O cinema é como uma velha putana, como o circo e o teatro de variedades, e sabe dar muitas formas de prazer. ..... ––
Federico
Fellini, depoimento a Joe Denti em 1971. |
É como dizem aqueles mêmes da internet: não está fácil para ninguém. Para quem ama o cinema, a situação da pandemia gerou uma crise de abstinência sem data para chegar ao fim e que, talvez, seja mesmo definitiva, irreversível, porque há diferenças radicais entre o ritual social e coletivo de assistir a um filme no cinema ou assistir a filmes e séries nas plataformas de “streaming”. Uma coisa é cinema no cinema, outra coisa é Netflix e internet em um ritual doméstico que, quase sempre, pode ser tão individual e solitário como a leitura de um livro. Há notícia de que em algumas cidades os cinemas retornam, mas a maioria do público segue renitente e nem todos se arriscam no perigo do contágio por covid. Também há a decepção sobre os filmes mais aguardados, incluindo os “blockbusters”, que tiveram lançamento adiado ou com estreias diretamente em plataformas pela internet.
Para completar o cenário de pandemia com decepção e abstinência de atividades coletivas, compartilhadas ao vivo, de forma presencial, os cinéfilos têm agora uma previsão devastadora: o fechamento definitivo de muitos cinemas e o temor de que o ritual de assistir filmes nas grandes salas de cinema se transforme rapidamente numa experiência deixada do passado. Na primeira semana de fevereiro, o jornal inglês The Guardian publicou uma reportagem devastadora sobre o fim dos grandes cinemas em países da Europa e nos Estados Unidos: um amplo levantamento, feito sob encomenda pela consultoria de Londres Omdia, aponta que 70% das tradicionais salas de exibição têm sérias dificuldades para sobreviver após um ano de quarentenas e isolamento provocado pela pandemia.
Somente no Reino Unido, o ano da pandemia gerou perdas que somam mais de 30 milhões de dólares (cerca de 27 milhões de euros) para o setor de exibição de filmes nos cinemas e para os negócios que estão diretamente relacionados. No Brasil, onde o fechamento definitivo dos cinemas chegou muito antes da pandemia, não há estatísticas sobre os prejuízos do setor, mas sabe-se que o cenário é ainda mais catastrófico, com todos os entraves lançados pelo governo de extrema direita com orientação fascista em suas ações deliberadas contra a cultura e contra a produção audiovisual. Os tempos sombrios da atualidade, definitivamente, não estão fáceis para quem gosta de assistir filmes dentro da sala escura com outras pessoas, anônimas, em sua maioria, que também gostam de cinema.
Sessão de despedida
Um outro título para este artigo, aliás, poderia ser “A última sessão de cinema”, para lembrar o filme de 1971 de Peter Bogdanovich e os rituais da despedida melancólica dos amigos Sonny Crawford (Timothy Buttons) e Duane Jackson (Jeff Bridges). Às vésperas da formatura no colégio, em uma cidadezinha do Texas no meio do deserto, os dois amigos assistem a reprise de “Rio Vermelho”, clássico faroeste de 1948 de Howard Hawks, em uma sessão de despedida, uma última vez, porque não há mais público para assistir aos filmes e o único cinema do lugar vai fechar as portas. O filme de Bogdanovich, que todo cinéfilo conhece bem, é a tradução de uma época – ou, antes, a tradução do final de uma época.
O fechamento do único cinema e a aproximação do baile de formatura funcionam como um ritual de passagem para a vida adulta na narrativa fragmentada de “A última sessão de cinema” (“The last picture show”). O roteiro, escrito por Bogdanovich e por Larry McMurtry, autor do romance homônimo que deu origem ao filme, assim como a fotografia em preto em branco e as longas sequências de silêncio, reforçam o tom saudosista e de melancolia para a morte simbólica que o filme representa, contaminando a todos na pequena cidade e mudando o rumo das vidas dos personagens. A trama está situada no começo dos anos 1950, uma época entre duas guerras, entre o desfecho da Segunda Guerra e o começo da Guerra da Coreia, com a chegada da novidade da televisão que acelera o fim do cinema e as irreversíveis mudanças de hábitos do público.
A morte do cinema decretada pela TV já havia sido profetizada ainda nos anos 1950 por vários pensadores – entre eles o canadense Marshall McLuhan (1911-1980), que alertava sobre a cadeia evolutiva nos processos históricos dos meios de comunicação, na obsolescência das mídias e nas transformações dos hábitos de consumo sempre que surge uma nova forma de mídia, ou uma nova forma tecnológica. Foi assim que o surgimento do livro impresso e da imprensa criou novas formas de sociabilidade ao final da Idade Média, assim como a fotografia criou novas formas de percepção da realidade – e o surgimento do cinema levou à extinção ou à transformação radical de outras diversas formas de representação.
O fim de uma época
As revoluções continuaram, na análise de McLuhan, sucessivamente, com os meios de comunicação atuando como extensões dos sentidos da experiência humana. Em “A noiva mecânica” (1951), “A Galáxia de Gutenberg” (1962), “Understanding Media ” (1964), “O meio é a massagem: um inventário dos efeitos” (1967) e outros livros que marcaram época, McLuhan destaca que, assim como a análise do conteúdo se faz importante, a interposição do meio em que tal análise e tal conteúdo são processados e transmitidos se faz essencial, pois a tecnologia da mídia sempre altera os aspectos sociais e mentais tanto individuais como coletivos. Os registros históricos revelam que aconteceu assim com o surgimento de todos os meios de comunicação, do telégrafo, do telefone, da imprensa ilustrada, da fotografia, do cinema, do rádio, do cinema falado, da TV, e agora com a internet e seus dispositivos de acesso, com cada nova mídia provocando e determinando novas formas de consumo, de percepção sensorial e de interação social.
Seguindo e confirmando as análises visionárias de Marshall McLuhan, as salas de cinema resistiram por mais de um século, enfrentando as formas de concorrência avassaladora de todas as mídias, da TV, da TV em cores e por assinatura, dos vídeos domésticos e das locadoras de filmes em VHS e DVD. Porém, o avanço das plataformas de streaming na última década, e especialmente neste último ano da pandemia, provocado pelos riscos de contágio tanto nos contatos sociais como nas aglomerações ou em ambientes fechados, sinalizam o derradeiro fim de uma época, com muitos cinemas em cidades do interior e nas capitais do mundo inteiro repetindo aquele ritual de encerramento das atividades e despedida da última sessão do filme de Bogdanovich – uma despedida que pode ser definitiva, ao que tudo indica.
O ritual de passagem, talvez inevitável, para um mundo sem as grandes salas de cinema teve sua tradução em diversos registros fotográficos publicados nos últimos meses pelo mundo afora. Nas últimas semanas, os jornais The Guardian e The Telegraph, no Reino Unido, as revistas “Variety” e “The New Yorker”, nos Estados Unidos, a revista francesa “Paris Match” publicaram ensaios fotográficos de Frank C. Grace, de Rob Ford e de Christopher Thomond sobre cines-teatros monumentais que já estão definitivamente abandonados ou sendo demolidos em vários países. E também há os livros em edições de luxo que apresentam extensos inventários fotográficos sobre estes monumentos cada vez mais raros nas paisagens urbanas, os cinemas esquecidos, arruinados pelo tempo, em suas dimensões sociais, econômicas, culturais e arquitetônicas. Ao menos dois livros, na verdade réquiens em formato de catálogos fotográficos, ou fotolivros, são dignos de nota, publicados pelos fotógrafos veteranos Simon Edelstein (“Abandoned Cinemas of the World”, Jonglez Publishing) e Carolina Sandretto (“Cines de Cuba”, Editorial Skira).
Cenários de melancolia
Simon Edelstein percorreu 30 países na pesquisa de campo para seu fotolivro e selecionou 562 fotografias sobre cinemas emblemáticos e grandiosos em seus edifícios que, na atualidade, perderam o protagonismo e a glória de outros tempos. Suas imagens são cenários de nostalgia e melancolia, com grandes salas de cinema definitivamente fechadas, aguardando demolição ou transformadas em outros espaços de uso ou de comércio, tais como igrejas evangélicas, mercados de feiras livres ou lojas enormes de produtos baratos produzidos na China, enquanto o público segue criando o hábito de assistir filmes pela internet e permanece, cada vez mais, indiferente ao desaparecimento de seus prédios históricos. Nas fotografias de Edelstein, os cenários são de total melancolia, nas fachadas e nos pormenores dos interiores, com entradas abandonadas e sem luzes, algumas em completa ruína, outras ainda com parte dos letreiros do último filme em cartaz, as cadeiras destruídas em fileiras incompletas ou cobertas de pó, as paredes descascadas, os cartazes rasgados.
Com Carolina Sandretto, a temporada de pesquisa de campo em Cuba durou quatro anos, um período em que ela viajou pelos quatro cantos da ilha para localizar e fotografar 300 edifícios de cinema com uma câmera Hasselblad no formato que era usual na década de 1950. Pesquisando nas bibliotecas de Havana, a fotojornalista localizou documentos de antes da Revolução de 1959 sobre o funcionamento das antigas salas de cinema. Em 1953, Cuba contava com 694 cinemas, sendo 134 somente em Havana – mais do que havia na cidade de Nova York ou em Paris. Em 1958, eram 511 cinemas exibindo filmes diariamente em Cuba e 130 na cidade de Havana. A maioria, no entanto, terminou fechada nas décadas seguintes. Atualmente, 30 cinemas são usados em Cuba com a finalidade de exibição diária de filmes.
A história dos cinemas em Cuba, segundo Carolina Sandretto, traz reflexos da ocupação e exploração cultural da ilha pelos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. A maioria dos prédios para instalação dos cinemas foi construída por empresas que faziam parte de conglomerados de estúdios e distribuidoras de Hollywood, como a 20th Century Fox ou a Radio-Keith-Orpheum (RKO), mas logo após a Revolução Cubana as estruturas para exibição de filmes foram pouco a pouco sendo desativadas por falta de investimento e de manutenção, com alguns cinemas sendo revertidos para outros fins comunitários ou transformados em auditórios para escolas. Muitos dos antigos prédios, no entanto, está em ruínas e caiu no esquecimento.
A seleção de imagens melancólicas e nostálgicas sobre esses cinemas abandonados, muitos deles em construções que, em sua época, foram suntuosas, em estilos neoclássico ou Art Déco que justificavam os títulos de “palácios”, e que agora estão em estado de decadência e ruínas, leva a questionamentos dos mais pessimistas sobre o futuro da exibição de filmes para grandes plateias, um ritual que teve início com as sessões inventadas pelos irmãos Lumière no final do século 19. Afinal, será assim, de forma inevitável, destinado ao completo abandono e ao esquecimento, o futuro que aguarda as salas de cinema em todos os países?
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Era uma vez um cinema. In: Blog Semióticas, 8 de fevereiro de 2021. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2021/02/era-uma-vez-um-cinema.html (acessado em .../.../...).
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