Por
que a imensa maioria dos cidadãos do Oriente Médio e do mundo islâmico – e também
de outras latitudes do planeta – vê os Estados Unidos da América como principal
responsável por seus maiores problemas? O jornalista e escritor
paquistanês Tariq Ali, meses antes da morte de Osama bin
Laden (1957-2011), ousou escrever uma resposta que tornou-se um
best-seller: o polêmico livro-reportagem "Duelo - O
Paquistão na Rota de Voo do Poder Americano".
No
livro, lançado no Brasil pela editora Record, Tariq Ali mira, na
primeira pessoa e em tom confessional, porém estritamente
jornalístico, o panorama político da sua terra-natal e dos levantes das populações árabes contra as invasões norte-americanas, contra o terrorismo do Estado de Israel e contra as monarquias e
regimes autoritários.
"Duelo" não é primeiro best-seller explosivo de Tariq
Ali, que periodicamente também publica reportagens investigativas e
ensaios analíticos em jornais e revistas de vários países, entre
eles dois dos mais prestigiados veículos de imprensa do Reino Unido:
o jornal "The Guardian" e a revista "New Left
Review".
No
Brasil, além de "Duelo", também estão publicados vários livros de Tariq Ali,
entre eles "Piratas do Caribe" (relato que vai contra a
visão distorcida e muitas vezes criminosa que a velha imprensa tenta construir no Brasil sobre a trajetória
do venezuelano Hugo Chávez e a ascensão da esquerda democrática na
América Latina), "Confrontos do Fundamentalismo" (sobre os
atentados de 11 de setembro de 2001 e as origens da "guerra ao
terror") e "Bush na Babilônia", que apresenta a guerra no Iraque no contexto da história de resistência do povo persa contra novos e antigos impérios.
A
coragem e as denúncias explosivas dos relatos de Tariq Ali, contudo, custaram o exílio do
jornalista, atualmente refugiado em Londres. Em "Duelo", livro que combina uma estrutura narrativa que lembra os roteiros de filmes de ação e suspense aliada a reflexões sobre a história política do Oriente Médio e a uma extensa
pesquisa de fontes que incluem entrevistas, noticiários e convívio
in-loco com outros jornalistas e correspondentes de guerra, Tariq Ali também antecipa a recentíssima crise em vários países da Liga Árabe
– a maior parte deles às voltas com protestos populares inéditos, violentos e sangrentos, apoiados de forma ostensiva pelos Estados Unidos e difundidos de forma maciça pelas redes sociais da internet. Detalhe da maior importância: os países em questão estão entre os grandes produtores de petróleo do planeta.
Por
conta das denúncias e análises de "Duelo" e de seus
outros livros, principalmente os que apontam em minúcias os prós e
contras para o império norte-americano ao interromper ou
intensificar os combates no Oriente Médio, Tariq Ali foi acusado de
apoiar o terrorismo e de ser um agente contra a democracia. Em outras
palavras: a máquina da propaganda de guerra dos EUA, como acontece com muita frequência, foi
acionada para tentar calar uma voz que ousa ser dissonante em
relação aos interesses bélicos e econômicos do império do Tio Sam.
Menestrel do mundo árabe
A
impressão que o leitor tem, na primeira leitura das reflexões e
descrições de Tariq Ali é que ele aprendeu o melhor de dois
mundos. Nascido de tradicional família política Punjabi, Tariq Ali
é formado no Ocidente pela Universidade de Oxford e autor de
roteiros para cinema, biografias e obras sobre história e política
internacional. Há muito ele é reconhecido como um dos principais
comentaristas das questões sobre o mundo árabe e, por conta de seu
tom personalíssimo e sua desenvoltura frente a questões diversas e polêmicas, revistas e programas de TV em
vários países da Europa costumam se referir a Ali como "o
menestrel das arábias".
Crítico
ferrenho do fundamentalismo islâmico – que aponta como responsável
pela propagação de atos terroristas – também não poupa os
governos autoritários que nos últimos anos e décadas agiram sob o
jugo norte-americano, casos de Egito, Jordânia e Síria. Para Ali, o
direito dos povos oprimidos da região à resistência é sagrado,
até porque quando se fala do mundo islâmico o que está em questão
é um número quase incontável de histórias, povos, línguas, tradições, experiências e culturas.
"Quando
comecei a escrever este livro um amigo de Londres perguntou: Não é
imprudente começar um livro quando os dados ainda estão no ar? Se
eu esperasse os dados caírem, nunca teria escrito nada",
anuncia Tariq Ali, alertando o leitor para a possibilidade permanente
e urgente de lances que dia sim dia não explodem nos noticiários.
A
invasão do Afeganistão e do Iraque, a situação do Paquistão, os
governos colaboradores, a frequência das revoltas populares e a
complexa situação entre Palestina e Israel são os temas que
perpassam em "Duelo". O escritor, que visitou o Brasil duas
vezes – na Flip de 2006, em Paraty, e em Salvador, em 2010,
convidado especial do Seminário Internacional de Cinema e
Audiovisual – relata notícias recentes, mas também recorre à
história árabe no último século, assim como busca paralelos na
milenar história do Islã e seus contatos com a cultura cristã e
judaica.
"A
história oficial é composta sobretudo de meias verdades e mentiras
sinceras, nas quais tudo é atribuído a governantes nobres, a
sentimentos devotos", escreve Tariq Ali na conclusão
de "Duelo". O capítulo, pontuado pelas memórias afetivas
do autor sobre acontecimentos que têm versões radicalmente divergentes
divulgadas pelas agências de notícia internacionais, recebe o
título sintomático de "Poderia o Paquistão ser reciclado?"
A outra história
"Os
que escrevem a história oficial são adoradores de fatos realizados
e estão ao lado dos vitoriosos", registra Tariq Ali, retomando
teses emblemáticas de filósofos e historiadores capitais do século
20, como Walter Benjamin e Hannah Arendt. "Algumas vezes
generais, outras políticos. O êxito justifica tudo. Mas existe
outra história que se recusa a ser reprimida", alerta. É em
direção a esta "outra história" que ele investe em
“Duelo”, em análises contundentes, porém equilibradas,
coerentes, demonstração do melhor jornalismo, tão em falta nos
dias que correm.
Reunindo muitas
de suas análises apresentadas como colaborador habitual de
telejornais, revistas e jornais europeus, o paquistanês Tariq Ali
demonstra no livro, na prática, as regras da apuração e os
problemas da informação confidencial. Contudo, não há heróis em
"Duelo". Nem aos mártires anônimos é reservada esta
honra. Mas há esperança – como nos versos do poeta Fakhar Zaman que
encerram o relato de Tariq Ali:
Sem
olhos, nós pintamos
Sem
mãos, esculpimos estátuas
Sem
ouvir, compusemos músicas
Desprovidos
de língua, cantamos
Com
as mãos atadas, escrevemos poesias
Com
as pernas presas a grilhões, dançamos
E a fragrância das flores penetrou
nossas bocas e narinas tapadas.
E a fragrância das flores penetrou
nossas bocas e narinas tapadas.
Sherazade no mundo masculino
Enquanto
em “Duelo” o jornalista Tariq Ali antecipa e analisa a crise
árabe mais recente, a questão da mulher no Oriente é o centro do
relato de primeira qualidade de uma mulher árabe, por coincidência
jornalista. Lançada à ordem do dia com a proibição do uso em
público, na França e em outros países da Europa, da burca e do véu
integral muçulmano, a situação da mulher no mundo árabe é o tema
de Joumana Haddad em "Eu Matei Sherazade – Confissões de uma
Árabe Enfurecida", também lançado pela Editora Record.
Assim
como “Duelo” também um best-seller internacional, o relato
de Joumana Haddad, jornalista, editora, tradutora,
poeta, romancista e ativista dos direitos humanos em sua terra-natal,
Beirute, no Líbano, é escrito na primeira pessoa. Mas enquanto Tariq Ali expõe
e elabora quase como metalinguagem seu livro-reportagem, a prosa de
Joumana Haddad (foto abaixo) exalta com ironia e erotismo o
poder libertador da literatura.
O
relato de Joumana Haddad convida também, nos limites da
metalinguagem, o leitor a compartilhar, a cada página, a trajetória
de descobertas na passagem de Joumana de estudante adolescente para o
mundo adulto predominantemente masculino. "Em vez de se render
imediatamente a uma determinada imagem que foi criada por outra
pessoa em seu nome, tente perguntar: afinal de contas, o que é uma
mulher árabe?", desafia Joumana, logo nas primeiras páginas.
Mas por quê, o leitor se perguntaria, matar Sherazade?
Joumana Haddad,
no seu relato jornalístico e ao mesmo tempo confessional, argumenta
sobre sua tese literária com implicações sociológicas,
antropológicas e políticas: é preciso matar Sherazade porque ela,
a narradora aprisionada do clássico "As Mil e Uma Noites",
que interrompe ao fim de cada noite sua história mirabolante para
sobreviver diante da tara assassina de seu algoz nobre e todo
poderoso, a mesma Sherazade tida como uma das personagens mais
emblemáticas da literatura universal – e símbolo particular da
mulher e da cultura do Islamismo – em suas milhares de histórias
inventadas (Ali-Babá, Simbá, Aladim, o Gênio da lâmpada, o
gigantesco pássaro Roca, o tapete voador etc...) para evitar a
morte, não seria jamais um bom exemplo de resistência.
Metáfora da submissão
Para
Joumana Haddad, que fundou em 2009 a "Jasad", revista trimestral publicada em língua árabe e especializada em arte, em erotismo e em literatura dos povos árabes, Sherazade é, sim, uma metáfora pessimista
sobre a concessão e da submissão. Na argumentação da jornalista,
Sherazade não representa um valor a ser cultivado. Pelo contrário:
é uma referências extremamente nociva para o imaginário árabe porque faz alusões
à negociação de direitos que não deveriam estar em jogo porque
são direitos básicos para todos a humanidade – ou que, pelo menos, deveriam ser.
"Este
livro dedicado à figura mítica de Sherazade é uma tentativa singela de refletir sobre esse tema. Ele não
pretende dar respostas às questões apresentadas, nem soluções aos
problemas expostos, nem lições ou receitas para viver bem. Sua
maior aspiração é divulgar um depoimento e uma reflexão" –
com esta premissa Joumana Haddad vai tecendo um relato sedutor –
tal e qual nas estratégias de sua antagonista Sherazade no clássico das “Mil e Uma
Noites”.
O
relato que Joumana Haddad apresenta em "Eu Matei Sherazade"
soa breve e franco, por vezes político e explosivo, sobre o que
significa ser mulher e ser mulher no mundo árabe. Com humor incomum,
destrói preconceitos, diverte, faz pensar e condena a postura de
quem assume o papel de vítima. Nascida em 1970, a jornalista é
reconhecida atualmente como uma das mais engajadas representantes da
luta pela liberdade feminina no Oriente Médio.
Joumana
Haddad tem no currículo um trabalho extenso que é reconhecido também no exterior: além da revista "Jasad" e dos livros que publica, e da
vida normal de todo dia, como ela destaca na apresentação de “Eu Matei Sherazade”, ainda trabalha como editora do
principal jornal do Líbano, o "An-Nahar", e também administra o
Arab Booker, principal prêmio internacional da literatura de ficção em língua árabe.
Desafio aos tabus
“Eu
Matei Sherazade” defende a emancipação da mulher e aborda os
tabus do sexo, da poligamia, da virgindade, do prazer, do casamento
forçado, dos projetos autobiográficos dos quais se esquece e dos
que abraça com paixão para contar como ela própria se impôs e
venceu num opressivo mundo masculino.
"Não
entendia por que algumas coisas não eram permitidas a mim, por ser
mulher. Então, tive a ideia de fazer uma revista que desafiasse
todos esses tabus, falando sobre corpo, sexualidade e erotismo",
esclarece
a jornalista, comentando
sobre as estratégias que adotou,
logo nas primeiras páginas do livro.
Joumana
Haddad não só rejeita e ironiza os percalços de Sherazade, mas
também confessa no livro que sua inspiração vem de clássicos da
literatura, principalmente os do Ocidente – em especial o Marquês
de Sade, autor polêmico que ela traduziu para o árabe e transformou
em campeão de vendas no Líbano – mas também do cotidiano dos
problemas que uma mulher árabe que ousa ser jornalista enfrenta, a
cada pauta de trabalho e também na vida que segue.
Em
seu relato saboroso, inteligente, Joumana lança mão de estratégias
da melhor literatura e retorna, no final, à questão do começo do
livro: há alguma diferença autêntica, significativa, evidente,
entre a situação da mulher árabe muçulmana e da cristã?
"Temo
que não há diferenças", ela conclui, num dos breves capítulos
que antecedem aos poemas anexados em "O capítulo da poetisa –
uma tentativa de autobiografia". "Se você for fundo, temo
que não há diferença entre a mulher árabe e a maioria das outras
mulheres do mundo. A injustiça, os códigos morais duplos e os
preconceitos são um pouco mais óbvios e visíveis na primeira, só
isso. E o óbvio é quase sempre uma armadilha".
Ensinar com as fábulas
Enquanto
as fábulas de Sherazade são metáforas para as reflexões de
Joumana e as notícias que se sucedem montam a cena para “Duelo”,
o brasileiro Bruno Pacheco defende que fábulas e notícias podem ser
apresentadas ao público infanto-juvenil como uma introdução à
filosofia. Em "Três Fábulas do Oriente" (Editora Record),
o jornalista carioca, assim como fazem os jornalistas árabes Joumana
Haddad e Tariq Ali, também transforma certas observações triviais sobre o
cotidiano em comoventes lições de vida.
Nas
três fábulas apresentadas no livro – "Quebrador de
Pedras", "Carregador de Água" e "Buda de
Pedra" – a lição vem nas entrelinhas, sem verdades
absolutas, sem emburrecer nem aborrecer, para mostrar que as mesmas
coisas podem ser de uma outra maneira, ensinando que a vida pode ser
mais simples do que se pensa.
"Como
minha avó, minha mãe e meu pai, ele nos faz de novo meninos e a
gente aprende que um pote quebrado que podia parecer defeituoso pode,
na sua imperfeição, regar as flores do caminho", destaca a
poeta Elisa Lucinda na apresentação ao trabalho de Bruno Pacheco,
que também é roteirista de programas de TV e autor do belo "Sidarta
para Jovens" (Editora Bookmarks), além de ter assinado sucessos
recentes do teatro carioca.
Com
fragmentos destacados da meditação do zen-budismo, que o autor
pratica há 16 anos, reunidos a um mosaico de narrativas sem dono,
sem autor, que foram escritas há muitos e muitos anos, "Três
Fábulas do Oriente", com belas ilustrações em cores e em
preto e branco, a cargo de Lu Martins, não deixa de ser um presente
para quem acha que criança tem o direito de entender logo sobre os
mistérios da vida e do bom-senso.
Ou
ainda, nas palavras do menestrel Tariq Ali, que recorda das Arábias
o lugar primordial das Utopias, ao citar Oscar Wilde, um dos
gênios visionários da Belle Époque. Tariq Ali destaca que um mapa
do mundo que não inclua a Utopia não merece ser olhado, conforme
escreveu Oscar Wilde no final do século 19, já que este mapa deixa
de fora o único país no qual a humanidade está sempre
desembarcando. Segundo Oscar Wilde, quando a humanidade chega ali,
olha para o horizonte e, ao ver no horizonte distante um país
melhor, zarpa de novo em sua busca. O progresso só existe quando há
a realização de Utopias.
por José
Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Das Arábias. In: Blog Semióticas, 20 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/das-arabias.html (acessado em .../.../…).
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Das Arábias. In: Blog Semióticas, 20 de agosto de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/das-arabias.html (acessado em .../.../…).
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Acima,
documentário produzido pela
TV
Cultura de SP sobre a Primavera Árabe,
nome
como ficou conhecida a série de
revoltas
populares fomentada pelos EUA
contra
os governos locais em diversos
países
do Oriente Médio. As manifestações
tiveram
início em dezembro de 2010