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16 de junho de 2025

Crônica do Bloomsday

 



A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.

–– James Joyce, “Ulisses”.  

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O argentino Jorge Luis Borges, uma referência da literatura do século 20, ficaria cego, gradualmente, a partir dos 55 anos, devido a uma condição hereditária, provavelmente glaucoma ou uma doença degenerativa da retina. Apesar da perda da visão, Borges continuou a produzir obras literárias até o fim da vida, quando morreu em Genebra, na Suíça, em 1986, aos 88 anos. Ele sempre soube que perderia a visão, pois o destino da cegueira era hereditário: seu pai, seu avô e seu bisavô também ficaram cegos. Lembro de Borges porque a data de hoje, dia 16 de junho, remete a outra referência incontornável da literatura universal: é a data do Bloomsday, em que os amantes da literatura, e da literatura de James Joyce, em especial, celebram Leopold Bloom, protagonista de “Ulisses”, romance de Joyce que se passa em 16 de junho de 1904.

O fascínio de Borges por Joyce, e mais ainda por “Ulisses”, por certo vem de algumas coincidências existenciais e da força capital que o tempo e a eternidade, em seus componentes de circularidade e repetição, têm na literatura de Borges e também em James Joyce. Borges menciona o autor irlandês muitas vezes em seus escritos e dedicou a ele diversos artigos e ensaios. Quando se consulta as versões on-line do Catálogo Bibliográfico Completo e do Catálogo de Artigos na Imprensa, organizados pela La Maga: Associación Borgesiana de Buenos Aires, é possível encontrar muitos textos de Borges em que Joyce é o tema central ou está citado no argumento das abordagens sobre outros autores.









Crônica do Bloomsday: no alto e acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund para uma reportagem da
revista Time
em 1939, no apartamento em que morou
de 1935 até 1939, na Rue Edmond Valentin, em Paris.
Joyce, que era supersticioso e não gostava de ser
fotografado, concordou, aconselhado por sua editora
Sylvia Beach, depois de saber que o sobrenome de
casada de Giséle Freund era Blum, em conexão óbvia
com Leopold Bloom, personagem de “Ulisses”.

Abaixo, vista da O’Connel Bridge, sobre o rio Liffey,
em Dublin, capital da República da Irlanda, terra natal
de James Joyce, em fotografia de 1905






Páginas de 'Ulisses'


Os artigos de Borges trazem referências muito poéticas sobre suas leituras da obra de Joyce – com destaque para os que foram publicados na revista semanal El Hogar, na qual Borges foi colunista entre 1936 e 1939. Na seção “Libros y autores extranjeros: Guía de lecturas”, Borges publicava artigos, resenhas e traduções fragmentadas de autores de outros idiomas além do espanhol. Joyce já havia sido abordado por ele em textos publicados em outros periódicos, os primeiros deles em Proa, revista literária fundada pelo próprio Borges em 1922, ano da publicação do “Ulisses” de Joyce. Os longos artigos em Proa, com os títulos “El ‘Ulises’ de Joyce” e “La última hoja del ‘Ulises’”, foram publicados na mesma edição, em janeiro de 1925, apenas três anos após a primeira edição do romance pela Shakespeare & Company, com sede em Paris.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund em 1939. Abaixo, Joyce
nas duas vezes em que foi a reportagem de capa da
revista Time, em janeiro de 1934 e em maio de 1939







Sobre Joyce, na El Hogar, Borges publicou “Joyce e Yeats” (em outubro de 1936); “James Joyce” (em fevereiro de 1937); “Ulysse”, sobre a tradução do romance de Joyce para o francês (em fevereiro de 1938); e “El último libro de Joyce”, sobre o lançamento de “Finnegans Wake” (em junho de 1939), que deixou Borges fascinado pela variedade de fios narrativos "mágicos" e pela fusão de palavras do inglês com outras línguas. Na mesma época, Borges publicaria artigos sobre Joyce na Sur, revista fundada em 1931 por sua amiga muito próxima, a escritora Victoria Ocampo. Na Sur, Joyce foi o tema dos artigos de Borges “Joyce e los neologismos” (em novembro de 1939) e “Fragmento sobre Joyce” (em fevereiro de 1941).


Obra de muitas gerações


Os dois artigos mais poéticos de Borges sobre Joyce estão na El Hogar. No primeiro, em fevereiro de 1937, Borges escreveu: “Mais do que a obra de um só homem, ‘Ulisses’ parece de muitas gerações” – concluindo com uma confissão muito pessoal e definitiva: “A delicada música da prosa de Joyce em ‘Ulisses’ é incomparável.” O segundo artigo, publicado em junho de 1939, aborda “Finnegans Wake”, mas faz citações a “Ulisses”, em tom de profunda melancolia, quase que anunciando o horror da Segunda Guerra Mundial, que já se desenhava no horizonte, com as tropas da Alemanha Nazista ocupando a Polônia em 1º de setembro de 1939 e invadindo mais 11 países nos meses seguintes, transformando o conflito local em uma guerra mundial.






Crônica do Bloomsday: acima, James Joyce
fotograf
ado por Giséle Freund. Abaixo, o casal
Joyce e Nora Barnacle na época em que
se conheceram em Dublin, em 1904




Às vésperas da Segunda Guerra, Joyce foi viver para França. “Ulisses” trouxe fama internacional, mas não impediu que ele vivesse angustiado e com destino de navegador errante por diversos países e endereços, numa jornada que remonta a referências da Antiguidade Clássica do personagem de Homero, do qual ele se apropriou em seu romance. Em uma carta a sua amada Nora Barnacle, ele definiu a si mesmo como “um homem solitário, insatisfeito, orgulhoso”. Diziam os amigos que, em público, Joyce era silencioso, lacônico, distante, com hábitos simples e rígidos na vida cotidiana que o levavam a comer sempre o mesmo prato, no mesmo restaurante, no mesmo horário, todos os dias.


Pavor de raios e trovões


Joyce também tinha problemas nos olhos e fez várias cirurgias que não foram suficientes para evitar o avanço do glaucoma. Seu drama com o avanço da cegueira é um dos temas de “Pomes Pennyeach” (Poemas, um tostão cada), publicado em 1927. Também era supersticioso, além de ter pavor incontrolável diante de raios e trovões, e teologia era um dos assuntos que, invariavelmente, despertavam seu interesse. Talvez por tudo isso certas críticas negativas provocassem nele imensa tristeza – críticas negativas tais como a de Virgina Woolf, que classificou “Ulisses” como “uma catástrofe memorável; imenso em atrevimento, terrível como um desastre” e recusou publicá-lo na The Hogarth Press. No artigo de junho de 1939 na El Hogar, Borges escreveu: “James Joyce, agora, vive num apartamento em Paris, com a sua mulher e os seus dois filhos. Vai sempre com os três à ópera, é muito alegre e muito conversador. Está cego.”








Crônica do Bloomsday: um fotógrafo anônimo
encontrou
James Joyce e Nora Barnacle a caminho
do casamento oficial no cartório, em Dublin, em 1931,
acompanhados de Fred Monro, advogado de Joyce,
que recomendou sobre a importância do
registro oficial de casamento.

Abaixo, uma página datilografada de “Ulisses”
com as inúmeras correções feitas a caneta por Joyce





James Joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882, o mais velho de 10 crianças em uma família que passou rapidamente da riqueza à pobreza. Apesar das dificuldades, teve educação privilegiada como bolsista em uma escola jesuíta e no University College de Dublin. Sua estreia como autor foi aos 17 anos, quando publicou na Fortnightly Review o ensaio “The New Drama”, estudo sobre a obra do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Três anos depois, aos 20 anos, foi para Paris, com a intenção de estudar medicina, mas acabou trocando as ciências médicas pela dedicação à literatura e à leitura de seus autores preferidos naquela época, Dante, Shakespeare, Homero e Aristóteles.


As confissões eróticas


Em 1903, ele regressaria a Dublin, por causa da doença da mãe, que faleceu logo depois. No verão de 1904, ainda em Dublin, Joyce conheceu seu grande amor, Nora Barnacle, que se tornou sua companhia inseparável. Joyce tinha 22 anos; Nora, 20. A data da primeira vez que fizeram sexo é o dia 16 de junho de 1904, escolhida para a trama de “Ulisses”, sendo Nora sua inspiração para a personagem Molly Bloom. Pouco tempo depois, Joyce e Nora fogem de Dublin e saem em uma longa viagem pelo continente. Passaram alguns meses em Pula, na atual Croácia, e no ano seguinte foram morar em Trieste, na Itália, onde viveram até 1915, com Joyce no trabalho ocasional como professor de inglês. Tiveram dois filhos, registrados com nomes italianos, Giorgio e Lucia, e estiveram separados apenas por breves períodos em que Joyce viajou a Dublin. As cartas de Joyce para Nora, cheias de confissões eróticas, foram escritas nestas ocasiões.



            


Crônica do Bloomsday: acima, o casal Joyce e Nora
em fotografia da década de 1920. Abaixo, Joyce em
Zurique, em 1915, e uma cena do filme “
Nora”, lançado
no ano 2000, com direção e roteiro de
Pat Murphy, que
tem 
Ewan McGregor no papel de James Joyce
e
Susan Lynch como Nora Barnacle



         



O primeiro livro de poemas de Joyce, “Música de Câmara”, foi publicado em Londres em 1907. “Dublinenses”, seleção de 15 contos com ambientação em Dublin, teve primeira edição em 1914, no início da Primeira Guerra, época em que começou a escrever os rascunhos para “Ulisses”. A participação da Itália na guerra levou o casal a fugir novamente, em 1915, de Trieste para várias cidades da Suíça, até fixarem residência em Zurique, onde permanecem até 1919. Em Zurique, Joyce publica dois livros: “Retrato do artista quando jovem”, em 1916, e “Exílados”, em 1918.

"Retrato do artista quando jovem" pode ser definido como um romance 
de formação (Bildungsroman), pontuado de referências autobiográficas, sobre o amadurecimento existencial do personagem que iria retornar em "Ulisses", Stephen Dedalus, alter ego do autor, em sua trajetória da infância à idade adulta. O segundo livro trazia uma peça de teatro, a única que escreveu – uma reflexão sobre a formação de um triângulo amoroso entre um artista de vanguarda, Richard Rowan, um jornalista, Robert Hand, e a mulher de Richard, Bertha, que vai relatando ao marido cada passo das investidas do rival. "Exilados" (também traduzida para o português como "Exílios") remete, entre simetrias e alusões, a “Os mortos”, último conto de “Dublinenses”, e também a “Ulisses”.






Crônica do Bloomsday: acima, Joyce em 1914,
na época em que morava em Trieste, na Itália,
fotografado por seu irmão Stanislaus, tendo ao fundo
Nora e os dois filhos do casal, Lucia e Giorgio.

Abaixo, Joyce em Paris, em fotografia de 1939
de Giséle Freund, discutindo o lançamento do que
viria a ser seu último livro, “Finnegans Wake”,
com as editoras da Shakespeare and Company,
Sylvia Beach e Adrienne Monnier; e Joyce
em frente à sede da editora em Paris, em 1922,
com Sylvia Beach, fotografados por Noel Riley.

Também abaixo, Joyce homenageado em 1935
por Jacques-Emile Blanche em um retrato pintado
em óleo sobre tela. No final da página, a e
státua
instalada sobre o túmulo de James Joyce no
Cemitério Fluntern, em Zurique, na Suíça.


                

  



Fluxos de consciência


Ulisses”, a obra magna de Joyce, foi editada e lançada por sua amiga Sylvia Beach na Shakespeare & Company em 2 de fevereiro de 1922, dia do aniversário de 40 anos do autor. Repleto de referências à obra de Homero e de alusões a Shakespeare, à Bíblia e a outros clássicos, o romance recria um dia na cidade de Dublin, aquele dia 16 de junho de 1904, narrando a vida cotidiana de Leopold Bloom, um vendedor de anúncios publicitários. Ao longo de 24 horas, que a narração divide em 18 episódios, Bloom é comparado ao herói grego Ulisses, experimentando encontros, desencontros e reflexões em fluxos de consciência que elevam o trivial do cotidiano a um nível épico. O enredo, que segue a estrutura da "Odisseia" de Homero, apresenta como personagens centrais Leopold Bloom, seu amigo Stephen Dedalus, jovem intelectual, e Molly Bloom, esposa de Leopold, que está envolvida em um caso extraconjugal. 

Um dos motores da narrativa é a interação entre Leopold e Stephen, que o influencia em relação à arte e ao pensamento, sintetizando o encontro de duas gerações e duas formas distintas de entender o mundo. A relação entre Leopold e Stephen, complexa e multifacetada, surge como uma jornada de descoberta mútua e uma busca de sentido espiritual. Leopold Bloom é um homem de meia-idade, enquanto Stephen é um jovem escritor e artista, ambos vivendo em Dublin. A narrativa os une através de uma série de encontros fortuitos, com Bloom vendo em Stephen um filho substituto e Stephen encontrando em Bloom um pai ausente, em aproximações com a relação entre Odisseu e Telêmaco na mitologia grega. Em contraponto, Molly Bloom traz um paralelo irônico com a Penélope da “Odisseia”, a esposa fiel do Ulisses de Homero.






A edição de “Ulisses” em inglês, considerada pelas autoridades oficiais uma obra pornográfica, foi proibida na Inglaterra, nos Estados Unidos e nos países anglo-saxônicos, o que contribuiu para Joyce se tornar o assunto principal dos círculos intelectuais e terminar reconhecido como o autor mais célebre de sua época. O livro se tornaria uma referência para toda a literatura modernista, mas só teve autorização para publicação nos Estados Unidos em 1933. Na Inglaterra, só foi publicado em 1936. Na Irlanda, terra natal do autor, nunca foi oficialmente proibido, mas a censura alfandegária impediu sua ampla circulação até a década de 1960. O leitor brasileiro também teve que esperar durante décadas pela primeira edição do livro de James Joyce, o que só aconteceu em 1966, com a tradução feita por Antônio Houaiss para publicação pela Civilização Brasileira.

“Ulisses” teve mais duas edições no Brasil. Em 2005, Bernardina da Silveira Pereira fez a segunda tradução, publicada pela Editora Objetiva. A terceira tradução foi feita por Caetano Galindo e publicada em 2012 pela Companhia das Letras em parceria com a Penguin Classics, que teve revisão e nova edição em 2022. Há, também, uma nova edição com 18 tradutores, um para cada capítulo, anunciada pela Ateliê Editorial. Além das traduções integrais, fragmentos de “Ulisses” foram traduzidos por outros autores, entre eles Pagu, Erasmo Pilotto, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. O livro de Joyce também mereceu análises dos principais nomes da intelectualidade no Brasil desde o primeiro momento. O primeiro foi Mário de Andrade, que escreveu sobre sua leitura de “Ulisses” no artigo “Da fadiga intelectual”, publicado na Revista do Brasil, em junho de 1924. Meses depois, em dezembro, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo com o título “Ulisses”, no qual descreve o romance de James Joyce como “reportagem taquigráfica de flagrantes mentais”.

Joyce estava aclamado como escritor quando morreu em Zurique, em 1941, prestes a completar 59 anos. Nora, desde então, passou a viver reclusa, na solidão, e também morreu em Zurique, em 1951. Para concluir, vale lembrar que depois de tantos textos e de tantas análises, de Borges e de tantos leitores, anônimos ou célebres, o melhor mapa de leitura de "Ulisses" talvez ainda seja o esquema elaborado pelo próprio Joyce para ajudar um amigo, o escritor e tradutor italiano Carlo Linati, no entendimento e na interpretação de sua obra monumental. O certo é que a literatura nunca mais seria a mesma depois daquele dia 16 de junho de 1904.


por José Antônio Orlando

Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Crônica do Bloomsday. In: Blog Semióticas, 16 de junho de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/06/cronica-do-bloomsday.html (acesso em .../.../…).

 

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2 de fevereiro de 2013

Bodas do 'boom'






Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria
ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma
catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo
que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?
–– Umberto Eco, "Sobre a literatura" (2002).  

 
Foi no início da década de 1960 que leitores do mundo inteiro tiveram as primeiras notícias sobre uma nova safra de grandes escritores de países da América Latina. Surgiam nomes que pelas afinidades ou pelas semelhanças de estilo e temática pareciam formar um grupo organizado, como os argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares; o colombiano Gabriel García Márquez; os peruanos Carlos Castaneda, José María Arguedas e Mario Vargas Llosa; os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante; os mexicanos Juan Rulfo, Octavio Paz e Carlos Fuentes; os chilenos Pablo Neruda, Violeta Parra e José Donoso; o guatemalteco Miguel Ángel Asturias; os bolivianos Gastón Suárez e Marcelo Quiroga Santa Cruz; os venezuelanos Salvador Garmendia e Miguel Otero Silva; o nicaraguense Ernesto Cardenal; o paraguaio Augusto Roa Bastos; os uruguaios Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano; ou os brasileiros Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros – alguns deles presentes em todas as listas que se referem ao "boom", outros sem alcançar o lugar de classificação unânime ou só incluídos a partir das décadas seguintes.

A novidade: a literatura que estes autores apresentavam a leitores da Europa, dos Estados Unidos e de outros países era bastante diferente do lugar comum e imprevisível em suas variações de romances, novelas, contos, poemas. Mas, ao mesmo tempo, trazia semelhanças com clássicos da Literatura Universal, com recursos do fantástico e do mundo das fábulas a conduzir narrativas primorosas sobre a vida real nos trópicos, na periferia do capitalismo, nos confins da América Central e da América do Sul. Com seus impasses rurais e urbanos de toda ordem, seus fantasmas e assombrações muito peculiares e suas interfaces de magia, de insólito, de sobrenatural, de crueldade, a nova literatura da América Latina surgia com um inesperado sucesso de crítica e de vendas, surpreendendo até os mais céticos e seduzindo uma multidão de novos leitores pelo mundo afora.

O inumano, a metalinguagem e seres do mundo da imaginação invadiam de forma poética narrativas que muitas vezes fugiam às categorias estanques de gênero ou tornavam relativas estas fronteiras, quase sempre com destaque no viés de crítica aos dramas da realidade social – daí a definição que abarcaria grandes autores e obras da América Latina daquele momento: o “boom” do Realismo Mágico ou Realismo Fantástico ou Realismo Maravilhoso, nomenclatura sujeita a sutilezas de classificação e que também não alcança unanimidade entre críticos e teóricos da literatura ou dos estudos culturais. Sobre todos, há pelo menos um consenso: Borges, que foi um dos patronos e antecessores do grupo. Com seus textos híbridos entre ensaio e ficção, em que o assunto é quase sempre a própria literatura, reunidos em livros como “Ficciones” (1944) e “El Aleph” (1949), Borges é o primeiro nome do “boom” a alcançar o leitor médio e a crítica acadêmica do Primeiro Mundo (veja também "Semióticas: Outros Borges").













Gigantes no "boom" do Realismo Mágico:
no alto e acima, Cortázar em Paris, em 1964,
no quarto de trabalho e às margens do
Rio Sena, fotografado por Pierre Boulat.
Acima, Borges em Buenos Aires. Abaixo,
os amigos se encontram: Julio Cortázar
e Carlos Fuentes; Cortázar, Fuentes e o
cineasta Luis Buñuel; Cortázar em Cuba com
José Lezama Lima;
Gabriel García Márquez
com Cortázar;
Ernesto Cardenal com
Eduardo Galeano e
Cortázar no México, em
1980; e Carlos Fuentes, Juan Carlos Onetti,
Emir Rodríguez Monegal e Pablo Neruda
no Chile, em 1970.

Também abaixo, Borges em Nova York,
em 1969, fotografado por Diane Arbus;
e a capa de Los Nuestros, livro de 1966
de Luis Harss relançado em 2012, em
espanhol, pela Editora Alfaguara







 
 
 
 
 














Mais de quatro décadas depois das primeiras edições de seus livros em espanhol, Borges finalmente seria publicado em francês, em inglês, em italiano, em português e em outros idiomas pelo mundo afora. Sua literatura, encadeada em textos breves e da maior complexidade, surge para seus compatriotas e para seus leitores estrangeiros com a originalidade de uma “obra aberta”  como definiria com propriedade Umberto Eco, referindo-se a certas possibilidades de cooperação interpretativa nas trilhas da "semiose ilimitada" fundadas pela semiótica de Charles Sanders Peirce.

Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.



Meio século de história



Talvez Borges seja um dos consensos possíveis sobre aquele grupo de autores, mas sempre houve muitas controvérsias sobre as origens e as motivações do “boom”. Sabe-se que o termo, para se referir à literatura latino-americana, foi usado pela primeira vez por um escritor e jornalista chileno, Luis Harss. No mesmo ano em que Foucault publicava na França “As Palavras e as Coisas”, Harss lançava seu livro “Los Nuestros”, em que mistura depoimentos, reportagem e crítica para investigar o fenômeno da repercussão internacional de certas obras e certos autores, algo sem precedentes na literatura da América Latina.

O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
 












Harss destaca entre os autores do grupo uma nova relação com a linguagem da forma literária, francamente experimental e política, e propõe um marco inaugural: várias foram as publicações que prepararam o terreno, incluindo as primeiras edições de Borges na França, na segunda metade da década de 1950, além de títulos importantes de outros autores nos anos seguintes, mas ele situa em 1963 o primeiro grande momento do “boom” latino-americano, com a publicação simultânea em espanhol, francês e inglês de um livro ímpar: “Rayuela” (no Brasil, “O jogo da amarelinha”), de Cortázar. Pelas coordenadas traçadas por Harss, o “boom” completa, em 2013, 50 anos de história.

Do Terceiro Mundo para o Velho Mundo: a partir de uma reflexão sobre a situação política e social da América Latina, autores em países diferentes, e que sequer se conheciam, transformaram em literatura da melhor qualidade, na mesma época, os absurdos e o insólito da vida cotidiana. Povoada de tradições exóticas e de cenários desconhecidos, repleta de apelos ao sobrenatural, a literatura da América Latina pela primeira vez ganharia projeção internacional, passando a exercer considerável influência sobre a obra de importantes pensadores e ficcionistas até nossos dias, incluindo, entre muitos outros, Italo Calvino, José Saramago, Susan Sontag, Umberto Eco, Homi Bhabha, Salman Rushdie, Roberto Bolaño.












Viagem a Paris: três expoentes do “boom”

e suas esposas, em foto de 1969 – a partir

da direita, Mario Vargas Llosa e Patricia;

José Donoso e Pilar; Mercedes e Gabriel

Garcia Márquez. Também acima, a capa

de junho de 1967 da revista Argentina

Primera Plana, publicação pioneira ao

destacar os autores do boom e o

lançamento de Cem anos de solidão,

e fotografias dos arquivos de García Márquez. 


Abaixo: 1) um encontro de García Márquez e

Vargas Llosa em fevereiro de 1976, época

em que os dois romperam relações por conta

de ciúmes conjugais e pelas posições políticas

de Vargas Llosa de apoio a políticos de direita

e às ditaduras militares na América Latina;

2) Pablo Neruda e García Márquez brincam

com a pose de uma estátua na Normandia,

em visita à França, em 1969; 3) Pablo Neruda

em visita ao Brasil em 1945, fotografado na

praia de Ipanema, no Rio de Janeiro;

4) Vinicius de Moraes e Pablo Neruda em

visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em 1968;

5) García Márquez com Jorge Amado em

Salvador, Bahia, na década de 1970, fotografados

por Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado;

6) García Márquez em Barcelona, em 1970;

7) García Márquez e Carlos Fuentes na

Feira do Livro de Barcelona em 2008;

e 8) García Márquez no Méxicofotografado por

Daniel Mordzinski em 2009, quando declarou

em entrevista ao jornal El País que havia se

aposentado e que não pretendia mais escrever






















 




 
Contudo, do lado de dentro das fronteiras de cada país do continente latino-americano, o contexto político daquele momento histórico era explosivo e dos mais sombrios. A resposta à Revolução Cubana em 1959 foram, nos anos seguintes, os regimes de exceção e as ditaduras militares, instaladas simultaneamente na maior parte dos países da região com apoio dos Estados Unidos. Esta nova realidade, que despertou uma mistura de sentimentos de utopia e desejo de justiça, também gerou alegorias transformadas em obras-primas da Literatura Universal.



Da América Latina à Europa



O estudo publicado em 1966 por Luis Harss já apontava para as semelhanças e diferenças – tanto entre obras e autores incluídos no “boom” do Realismo Mágico, quanto entre este movimento e as vanguardas modernistas nas primeiras décadas do século 20. Se é inquestionável que o “boom” produziu obras-primas que permanecem há mais de meio século como influência e referência, também é certo que ele nunca teve qualquer padrão estético coeso. Em outras palavras, parodiando um célebre aforismo sobre Minas Gerais de Guimarães Rosa, também ele um expoente entre estas referências: no “boom”, são vários.













Em sua grande maioria, os autores do “boom” sempre estiveram comprometidos com apoio aos movimentos populares de resistência à censura e à repressão instaladas pelas ditaduras militares em seus países de origem. Alguns deles foram exilados e outros, como Cortázar, chegaram a empreender jornadas internacionais pela Anistia e pelos Direitos Humanos, mas nenhum deles chegou a apresentar algum manifesto ou programa de ação – prática frequente da militância entre as vanguardas da arte no começo do século 20.

Pelo contrário. Não houve nenhum “alinhamento”, nenhuma “meta programática”. Tanta variedade e liberdade acabou fornecendo fôlego às críticas: os detratores do “boom” existem, ainda que sem grande influência ou ressonância, e costumam se apegar ao argumento de que o grupo não tinha coesão e que tudo não passou de marketing editorial. Mas talvez tal argumento seja mesmo um equívoco: afinal, as obras-primas lançadas naquele período são um contraponto inquestionável.

A diversidade de autores e obras nomeados com o rótulo de Realismo Mágico é evidente. Basta lembrar que um dos destaques incluídos no “boom” foi o cânone maior da literatura do Brasil, Machado de Assis (1839–1908), um mestre do século 19, traduzido e publicado nos Estados Unidos e na Europa na mesma época e no mesmo pacote editorial que reunia, entre outros “estreantes”, Borges, Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, García Márquez, Guimarães Rosa, Jorge Amado (veja também "Semióticas: O Bruxo e a crítica internacional").






Machado de Assis: cânone brasileiro
do século 19 surge em destaque no
mesmo pacote literário e comercial
dos autores latino-americanos do
"boom" do Realismo Fantástico









Contracultura, o contexto libertário



Também há controvérsias quanto ao tempo de duração do “boom”, mas com frequência se destaca o período que vai de 1963, com a publicação de “Rayuela”, até, para alguns, a data de 11 de setembro de 1973, com o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile, enquanto para outros o período se estende até 1982, ano em que se concede o Prêmio Nobel de Literatura a García Márquez. Não por acaso, é também no ano de 1982 que muitos países da América Latina começam o retorno a regimes democráticos, depois dos tempos sombrios de violência e censura das ditaduras militares. Mas este período historiográfico também não deixa de ser uma demarcação aleatória, sujeita a variáveis – há quem defenda também outros eventos para a demarcação inicial, entre eles o marco em 1962, ano da publicação de “Historias de cronopios y de famas”, de Cortázar, ou em 1959, ano da Revolução Cubana.

As controvérsias e questionamentos fazem todo sentido, ainda mais que os nomes principais do “boom” haviam publicado muito antes de 1963 e continuaram a produzir e publicar até muito depois do ano de 1982. Outras datas com frequência apontadas como marcos de importância para assinalar o fim, ou mesmo para um novo renascimento do “boom”, incluem o ano de 1986, quando morreu Borges, decano do grupo, ou o ano de 2010, quando outro baluarte do movimento que destaca a literatura da América Latina, o peruano Vargas Llosa, também seria condecorado com o Prêmio Nobel de Literatura.







D




Três obras de Borges que foram adaptadas
com sucesso para o cinema: acima, uma cena
de A Estratégia da Aranha, filme de 1970
com direção de Bernardo Bertolucci; e
Borges durante as filmagens de Invasión,
filme de 1969 de Hugo Santiago com roteiro
de Borges e Adolfo Bioy Casares (na foto,
a partir da esquerda, o diretor de fotografia
Ricardo Aronovich, o cineasta Hugo Santiago,
Jorge Luis Borges e o ator Lautaro Murúa);
no alto, cartaz de A Intrusaco-produção
entre Brasil e Argentina, de 1979, com
direção de Carlos Hugo Christensen.
Abaixo, uma cena do filme de 1965
A hora e a vez de Augusto Matraga,
versão do cineasta Roberto Santos
para o conto que encerra "Sagarana",
livro de João Guimarães Rosa.

Também abaixo, o fotógrafo no estúdio
em Blow Upversão de 1967 de
Michelangelo Antonioni para o
Cortázar de Las Babas del Diablo;
Week-End à Francesa, versão também
de 1967 de Jean-Luc Godard para a
narrativa A auto-estrada do sulde
Cortázar; e uma cena de Erêndira,
filme de 1983 de Ruy Guerra com
roteiro de García Márquez baseado
em sua novela La increíble triste
historia de la cândida Erêndira
y de su abuela desalmada







A descoberta da literatura da América Latina por leitores do Primeiro Mundo vem no contexto libertário da Contracultura – tempos da Guerra Fria, da novidade da TV e da dominação cultural norte-americana avançando pelos cinco continentes. É também a época em que ganham força protestos da juventude, o recém-criado rock'n'roll, o movimento estudantil, mobilizações pelos direitos civis, as passeatas pacifistas, as rupturas lançadas pelo comportamento inconformista e pela literatura libertária da geração beat – por sua vez mentores e avatares da experiência em sociedades alternativas, em viagens esotéricas de autoconhecimento, em religiões orientais, em rituais de shamanismo e de alucinógenos.

Neste cenário, o “boom” da literatura latino-americana encontra terreno fértil. Rapidamente assimilado, desatou a imaginação de leitores e de outros autores, convocou o humor e a ironia em situações das mais alegóricas e criou novas formas narrativas que foram absorvidas pela Literatura Universal. Não é um legado pequeno, ainda que seja possível estabelecer toda uma rede de filiações dos escritores do “boom” a certas obras e autores como James Joyce, William Faulkner, Franz Kafka – com reflexos que transparecem como influência ou referência direta em “Rayuela”, em “Pedro Páramo”, em “Cien Años de Soledad” e em boa parte do que o Realismo Mágico produziu.






Week End (1967)

.



 

As narrativas do trio Faulkner-Joyce-Kafka são fundamentais à literatura do “boom”, mas há outras obras que prevalecem como referência direta, entre elas "As Vinhas da Ira" ("The Grapes of Wrath"), romance de 1939 de John Steinbeck. Virginia Woolf também ganha destaque como forte influência para alguns, caso de García Márquez, Cortázar e Clarice Lispector, assim são referências importantes para vários autores do “boom” os escritos experimentais lançados por Guillaume Apollinaire e todo o Modernismo dos surrealistas franceses. Porém, nem tudo é século 20.

Pairando sobre todos, inevitável, no “boom”, está a sombra de Edgar Allan Poe, além das clássicas novelas de ficção científica, enquanto Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e outros também rendem tributo a Machado de Assis, mestre nas artimanhas do fantástico e nas alegorias construídas no jogo narrativo, não por acaso também leitor devotado e tradutor de Poe. Na lista de mentores e precursores em evidência ainda há Goethe, Byron, Baudelaire, Rimbaud, Flaubert, Swift, Shakespeare, Rabelais, o romance medieval de Cervantes, os contos árabes de Sherazade, a mitologia pagã da Antiguidade, a Torá e os evangelhos da Bíblia Sagrada, entre outros títulos enumerados nas estantes da Biblioteca. Sobre esta rede quase infinita de influências e de precursores, Borges, o visionário, guardou um comentário definitivo: os livros sempre falam entre si e isso não depende de os autores terem se conhecido.


por José Antônio Orlando. 


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Bodas do “boom”. In: Blog Semióticas, 2 de fevereiro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/bodas-do-boom.html (acessado em .../.../…).



Clássicos do Realismo Fantástico nas livrarias:















No alto, "Música de banda" (1960),
fotografia de Juan Rulfo. Acima,
ilustração na capa da primeira edição
de “Cien años de soledad”, de
Gabriel García Márquez, publicada
em 1967 por Editorial Sudamericana.
Abaixo, fotografia de um antigo catálogo
de roteiro turístico da Colômbia indicando
a aldeia fictícia de Macondo criada pela
literatura de García Márquez










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