Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos. – Ary Barroso, "Aquarela do Brasil" (1939). |
Um lançamento de peso: uma caixa de CDs com a obra completa do compositor Ary Barroso (1903-1964) surge como um sério indicador do fim da época das chamadas mídias físicas no Brasil, incluindo CDs, DVDs e álbuns de música em vinil. O indicador do fim pode ser confirmado não só no decréscimo dos lançamentos, cada vez mais raros e esparsos, mas também na retração acelerada do mercado da oferta e da procura, porque mesmo nas capitais e nas maiores cidades são raríssimas as lojas que vendem discos em vinil e CDs – e as poucas opções que restam estão nas grandes lojas de departamentos, com espaço cada vez mais restrito ou inexistente para discos, CDs e DVDs. As plataformas on-line de comércio são as últimas opções, mas também nelas a presença de vinis, CDs e DVDs parece estar mesmo em fase de extinção.
A caixa de CDs em questão é “Brasil Brasileiro”, com uma primorosa seleção de gravações de grandes intérpretes para todas as canções de Ary Barroso, um dos mais célebres compositores brasileiros. A caixa traz 20 CDs com 316 canções reunidas em ordem cronológica, em gravações originais da Casa Edison, Odeon, RCA Victor, Copacabana e outras gravadoras, na interpretação do próprio compositor e nas vozes de maiorais da Velha Guarda, entre eles Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Mário Reis, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Jamelão, Marlene, Ângela Maria e Elizeth Cardoso. As composições de Ary Barroso tornaram-se clássicos, mas não ficaram esquecidas no passado: ainda hoje estão no repertório do cancioneiro popular e também são destaque entre as canções brasileiras mais conhecidas e mais gravadas no exterior – incluindo “Aquarela do Brasil”, “Na Baixa do Sapateiro”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Os Quindins de Yayá”, “Risque”, "Camisa Amarela", “No Rancho Fundo”, “Na Batucada da Vida” e “Pra Machucar Meu Coração”.
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Garimpo em arquivos
O grande desafio, contudo, é encontrar uma loja ou um site em que a caixa de CDs esteja à venda. Não está disponível nem mesmo no site da famigerada Amazon. A produção dos 20 CDs com a obra completa de Ary Barroso foi o resultado de duas décadas de trabalho do pesquisador Omar Jubran, que também fez todo o processo de remasterizações. A caixa foi lançada pela gravadora NovoDisc, criada e gerenciada pela jornalista e musicóloga Maria Luiza Kfouri, em parceria com o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo. O MIS distribuiu uma parte da tiragem das caixas de CDs para bibliotecas e instituições parceiras da Secretaria de Estado da Cultura, mas para pesquisadores e fãs de Ary Barroso o processo para conseguir uma das caixas pode ser um autêntico garimpo. Quem tiver a sorte de encontrar a caixa também terá como encarte um livreto que traz todas as letras, a identificação dos intérpretes e as fichas técnicas relacionadas a cada composição.
De todas as composições de Ary Barroso, apenas cinco ficaram fora da caixa, porque os fonogramas não foram localizados por Omar Jubran. No encarte, ele esclarece que as cinco canções aparecem nomeadas nos arquivos das gravadoras, mas não há registro sobre as gravações. “Uma explicação razoável para tal, é que pode ter existido a gravação da matriz sem que houvesse a prensagem do disco”, relata o pesquisador. Ele também justifica a existência de alguns ruídos e chiados discretos em algumas das gravações: “Em nome da preservação do som original e das características técnicas de gravação dos anos 1930 e 1940, alguns fonogramas ainda apresentam uma pitada de ruído, o que lhes atribuiu um charme especial”.
Calouros do Ary
Nascido há 120 anos, completados em 7 de novembro, na cidade mineira de Ubá, Ary Barroso morreu no Rio de Janeiro, em um sábado de Carnaval, em 9 de fevereiro de 1964, aos 60 anos, em decorrência de cirrose hepática, resultado de anos de alcoolismo. O Rio foi a cidade em que passou a maior parte da vida e também o cenário da maioria de suas canções, com a curiosidade de que em algumas, das mais conhecidas, a Bahia e as baianas é que são o tema central. Além de compositor e cantor, Ary também foi muito popular em sua época como apresentador de programas de rádio e comentarista esportivo, sem nunca esconder sua condição apaixonada de torcedor do futebol do Flamengo. Seu primeiro programa de rádio foi “Calouros em Desfile”, que teve sucesso desde a estreia com nomes desconhecidos que passaram depois à condição de astros e estrelas de primeira grandeza da música brasileira.
O
programa “Calouros em Desfile”, que estreou em 1932, na Rádio
Philips, também trouxe a fama de ranzinza para Ary Barroso, o que
pode ser confirmado ao se ler a lista dos nomes que ele reprovou e
que depois seriam consagrados como medalhões entre os grandes
intérpretes da música brasileira, incluindo aqueles que gravaram
versões de sucesso para as composições dele próprio. Nas décadas
seguintes, o apresentador e o programa “Calouros em Desfile”
seguiriam para outras estações – em 1934, para a Rádio Mayrink
Veiga; no ano seguinte, para a Rádio Cosmos, em São Paulo. Na Rádio
Cruzeiro do Sul, a partir de 1943, ele apresentou “A hora do
calouro”; na Radio Nacional, a partir dos anos 1950, o mesmo
programa foi renomeado para “Calouros do Ary”. Ele também criou
uma tirada de humor que foi sua marca registrada: o gongo, que soava
quando o calouro era eliminado.
A
lista dos nomes de calouros premiados que despontaram para a fama nos programas de rádio sob
o comando de Ary Barroso é imensa – mas na lista dos que foram reprovados
há, também, nomes notáveis, entre eles nomes que depois deram a volta por cima e conquistaram a consagração no primeiro time da música brasileiras, caso de Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Vinicius de
Moraes e também Elza Soares, que protagonizou um acontecimento marcante por
vários motivos. Com Elza Soares aconteceu aquele diálogo que a
cantora repetiu depois, muitas vezes, ao lembrar que foi humilhada na
estreia porque era negra e tinha aparência de pobre. Ao microfone,
com sua conhecida ironia, Ary perguntou: “De que planeta você vem,
minha filha?”. Elza respondeu: “Eu vim do planeta fome”.
Um brasileiro internacional
Também é inegável que o salto de Ary Barroso para o primeiro time como compositor popular no Brasil tem participação de Carmen Miranda. A estrela mais popular no Brasil desde a década de 1930, no rádio, no teatro de revista e no cinema, foi a recordista em gravações de canções de Ary Barroso, com mais de 30 grandes sucessos, incluindo a mais célebre, “Aquarela do Brasil’, gravada por Francisco Alves em 1939 e três anos depois incluída na trilha sonora de “Alô, Amigos” (“Saludos Amigos”), o filme de animação que Walt Disney fez no Rio de Janeiro, como encomenda para a Política da Boa Vizinhança lançada pelo governo do norte-americano Franklin Roosevelt, no final da década de 1930, para ganhar a simpatia dos governos e dos povos da América Latina na época da Segunda Guerra Mundial.
O filme “Alô, Amigos”, lançado nos cinema dos Estados Unidos e do Brasil em 1942, marca a estreia das canções de Ary Barroso em uma produção de Hollywood e também foi a estreia do personagem Zé Carioca
(veja também Semióticas – Estratégias do Zé Carioca). Na
gravação de Carmen Miranda, “Aquarela do Brasil” foi um grande
sucesso nas rádios norte-americanas e em outros países, conquistando um lugar no imaginário do público. A canção foi o grande sucesso da carreira de Ary Barroso e teve inúmeras regravações que ganharam o mundo nas vozes de artistas de
várias gerações e vários estilos, de Frank Sinatra a Ella
Fitzgerald, Ray Conniff, Harry Belafonte, Dionne Warwick e até
com as bandas Arcade Fire e Beirut, entre muitos outros.
Aquarela do Ary: no alto, o compositor em ação como narrador e comentarista de futebol. Acima, em um encontro com os novatos da Bossa Nova, João Gilberto, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra, fotografados por Indalécio Wanderley Abaixo, Ary com Carmen Miranda em Hollywood, em 1944, na época em que rejeitou o contrato de trabalho para ser compositor exclusivo dos Estúdios Disney e voltou para o Brasil, alegando que não conseguiria ficar longe dos jogos do Flamengo; Ary em 1957, em uma prosa animada com o presidente da República, Juscelino Kubitschek; e na final do Grande Torneio Nacional, última etapa do "Calouros do Ary", programa da Rádio Nacional, com a vencedora da competição de 1960, a jovem Tânia Maria, que fixou residência nos Estados Unidos e, atuando como cantora e pianista, tornou-se referência do Jazz e da música contemporânea com ritmos afro-brasileiros. Também abaixo, Ary diante da multidão em um show em Buenos Aires, Argentina, em 1955; Ary com Dorival Caymmi, na foto para a capa do álbum que gravaram juntos em 1958; e na última foto, poucos dias antes de sua morte, em 9 de fevereiro de 1964 |
A trajetória de Ary Barroso coincide também com momentos marcantes da história do Brasil. Seu primeiro grande sucesso popular acontece em 1930, ano da chegada de Getúlio Vargas ao poder, com a Revolução de 1930, e sua morte antecede em apenas dois meses o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar. Naquele ano de 1930, Ary Barroso foi notícia pela primeira vez porque venceu o Grande Concurso da Música Popular, para escolha de canções do Carnaval, promoção da gravadora mais popular da época, a Casa Edison, e do jornal Correio da Manhã, com a marchinha “Dá Nela”. Meses antes, Mário Reis, seu colega na Faculdade Nacional de Direito e já consagrado cantor, havia gravado duas canções de Ary, “Vou a Penha” e “Vamos deixar de intimidade”.
Com isso, a partir de 1930 estrearam as canções de Ary Barroso nas paradas de sucesso e muitas outras viriam, nos anos e nas décadas seguintes. Desde então, muitos conhecem de cor suas canções, que já foram nomeadas como marchinhas e como samba, samba-canção, samba-exaltação, mesmo que não associem seu nome às canções ou não saibam quem é o compositor. Ele é Ary Barroso: criador de algumas das canções brasileiras mais conhecidas no mundo inteiro, cantor, pianista, vereador (o mais votado em 1946 na Guanabara, pela UDN, União Democrática Nacional), radialista, cronista, roteirista de radionovela e do teatro de revista, comentarista de futebol, flamenguista, humorista, figura consagrada no folclore nacional. Seja no Brasil ou mesmo no exterior, ainda hoje é muito difícil separar os acordes de “Aquarela do Brasil” e de tantas canções de Ary Barroso das lembranças e dos sentimentos mais autênticos da nacionalidade brasileira.
por José Antônio Orlando.
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