Sendo uma linguagem, a matemática pode
ser usada não apenas para informar, mas
também, entre outras coisas, para seduzir.
–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).
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A
lógica dos fractais – aqueles objetos ou imagens geométricas
gerados por um padrão repetido que pode ser dividido em partes, cada
uma das quais semelhantes ao objeto original e independentes da
escala – é presença constante na natureza. Conhecidos desde a
mais remota Antiguidade, os fractais sempre foram referência para
matemáticos e artistas célebres, mas o conceito só foi aceito na
comunidade científica internacional a partir de 1975, quando o
matemático francês Benoît Mandelbrot passou a desenvolver a
geometria fractal. Apontado como inventor e primeiro teórico do novo
conceito, Mandelbrot tomou a definição de empréstimo ao termo em
latim "fractus", que significa "quebrar".
Em
outra seara, abaixo da linha do Equador, poeta de formas e cores,
esteta e criador de obras que ultrapassam a dimensão decorativa na
integração da arte com as mais diversas funções arquitetônicas,
o pintor, escultor, desenhista, mosaicista e arquiteto Athos Bulcão (1918-2008)
também dedicou esforços ao longo da vida à lógica dos fractais,
antecedendo em pelo menos três décadas o conceito que o matemático
francês tornaria universal na arte e na ciência. Artista muito à
frente de seu tempo, Athos Bulcão e as formas gráficas e
perspectivas inconfundíveis por ele criadas, marcos da arquitetura e
das artes plásticas, vêm sendo cada vez mais atualizados.
Ele
nunca saiu de cena, desde o reconhecimento de seus primeiros
trabalhos, ainda na década de 1940. Mas foi recentemente que as
formas e cores da arte de Athos Bulcão tomaram de assalto várias
frentes ao mesmo tempo: coleções de moda de várias grifes na São
Paulo Fashion Week, homenagens e releituras de artistas diversos em
exposições no Brasil e em outros países, novos projetos em
paisagismo, urbanismo e arquitetura, peças de design de jóias e
relógios, objetos utilitários, gravuras e até sapatos, sandálias
e chinelos. Athos Bulcão está em todas.
Arquitetura e Urbanismo
Carioca
de nascença e considerado o maior artista a atuar em Brasília desde
a fundação do projeto-piloto, parceiro de frente dos projetos de
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conviva e amigo fiel de ilustres das
mais diversas áreas da cultura brasileira, de Burle Marx e Portinari
a Fernando Sabino, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes, entre outros,
o gênio de Athos Bulcão recebeu um inventário de peso com a
publicação de um catálogo completo sobre as interfaces de seu
trabalho em painéis, pisos, azulejaria, fachadas e obras em ateliê.
Em
edição bilíngue, inglês e português, com mais de 400 páginas
que incluem uma seleção de ensaios especialíssima, pontuada por
grafismos e vasta iconografia que explora os suportes trabalhados
pela ourivesaria do mestre, o livro produzido pela fundação que tem
o nome do artista, criada em 1993, mereceu a honraria máxima no
mercado editorial: venceu o Prêmio Jabuti na categoria "Arquitetura
e urbanismo, fotografia, comunicação e artes".
Com
edição a cargo de Valéria Maria Lopes Cabral, secretária
executiva da Fundação Athos Bulcão, com sede em Brasília, e
projeto gráfico inspirado de Paulo Humberto Ludovico de Almeida e
Carlo Zuffellato, a publicação sobre o artista reúne em um único
volume a imaginária do seu extenso e valioso acervo, incluindo
pintura, desenhos, azulejos, instalações, fotomontagens, máscaras,
objetos e obras tridimensionais.
Mais
que um catálogo, trata-se de um inventário que oferece uma visão
abrangente das mais de cinco décadas por ele dedicadas à arte
integrada à arquitetura. Textos e imagens narram os momentos
marcantes da trajetória artística e pessoal – destacando, de Belo
Horizonte a Brasília e daí a outros continentes, cada um dos 101
espaços que receberam intervenção do artista no Brasil e no mundo.
Compositor do espaço
Diversas
cidades e capitais do Brasil, França, Itália, Cabo Verde,
Argentina... A lista é extensa, mas Brasília reúne o maior conjunto de criações de Athos Bulcão, acessíveis em espaços públicos como Palácio da Alvorada, Congresso Nacional, Palácio Itamaraty, Teatro Nacional, Setor Comercial Sul, Parque da Cidade e Quadra Residencial 308 Sul, entre outros. "Athos Bulcão", o livro, também pode ser considerado um inventário do patrimônio do artista, apresentado em ensaios inéditos e em uma bibliografia selecionada de textos
descritivos e analíticos assinados por nomes como Oscar Niemeyer,
André Correa do Lago e Paulo Herkenhoff, entre outros críticos e
curadores.
A definição de inventário poderia até constar na capa, já que em sua
maioria os artigos e as imagens que registram o trabalho de Athos Bulcão estavam dispersos por catálogos de uma
centena de exposições individuais e coletivas promovidas no Brasil
e no exterior. Na edição, um total de 187 obras são registradas em
235 fotografias. E mesmo quem conhece de longa data algumas obras
referenciais do trabalho do artista vai se surpreender com boa parte
do acervo que permanecia inédita.
Feliz
com o reconhecimento laureado pelo Prêmio Jabuti, Valéria Cabral
explica em entrevista por telefone que a publicação em livro do
acervo de Athos Bulcão dá continuidade ao trabalho realizado pela
fundação – de preservar e divulgar a obra do artista – e que
receber o prêmio máximo do mercado editorial foi uma demonstração
do valor que as obras-primas de Bulcão representam.
"Fomos
muito aplaudidos e elogiados pela imprensa. Deu para perceber que o
público gostou muito da escolha do júri do Prêmio Jabuti",
destaca Valéria Cabral. "Estamos muito felizes. Ter vencido
nesta categoria reforça ainda mais o quanto o nosso trabalho é
importante". Além de inventariar o passo a passo dos mais
conhecidos projetos de integração com a arquitetura, desenvolvidos
de forma pioneira e surpreendente pelo artista, o livro apresenta a
permanência de seu legado personalíssimo.
No
acervo das muitas preciosidades que o livro reproduz estão ainda as
obras de ateliê – entre elas, uma sequência de 32 fotomontagens
de inspiração surrealista e uma seleta que reúne 26 desenhos, 27
pinturas, 12 máscaras e 15 mini-esculturas, algumas delas batizadas
de "bichos" por Athos Bulcão. A edição organizada por
Valéria Cabral conta ainda com fotos inéditas, recolhidas dos
álbuns do próprio artista e de coleções particulares.
Técnicas e suportes
Além
das reproduções e listagem das obras, também há espaço para a
intimidade do ateliê e da vida pessoal, incluindo aí uma série
comovente de 31 imagens do artista trabalhando em primeiro plano, em
diversas épocas, entre amigos e com a família. Apresentado em sua
extensão e diversidade, o acervo de Athos Bulcão revela sua
abrangência tanto na arquitetura como em outros domínios
insuspeitados.
Reunida
pela primeira vez em um conjunto organizado, a trajetória histórica
do artista deixa em relevo técnicas, temas e materiais de suporte. A
obra surpreendente acena em dimensões de grande arte, resultado de
cada elaboração sofisticada e testemunho das relações humanas que
fazem uso em primeiro lugar da arquitetura – como destaca o foco
analítico de Paulo Sérgio Duarte em "Sentido e Urbanidade",
ensaio que abre a edição.
"As
mais presentes e disseminadas obras de Athos Bulcão aplicadas à
arquitetura são os relevos em interiores e os murais de azulejos em
painéis e fachadas", defende Duarte, lembrando que tais obras
representam um acervo disperso em Brasília, cidade escolhida pelo
artista para viver, em BH e no Rio de Janeiro, Salvador, Aracaju,
Recife, Natal, Teresina, São Paulo, Cuiabá e em Milão, na Itália,
ou em várias outras cidades da Europa e do mundo.
Mestre visionário
Outro
especialista que assina um dos ensaios, André Correa do Lago destaca
a presença das artes plásticas na arquitetura e os movimentos de
cores e motivos fractais que acentuam ritmos e contrastes em
fachadas, projetos e obras monumentais. "Ele insere-se numa
ampla lista de artistas que realizaram obras para projetos
arquitetônicos de prestígio e marcou obras-chave do movimento
moderno brasileiro", destaca.
Na
abordagem de Lago, o lugar da arte nas criações e intervenções de
Athos Bulcão supera qualquer reducionismo que pretenda enquadrá-lo
nos limites da demanda funcional que está nas interfaces de seu
trabalho. Athos, de acordo com a avaliação de Lago, faz parte,
sobretudo, de um pequeno grupo de artistas que chegaram a contribuir
de tal forma para o aspecto final de edifícios que acabaram sendo
tão decisivos para o resultado quanto os próprios arquitetos.
Autodidata
e aprendiz de Burle Marx, Cândido Portinari e Oscar Niemeyer, Athos
Bulcão metamorfoseou pinturas, máscaras, gravuras, desenhos. Aos 20
anos, tomou a decisão radical de abandonar o curso de Medicina para
se dedicar à pintura. A partir daí, cada vez mais cultivou a
amizade com poetas, músicos e artistas plásticos. Uma primeira
grande reviravolta aconteceu depois de 1945: terminada a Segunda
Guerra, Athos foi morar em Paris, França, onde conquistou uma bolsa
de estudos.
De
volta ao Brasil, foi funcionário público no Serviço de
Documentação do Ministério da Cultura – cargo que abandonaria em
pouco tempo, cada vez mais envolvido com a dedicação à arte.
Convidado em 1952 a trabalhar na Companhia Urbanizadora da Nova
Capital (Novacap), abraçaria com entusiasmo os projetos em
arquitetura – área na qual realizaria a maior parte de sua obra e
que foi a maior beneficiada por seu talento de artista visionário. O
amor à arquitetura é destacado por Athos Bulcão em uma das últimas
entrevistas que concedeu, publicada em 1998, no "Jornal de
Brasil", e reproduzida entre os anexos reunidos no livro.
Habitante do silêncio
Na
entrevista, Athos Bulcão expõe em detalhes seu processo de criação
e considera algumas das questões relacionadas à arquitetura de um
ponto de vista emblemático. Questionado sobre sua escolha definitiva
por Brasília e se o processo de globalização poderia prejudicar
sua individualidade criativa de artista, o mestre visionário ironiza
e surpreende.
"Muda
muito a orientação, mas acho que não prejudica", avalia,
citando suas referências mais marcantes e uma diversidade de casos
em que poderia ter se espelhado se não tivesse a determinação e o
desprendimento de seu trabalho autoral. "Atualmente fica tudo
meio preso àquela máxima inventada pelo Andy Warhol, de que todo
mundo quer ter seus 15 minutos de fama. É um pouco isso. Mas quando
a coisa é muito boa, ela aguenta em qualquer circunstância".
A
certa altura do texto, Carmem Moretzshon, que realizou a entrevista
para o "Jornal do Brasil", define Athos Bulcão como
"habitante do silêncio em Brasília". Nada mais acertado:
a definição, poética e algo melancólica, localiza das dimensões
épicas à minúcia burilada de cada fragmento fractal que o artista
deixou nos cartões-postais do Distrito Federal e em tantos outros
logradouros em muitas cidades e países.
Nascido
no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, o estudante que um dia trocou
a medicina pelas artes plásticas e depois pela arquitetura,
encontrou seu lugar de permanência quando deixou tudo para seguir
com Niemeyer e Lucio Costa para a criação da capital dos sonhos do
presidente Juscelino Kubitschek. Uma equipe numerosa de
profissionais, contratados em muitas áreas, concebeu o projeto e a
instalação da cidade planejada, mas nunca morou nela. Diferente da
maioria, Athos Bulcão, "habitante do silêncio", depois
que chegou nunca mais deixou Brasília.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Fractais de Athos Bulcão. In: _____. Blog
Semióticas,
20 de março de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/fractais-em-athos-bulcao.html
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