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27 de março de 2012

Resumo da Ópera







A admiração começa onde acaba a compreensão.

–– Charles Baudelaire (1821-1867).  





Uma definição célebre de Jean de La Bruyère sobre o espetáculo da ópera, datada de 1691, também poderia servir como uma luva para explicar a magia do cinema, que ainda iria demorar três séculos para chegar às plateias. Segundo La Bruyère, "o que caracteriza esse espetáculo (a ópera) é que ele mantém o espírito, os olhos e os ouvidos em igual encantamento". Foi assim desde as origens: nas encenações dos gregos e outros povos na Antiguidade Clássica, séculos antes de Cristo, passando pela retomada e aperfeiçoamento do gênero na Europa da Renascença, as grandes montagens de ópera perseguem a ambição de renovar a ancestral aliança entre as artes visuais, a palavra e a música.

A definição sucinta e perspicaz do francês La Bruyère (1645-1696) – famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou Costumes do Século” (1688) – indica que há séculos as engrenagens e estratégias adotadas em cena aumentam e embelezam a ficção, mantendo o espectador na doce ilusão que é todo o prazer do teatro e da arte, em última instância. As ideias de La Bruyère sobre o que em sua época era um novo gênero são citadas como ponto de partida pelo sábio Jean Starobinski em um livro essencial para quem se interessa pela complexidade da ópera: "As Encantatrizes", editado no Brasil pela Civilização Brasileira.







Resumo da ópera: acima, afrescos e
pinturas no teto do foyer da Ópera
de Paris, França. No alto, detalhe de
aquarela de Erich Lessing reproduzida
como ilustração na capa do livro
As Encantatrizes. Abaixo, uma imagem
da ópera nos trópicos: Teatro Amazonas,
em Manaus, inaugurado em 1896 









Embelezado pelas ilustrações de Karl-Ernst Herrmann e Erich Lessing, a edição em português do estudo do veterano pensador da Universidade de Genebra, Suíça, faz um passeio pelos grandes momentos da história do gênero operístico. O traço analítico de Starobinski encontra as origens do espetáculo e traça o “resumo da ópera”: seus grandes autores e compositores, os libretos que marcaram época e fizeram a glória de maestros, sopranos, tenores e barítonos. 

 

Da tradição às novas linguagens



Rivalizando com o teatro, com o cinema e os espetáculos populares, a ópera, lembra Starobinski, já foi sentenciada como morta e acabada mais de uma vez, no passado recente. Mas sempre retorna, revigorada e surpreendendo plateias, seja em montagens tradicionais, seja na experimentação radical ou no investimento em novas linguagens e artifícios tecnológicos.

Linguista, filósofo, especialista em análises dos clássicos de Montaigne, Diderot e Rousseau, professor de literatura, de semiótica e de história da medicina, crítico literário e de artes plásticas, Starobinski, que nasceu em 1920, é celebrado nos meios acadêmicos como um dos principais pensadores vivos. No novo livro, persegue respostas para o "encantamento" que a ópera vem perpetuando através dos séculos e empreende um vigoroso diálogo com pensadores de diversas épocas.










Resumo da ópera: o lendário tenor
italiano Enrico Caruso (1873-1921),
fotografado como protagonista de
Rigoletto, de Giuseppe Verdi, na
montagem de 1904 do
Metropolitan Opera House de
Nova York. Caruso é apontado por
unanimidade como o maior nome
da ópera em todos os tempos.
Também acima, o célebre maestro
Arturo Toscanini com Caruso,
fotografados em Roma em 1915.

Abaixo, o cartaz original da estreia
em 1854 da ópera Rigoletto e uma
pintura em óleo sobre tela também de
1854 que retrata uma vista panorâmica do
Gran Teatro La Fenice (em português,
"a fênix"), teatro tradicional de Veneza


















Sob o crivo intelectual de Starobinski, teatro, poesia, pintura, escultura, dança, música e todas as diversas manifestações híbridas da arte que convergem ao vivo para a realização da montagem operística são reveladas através da estrutura do conto de fadas. O “faz de conta”, ele alerta, é determinante para o encanto da montagem, que por sua vez influenciou outros gêneros através do tempo e está na origem do próprio espetáculo do cinema, com o qual a ópera rivalizou desde a primeira metade do século 20. 

Autor de “As Palavras sob as Palavras” (1971) e “A Invenção da Liberdade” (1964), entre outros estudos fundamentais lançados no Brasil, em “As Encantatrizes”, que foi publicado e premiado em seu país de origem em 2005, Starobinski abre a discussão sobre o gênero do espetáculo. Com instrumentos tomados de empréstimo dos estudos em história e filosofia, o autor busca o contexto e a estrutura intersemiótica das diversas encenações e retoma o surpreendente verbete "ópera" da primeira "Enciclopédia" organizada por Denis Diderot (1713-1784):










Resumo da ópera: no alto, capa do libreto
da ópera Carmen, de Bizet. Acima,
a diva Maria Callas (1923-1977).
Celebridade da ópera e contraponto
para Caruso, Callas é tida por unanimidade
como maior soprano de todos os tempos.

Na foto acima, Callas em 1953, no
papel-título de Tosca, de Puccini, na
montagem do La Scala de Milão, sob a
regência de Victor De Sabata, que teve
uma gravação de áudio considerada um
padrão internacional de excelência em
ópera. Abaixo, Callas em 1954 no
camarim do La Scala, onde estava em
cartaz com a ópera Norma, de Bellini

  







"É o divino da epopeia em espetáculo. Como os atores são deuses ou heróis semideuses, eles devem se anunciar aos mortais através de uma inflexão de vozes que ultrapasse as leis do verossímil habitual. Suas operações se assemelham a prodígios. É o céu que se abre, o caos, os elementos que se sucedem, uma nuvem luminosa que traz um ser celeste. É um palácio encantado que, ao menor sinal, desaparece e se transforma em deserto", aponta Diderot.



Uma certa sinestesia



Contra o esquematismo do enciclopedista, Starobinski argumenta que "uma ópera sem divindades nem feiticeiros, mas na qual as paixões são grandes e nobres, também pode responder à expectativa do encantamento". A investigação também recorre a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), para quem a ópera se esforça por reunir todos os charmes das belas-artes na ação apaixonada.

"As partes constitutivas da ópera são o poema, a música e a cenografia", determina Rousseau, citado por Starobinski. Nas análises empreendidas pelo sábio do século 18, o autor de “As Encantatrizes” percebe uma atenção ao espetáculo que antecipa uma certa sinestesia de apelo simultâneo aos sentidos: "Pela poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de diversos órgãos, a mesma impressão até ele".








Resumo da ópera: no alto, Maria Callas 
no teatro La Scala de Milão, Itália, onde
interpretou em 1955 a cortesã Violeta na
mais célebre montagem de La Traviata, de
Verdi. Acima, a maior da intérpretes líricas
brasileiras, Bidu Sayão (1902-1999),
grande sucesso internacional das décadas
de 1920 a 1950. Na fotografia, Bidu Sayão
em 1940, na estreia de La Traviata no
Metropolitan Opera House de Nova York.

Abaixo, reprodução da capa do
libreto original da estreia em 1870 de
O Guarani, ópera de Carlos Gomes
baseada no romance homônimo de
José de Alencar. "O Guarani" foi o primeiro
e ainda hoje o maior sucesso internacional
de uma ópera de compositor brasileiro









A partir do século 19, destaca o autor de “As Encantatrizes”, a ópera escolherá seus personagens não somente no repertório da mitologia clássica, mas também na crônica social e mundana – em exemplos patentes como a cigana Carmen, que a partitura de Bizet adaptou da novela romântica de Prosper Merimée, ou a cortesã Violeta de "La Traviata", de Verdi, por sua vez baseada no romance "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho – personagens que também tiveram versões memoráveis no último século no cinema e nos palcos de teatro do mundo inteiro.

As Encantatrizes” de Starobinski convida o leitor a uma extensa e sofisticada viagem no tempo, em visita a alguns dos principais compositores, suas obras e, claro, as grandes atrizes/cantoras – objeto central do estudo apresentado. As cenas políticas, sociais e estéticas da Europa do século 18 e 19 são desvendadas sob a ótica da ópera enquanto gênero de espetáculo, muitas vezes considerada como a melhor tradução para o espírito da época.













Resumo da ópera: do canto lírico para a
mise-en-scène dos estúdios de Hollywood
e do cinema europeu,  a partir do alto,
Greta Garbo e Robert Taylor em cena de
"Camille" (1936), primeira versão do cinema
falado para o romance "A Dama das Camélias",
de Alexandre Dumas, também adaptado por
Verdi para La Traviata. Acima, duas versões
emblemáticas do cinema para a ópera
Carmen, de Bizet: Rita Hayworth em cena com
Glenn Ford no filme "Os Amores de Carmen",
dirigido em 1948 por Charles Vidor; e
Laura del Sol com Antonio Gades em
"Carmen", filme de 1983 de Carlos Saura. 

Abaixo, Vivien Leigh em
"Anna Karenina", filme de 1948, com direção
do francês Julien Duvivier, baseado no romance
do russo Liév Tólstoi que teve sua primeira
versão para ópera em 1904, pelo compositor
italiano Edoardo Granelli. Também abaixo, uma
diva do cinema italiano, Claudia Cardinale,  no
grandiloquente "O Leopardo", filme de 1963 de
Luchino Visconti, cineasta e também diretor de
suntuosos espetáculos de ópera e de teatro.
Em O Leopardo, baseado no romance de
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Cardinale
contracena com Alain Delon (foto do beijo),
além de Burt Lancaster e grande elenco














Didático, minucioso, poético, Starobinski revela os bastidores da apresentação de espetáculos memoráveis, como as primeiras adaptações musicais dos dramas, tragédias e comédias de William Shakespeare (1564-1616), assim como os sucessos instantâneos e duradouros de obras como “As Bodas de Fígaro” – imortalizada pela montagem em quatro atos, de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou em 1786, em Viena, com libreto em italiano.


Semiótica da recepção


Não por acaso citada por Starobinski entre as óperas mais populares de todos os tempos, “As Bodas de Fígaro” foi uma criação original do francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1700), também autor de “O Barbeiro de Sevilha”. Com seu estudo centrado na união das palavras “encantar” e “cantatriz”, em francês “enchanteresses”, como indica o título do livro, Starobinski percorre a trajetória dos grandes clássicos, mas justifica que escolheu retratar em destaque personagens sempre no feminino.

A figura feminina domina a cena e cada partitura que sobreviveu ao tempo, apesar de existirem protagonistas masculinos, também presentes na trajetória que o livro percorre, ainda que em segundo plano. Mais que um esforço de enumeração histórica, ao resgatar dos gêneros da narrativa e do espetáculo às questões de compasso musical e de perspectiva geométrica do campo de visão, “As Encantatrizes” vai muito além dos domínios restritos à ópera.









Contrastes da Ópera Contemporâneaacima,
Phillip Addis, Carla Huhtanen e Patrick Jang em
2010, na montagem de As Bodas de Fígaro,
de Mozartpatrocinada pela companhia
Elgin Theatre de Toronto, Canadá.

Abaixo, Parsifal, de Wagner, na montagem
experimental de 2005, realizada em Los Angeles,
sob o comando de Bob Wilson; e as experiências
em 3D de Pina, documentário de 2011 de
Wim Wenders que reúne dança com ópera
e novas tecnologias em homenagem a
Pina Bausch, coreógrafa, dançarina,
pedagoga da dança e diretora da
Tanztheater Wuppertal, companhia
de balé da Alemanha. Pina morreu em
2009, aos 68 anos, após o término
das filmagens com Wenders










Erudito ao extremo e narrador hábil, Starobinski alcança conceitos e teorias mais recentes sobre a Semiótica da Recepção, terreno que o italiano Umberto Eco e o francês Roland Barthes estenderam de forma pioneira às artes em geral e aos processos midiáticos e técnicos que proliferaram nas últimas décadas. Eco e Barthes também são lembrados e citados no mergulho em profundidade que Starobinski faz no mundo da ópera, assim como Erich Auerbach, René Wellek, George Steiner, Harold Bloom...

Na investigação esquadrinhada por Starobinski, poesia e teoria direcionam o entendimento acerca do fenômeno que o espetáculo há séculos perpetua: “Nas mais belas representações operísticas percebe-se a dupla energia de uma memória que persevera e de uma imaginação que inventa. No momento do espetáculo, e desde que a encenação não o prejudique, se produz o único encantamento no qual, nós, retardatários, somos admitidos”. 


 








Resumo da ópera: três nomes da ópera italiana
que marcaram o século 20 –– a partir do alto,
1) Renata Tebaldi (1922-1974), que rivalizou
com Maria Callas no posto de maior soprano,
paramentada como Tosca, na montagem de 1951 do
La Scala; 2) o tenor Luciano Pavarotti (1935-2007),
que popularizou a ópera e disputou recordes de
venda de CDs e DVDs com estrelas do rock
e da música pop; e 3) o mestre das montagens
líricas e também um grande nome do cinema,
Luchino Visconti (1906-1976), em 1963 (acima),
durante as filmagens de O Leopardo, e com
Maria Callas e Leonard Bernstein (abaixo),
em Milão, em 1955, nos bastidores da montagem
da ópera La Sonnambula, de Vicenzo Bellini.

Também abaixo, três fotografias de Cecil Beaton:
Maria Callas no célebre retrato de 1955 em estúdio,
nas versões em preto e branco e em cores; e uma cena
de flagrante dos bastidores do editorial fotografado
por Beaton em junho de 1948 para a revista "Vogue"



















Ao final do percurso investigativo e analítico que Starobinski empreende em "As Encantatrizes", como nas melhores montagens dos clássicos presenciados ao vivo pelas plateias, resta ao leitor um sentimento que para alguns talvez possa ser definido como fascinação. Para outros, uma impressão difusa pela recompensa de ter encontrado nas teses do pesquisador de Genebra algumas respostas sobre a complexidade do estranhamento que o espetáculo operístico proporciona. 

Na conclusão que o autor alcança, depois das teorias e muitas trajetórias alinhavadas em pouco mais de 300 páginas, a fascinação dos sentidos e o encanto declarado pela complexidade se equivalem. Não por acaso, encanto e fascinação são os mesmos sentimentos que fazem a ópera transcender o passado e ainda assombrar o presente.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Resumo da ópera. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/resumo-da-opera.html (acessado em .../.../...).



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Resumo da ópera: acima, dois momentos
distintos e históricos do canto lírico, com
a diva Maria Callas em “Habanera”, ária
da ópera Carmen, que a partitura do
francês Georges Bizet adaptou do
romance de Prosper Merimée; e
Luciano Pavarotti com Grace Jones
interpretando ao vivo, em 2002, em
Angola, África, uma ária da ópera
Werther, do francês Jules Massenet,
baseada no romance do alemão
Johann Wolfgang von Goethe










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