arquitetura do século 20 e como fundador da Escola Bauhaus. Em 1915, quatro anos depois da morte de Mahler, Alma e Walter Gropius se casariam.
No
livro, Arnoldo Liberman relata as controvérsias e aponta que a demissão de
Mahler foi em parte provocada pela reação da imprensa anti-semita e
por seus muitos inimigos, os declarados e os não declarados, que
nunca respeitaram sua música. Muitas das obras que escreveu não
chegaram sequer a ser executadas em público enquanto ele esteve
vivo. Depois da demissão, Mahler aceitou um convite para dirigir em
Nova York a Metropolitan Opera. A estreia nos Estados Unidos
aconteceu em 1908, com a regência de “Tristão e Isolda”. Mas
apesar da boa recepção que teve em Nova York, em pouco tempo
terminou sendo trocado por Arturo Toscanini.
Há
controvérsias também sobre esta segunda demissão, mas Liberman
concorda que por certo o perfeccionismo de Mahler tenha sido o maior
impedimento para sua carreira de sucesso na América. Se como maestro
Mahler angariava inimigos, por conta de seu perfeccionismo radical, sua obra como compositor demorou mais
ainda a ser plenamente aceita e reconhecida. “Os estudiosos da
música ainda hoje são unânimes em reconhecer que sua obra é
de difícil execução e uma das mais complicadas dentro do
repertório erudito”, destaca Liberman.
Há
ainda o depoimento de Carlo Maria Giulini (1914-2005), um dos grandes
nomes da regência do século 20. "Não se pode tocar Mahler
como se toca Brahms. É uma questão, em primeiro lugar, de saber
colocar notas e dedos no devido lugar e, depois, de tentar entender a
concepção. Mahler exige um som especial, além de percepção
especial do temperamento e da estrutura. A orquestra deve entender
isso para que, na hora da apresentação, a música faça parte do
corpo. Mahler exige atenção especial".
"Meu tempo há de chegar"
Herdeiro
da tradição dos músicos alemães – de Johann Sebastian Bach e da
“Escola de Viena” de Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, além
de Schumann, Mendelssohn e, especialmente, Richard Wagner, de quem foi contemporâneo – Mahler
costumava confidenciar a sua esposa Alma e aos amigos mais próximos: “Meu
tempo há de chegar”.
E
de fato, seu tempo chegou, ressalta Liberman na biografia, mas foi uma glória que floresceu muito tempo após sua morte. Depois da
Segunda Guerra Mundial, pelas mãos de uma geração de regentes e
admiradores que o conheceram, como o norte-americano Leonard
Bernstein, em pouco tempo ciclos completos das sinfonias de Mahler
foram gravados e suas obras incorporadas pelas mais importantes
orquestras.
Questões
filosóficas, psicológicas, comportamentais, sociais e políticas do
nascimento do século XX sinalizam a trajetória de vida do
compositor, nas palavras de Liberman “um homenzinho de pequena
estatura e vasta cabeleira negra, castigado pelo destino e duramente
perseguido pelos críticos da época, em especial pelo fato de ser
judeu”. Não é a toa, destaca o relato de Liberman, que Mahler
chegou a declarar e indagar um dia:
“Fui
três vezes exilado: boêmio para os austríacos, austríaco para os
alemães e judeu para todo o mundo. Em todos os lugares, um intruso”.
Sigmund Freud é presença constante no livro e na vida de Mahler,
mas não a única personalidade marcante nas suas relações
cotidianas. Lá estão, entre outras personalidades de destaque,
grandes nomes do mundo da música (Brahms, Anton Bruckner, Arnold
Schönberg, Alban Berg, Bruno Walter), das artes plásticas (Gustav
Klimt, Kolo Moser, Carll Moll, Egon Schiele, Oskar Kokoschka), da
filosofia e da linguística (Mach, Schlick, Carnap, Wittgenstein), da
literatura (Franz Kafka, Richard Dehmel, Peter Altemberg, Rainer
Maria Rilke, Karl Kraus...).
Mahler no divã
Permeiam o relato biográfico e apaixonado do livro a citação de inúmeros trechos de cartas trocadas entre Gustav Mahler e seus amigos, seus mestres e, principalmente, as cartas para Alma Mahler, sua esposa e seu único e grande amor. Além do livro de Liberman, a trajetória dramática de Mahler e sua obra, seus “lieder” com orquestra e suas sinfonias, também chegaram aos cinemas com a estreia recente de “Mahler no Divã”, um caso curioso de filme realizado em parceria por pai e filho diretores e roteiristas, Percy Adlon e Felix Adlon.
Permeiam o relato biográfico e apaixonado do livro a citação de inúmeros trechos de cartas trocadas entre Gustav Mahler e seus amigos, seus mestres e, principalmente, as cartas para Alma Mahler, sua esposa e seu único e grande amor. Além do livro de Liberman, a trajetória dramática de Mahler e sua obra, seus “lieder” com orquestra e suas sinfonias, também chegaram aos cinemas com a estreia recente de “Mahler no Divã”, um caso curioso de filme realizado em parceria por pai e filho diretores e roteiristas, Percy Adlon e Felix Adlon.
Percy Adlon é conhecido no Brasil por dois filmes que alcançaram a condição de “cult movies”, ambos realizados em parcerias com sua esposa, a também cineasta e roteirista Eleanor Adlon: “Bagdad Café”, de 1987, e “Rosalie vai às compras”, de 1989, os dois tendo como protagonista a atriz alemã Marianne Sägebrecht. “Mahler no Divã”, lançado na Alemanha no final de 2010 para
homenagear os 150 anos de nascimento do compositor, foi elogiado por
unanimidade entre público e crítica. Assim como em um dos “movimentos” destacados no livro de Liberman, no filme de Percy Adlon e Felix Adlon entra em cena uma passagem biográfica muito específica: um lendário
encontro que Gustav Mahler teve com Sigmund Freud, em Leiden, Holanda, numa
sexta-feira, dia 26 de agosto de 1910.
O
encontro com Freud é dramático, tanto no livro de Liberman como no filme “Mahler no Divã”. Sujeito atormentado com as questões de seu tempo, com os impasses da arte da música e com ciúmes obsessivos, Mahler estabeleceu para seu casamento a exigência de que Alma desistisse de atuar como compositora para se dedicar a uma vida tradicional como esposa e mãe. A crise insolúvel vem quando ele descobre que Alma o
traía com o jovem arquiteto Walter Gropius. Torturado pelas dúvidas e amargurado, o maestro recorre
a uma consulta com o médico mais famoso de sua época, que naquele
momento estabelecia as bases da psicanálise.
A única sessão
psicanalítica que Mahler e Freud protagonizaram durou mais de quatro horas e
transcorreu enquanto eles caminhavam pelas ruas da cidade. Mais
importante que isso: tanto Mahler quanto Freud foram extremamente
econômicos nos relatos sobre aquele dia e sobre os assuntos que abordaram. Um ano depois, morando em Nova York, Mahler teve uma faringite grave e, apesar da febre alta, dirigiu até o fim um concerto de forma impecável e intensa, diante de uma grande plateia. Em seguida, sofreu um colapso. Desde aquele momento, não mais trabalhou nem se recuperou. Regressou a Viena, para se tratar, mas morreu poucas semanas depois, em 18 de maio de 1911.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Mahler em
Veneza. In: Blog
Semióticas, 24
de setembro
de 2011.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/09/mahler-em-veneza.html
(acessado
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