Sempre
imaginei que o paraíso será
uma espécie de biblioteca.
...............
–– Jorge
Luis Borges (1899-1986).
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“Se
eu tivesse vivido no século 19, seria um mínimo, um anônimo
latino-americano. No nosso século carente de referências
importantes, terminei como objeto de leitura e desperto muita
curiosidade nas pessoas”, disse Jorge Luis Borges em sua última
entrevista, gravada em Buenos Aires pelo jornalista Roberto D’Ávila
e o cineasta Walter Salles em outubro de 1985 e exibida no programa
“Conexão Internacional”, na extinta TV Manchete. Poucos dias
depois da entrevista, concedida à equipe brasileira na casa em que
morou durante décadas, Borges embarcou para a Europa com sua
secretária Maria Kodama e morreu em Genebra, Suíça, em 14 de junho
de 1986, aos 86 anos.
O
mais célebre escritor da América espanhola, o mesmo e sempre um
outro, para muitos uma das referências mais citadas por outros
escritores, pelos acadêmicos e pelos cientistas, Borges também declarou naquela última
entrevista, com sua ironia que não raro desconcertava seus
interlocutores, que seu maior sonho era ser um dia esquecido pelos
leitores. O sonho de Borges, traduzido e publicado em numerosos
idiomas, não foi cumprido: ele, definitivamente, não foi esquecido.
Muito pelo contrário.
Décadas depois de sua morte, o prestígio internacional e a
presença mítica de Borges e sua literatura permanecem em franca
ascensão pelo mundo afora. O estilo muito conciso e erudito, tornado imortal em seus contos
e seus breves relatos sobre a vida e a arte, a cada ano que passa,
retorna com apelo sempre renovado para novos e antigos leitores. O
que não falta nas livrarias são lançamentos e
relançamentos de livros de Borges e sobre Borges.
Entre os lançamentos recentes estão as edições de entrevistas concedidas na década de 1980 pelo escritor, no auge da capacidade criativa e filosófica, na biblioteca de sua casa, ao amigo e jornalista Osvaldo Ferrari. Os 90 encontros produzidos para irem ao ar pela Rádio Municipal de Buenos Aires, que também foram publicados no jornal “Tiempo Argentino”, saem no Brasil em versão integral, em três livros da editora Hedra: “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos”, “Sobre a Filosofia e Outros Diálogos” e “Sobre a Amizade e Outros Diálogos”, todos organizados e traduzidos por John O’Kuinghttons.
Prelúdio para o diálogo
“Tento esquecer todos os muitos preconceitos que tenho e aprendi aquele admirável hábito de supor que o interlocutor tem razão. Podemos estar errados, o interlocutor pode estar tão errado quanto nós, mas, de qualquer forma, o fato de supor que o interlocutor tem razão é um bom prelúdio para o diálogo”, defende Borges com sua ironia característica em “Sobre a Filosofia”.
Outra série de entrevistas concedidas pelo escritor que chegou às livrarias é “Ensaio Autobiográfico”, relançamento da Companhia das Letras, em tradução de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz. A edição reúne a transcrição saborosas das conversas mantidas por Borges com um de seus tradutores, o jornalista norte-americano Norman Thomas di Giovanni.
Em sua maior parte ditados em inglês por Borges a seu interlocutor nos primeiros meses de 1970, os textos do livro tiveram sua primeira publicação na revista “The New Yorker”, contribuindo para popularizar a literatura e a personalidade do escritor entre o público de língua inglesa. Até então, a fama e o prestígio de Borges estavam restritos, fora da Argentina, aos leitores mais eruditos dos países da Europa e ao público universitário, graças a cursos e palestras que o escritor apresentou nos Estados Unidos durante a década de 1960.
No “Ensaio Autobiográfico”, Borges comenta sobre seus ancestrais paternos e maternos, sobre sua infância quase isolada do mundo, suas experiências ruins na escola e aquilo a que ele sempre nomeia como "evento principal" de sua vida: a grande biblioteca de seu pai, da qual ele acreditava "nunca ter saído". A partir dessas primeiras leituras, quase todas em inglês, ele traça a autobiografia literária e intelectual que compõe o cerne do livro.
Muitas outras referências das mais preciosas para compreender a formação e a carreira de um dos escritores mais singulares do último século também surgem no “Ensaio Autobiográfico”. No relato de Borges sobre si mesmo não faltam confissões discretas e pitadas controvertidas de política, entre elas os comentários que deixam transparecer seu ódio por Perón ("em 1946 subiu ao poder um presidente cujo nome não quero lembrar"). A aversão vem do fato de ter sido durante o governo de Perón que um memorando levou Borges a ser "promovido" do cargo de bibliotecário a inspetor de aves e coelhos nos mercados municipais de Buenos Aires.
Um dos mais longos textos de um autor conhecido pela concisão exemplar, "Ensaio Autobiográfico" foi pensado inicialmente para ser uma breve introdução à edição norte-americana de “The Aleph and other stories”, mas acabou ganhando outras dimensões. Além de apresentar e discutir as referências de seu imaginário, Borges faz generosas menções a grandes amigos, como Macedonio Fernández e seu parceiro em algumas obras, Adolfo Bioy Casares. Mas não cita as mulheres ou sua vida amorosa. Ao leitor atento, Borges reserva lições surpreendentes, como a confissão pessoal que encerra o relato:
"Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado". Estava com 71 anos.
Visão de mundo
Entre os lançamentos recentes também está “O Olhar de Borges – Uma Biografia Sentimental” (Editora Autêntica), de Solange Ordóñez, filha Carlos Fernández Ordóñez, advogado de Borges que herdou seus célebres cadernos de rascunhos e morreu três meses após o escritor. No relato de Solange, a aproximação familiar desde a infância com o escritor permite o viés “sentimental” nos estudos e descrições sobre os rascunhos Borges. Nos cadernos, preenchidos dos anos 1920 até os anos 1950, quando perdeu a visão, Borges anotou aforismos, aulas e as primeiras versões de algumas conferências que ministrou.
Também merece destaque nas livrarias “O Século de Borges”, da professora da UFMG Eneida Maria de Souza, relançado depois de dez anos. Editado pela Autêntica, o livro reúne 11 ensaios nos quais Eneida recria o universo de Borges com base em determinadas situações vividas pelo escritor. Temas como o exílio, as guerras, a cegueira e a morte, os grandes dilemas do homem contemporâneo, são avaliados em leitura atenta às particularidades “borgianas” e aos passos de sua biografia.
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“Minha
terra tem palmeiras”, primeiro ensaio do livro de Eneida Maria de Souza, aborda certas questões sobre Borges e a identidade nacional – destacando
que “para o escritor argentino, a pátria, se existe como
identidade, ocupa um espaço imaginário, cujas fronteiras não
coincidem com as da nação”. O mesmo tema é retomado nos ensaios
seguintes, principalmente em “Genebra, 14 de junho de 1986”, que
discute a escolha de Borges por morrer na cidade suíça, que ele
conheceu teria conhecido na juventude.
Segundo
o relato de Borges registrado no programa “Conexão Internacional”,
na passagem pelo Brasil, durante aquela viagem em sua juventude, ele
teria ouvido um serviçal cantar uma canção inspirada no poema
“Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Na entrevista, Borges
cantarola os versos em português, dos quais ele nunca mais esqueceu:
Minha
terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá...
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá...
Em
exercício de maestria em literatura comparada, o ensaio de Eneida
cita os mesmos versos para recorrer ao tema do duplo, muito presente
na obra de Borges, em sua relação com Stevenson, Freud e Oscar
Wilde, entre outros. E lembra que, diferente do romântico brasileiro
Gonçalves Dias (1823-1864), que sonhava morrer em solo pátrio, como
símbolo de um novo nascimento, Borges preferiu morrer no lugar que
simboliza o nascimento, não do corpo, mas do intelectual para o
conhecimento e a literatura.
Outro
lançamento sobre o autor de “História Universal da Infâmia”
(1935) vem da Editora UFMG: “Borges e Outros Rabinos”, de Lyslei
Nascimento, que aborda a apaixonada leitura de Borges sobre elementos
da cultura judaica. Na trilha das referências e citações da Bíblia
e dos símbolos do judaísmo na obra do escritor, o livro é uma
versão da tese de doutorado da autora, que é professora da da UFMG.
“Os
grandes escritores não envelhecem nunca. Muito pelo contrário,
estão sempre atuais. Veja Shakespeare, Cervantes ou Machado de
Assis”, aponta Lyslei Nascimento.
“No caso de Borges, trata-se de uma obra que se confunde com o
próprio conceito de literatura. Ou melhor, é uma literatura
produzida à moda dos rabinos, na qual a verdade está sempre sendo
escrita, sendo construída como um comentário ou uma interpretação,
nunca é completa”. Para a professora, que também coordena o
Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG, Borges encontra na Bíblia uma
das razões de sua revolucionária arte de narrar, construída de
citações e comentários sobre os autores da biblioteca universal.
O cadáver ilustre
“Assim
como no modo judaico de escrita e interpretação da escrita, Borges
reescreve a verdade”, alerta
a professora. “Sua
literatura abole os conceitos de originalidade e de autoria, no papel
de traduzir a tradição da cultura. É uma literatura que prova que
a verdade depende sempre do ponto de vista. Meu objetivo foi ler nos
textos de Borges símbolos como o Aleph, o Golem, a narrativa
policial e os contos sobre a Shoah”, conclui.
Situando-se
às margens das preocupações sociais comuns à maior parte dos
escritores latino-americanos, Borges permanece aberto à pesquisa e
ao diálogo. Como destaca ele próprio, em “Sobre a Filosofia”:
“O diálogo é um dos melhores hábitos do homem, inventado, como
quase todas as coisas, pelos gregos. Os gregos começaram a conversar
e continuamos desde então”.
Herdeiro
de uma cegueira hereditária, Borges, gradativamente, vai ficando
cego a partir dos 45 anos. Por ironia do destino, o avanço da
cegueira coincide com o melhor da literatura que ele iria produzir,
incluindo a publicação de seus livros mais famosos, “Ficções”
(1944) e “O Aleph” (1949), ambos coletâneas de histórias curtas
interligadas por temas como os sonhos, espelhos, labirintos,
bibliotecas, Deus e as religiões.
Nas
palavras de Borges, "os poetas, como os cegos, podem ver no
escuro". É como se o escritor começasse a usar a imaginação
para “enxergar” e criar sua poética a partir da memória visual
de imagens e de leituras armazenadas antes da perda da visão real. A
expressão “ver com os olhos da imaginação” o próprio Borges
retirou de um verso da “Divina Comédia” de Dante Alighieri
(1265–1321): “Poi piovve dentro a l’alta fantasia”.
A
chuva, ao produzir imagens de pouca nitidez, forma uma espécie de
cortina que chega a embaçar a visão: daí a estratégia narrativa
de Borges de assumir máscaras de outros Borges e outros escritores,
reais ou fictícios, assumindo o papel de um ator na ação
imaginária para produzir uma obra literária feita de ecos e
espelhos, calcada na fantasia. Através da invenção literária,
Borges passaria a “enxergar” o que um homem de visão pensa que
vê e o que o cego não parece poder enxergar: a vida inventada
passaria então a fazer parte da existência real, cotidiana.
Os
desdobramentos da literatura de Borges também nos levam até “Tlön,
Uqbar, Orbis Tertius”, conto publicado pela primeira vez em 1940 e
incluído em “Ficções”, que relata a criação concretizada por
meio da linguagem. Na história, um artigo enciclopédico sobre um
enigmático país chamado Uqbar é a primeira indicação sobre Orbis
Tertius, gigantesca conspiração de intelectuais para imaginar (e
possivelmente criar) um novo mundo: Tlön.
A
realidade de Tlön, recriada, se afirma como imagem inversa do mundo
real, imagem em um espelho imaginário, em que as coisas se duplicam.
Borges, que por capricho do destino traz no próprio sobrenome a
forma plural, segue e refaz, sutilmente, as leis não escritas do
espaço e do infinito em jogos de espelho que refletem, duplicam,
atualizam os grandes clássicos da literatura fantástica.
No
universo que a escrita de Borges circunscreve, a criação pelas
letras e pelos reflexos de outros livros, outros autores, passa a ser
compreendida como um processo de transfiguração. Este processo está
representado em alguns de seus contos mais celebrados, que fornecem
autênticas pedras angulares sobre o próprio Borges e sobre seus
duplos, como se vê em “Pierre Menard, autor do Quixote” ou em
“Funes, o Memorioso”, entre tantos outros. Sua herança,
contudo, ainda gera polêmicas no mundo real.
A
Fundação Borges, fundada por sua viúva, Maria Kodama, em 1995,
segue mal vista pelo público e por setores da intelectualidade
dentro e fora da Argentina. Muitos consideram Kodama uma
“aproveitadora” porque ela se casou com o escritor apenas dois
meses antes dele morrer, em 14 de junho de 1986. Quase tudo ficou com
a viúva – incluindo os bens da herança e os direitos autorais.
Ela diz que conheceu Borges aos 12 anos, quando foi levada pelo pai a
uma conferência do escritor em Buenos Aires.
Depois
de acompanhar a participação de Borges em eventos públicos e de se
matricular em alguns cursos com o escritor, Kodama passou a trabalhar
como sua secretária a partir de 1975. Desde a morte do autor de
"Ficções", Kodama tem se dedicado “full time” à
fundação, primeiro na criação da entidade e depois na manutenção
do acervo. A Fundação Borges, com sede em Buenos Aires, organiza
exposições e eventos na Argentina e no exterior. Também gerencia o
espólio e detém os direitos sobre traduções e edições das obras
completas de Borges.
O
corpo do escritor, que repousa no cemitério de Plainpalais em
Genebra, também tem gerado mais de uma controvérsia nas últimas
décadas. Recentemente, políticos argentinos chegaram a fazer uma
campanha para tentar trazer de volta os restos mortais às terras
portenhas – mas a iniciativa fracassou. As autoridades suíças não
abriram mão dos direitos sobre o cadáver ilustre.
por José
Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Outros Borges. In: Blog
Semióticas,
10 de abril de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/04/outros-borges.html
(acessado em .../.../…).
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