13 de agosto de 2019

Vik Muniz na Arte Sacra






A história da arte é a história da luta de todas 
as representações óticas, dos espaços inventados 
e das figurações. É a história da luta das imagens. 

–– Carl Einstein (1885-1940).    



São fotografias. Mas um olhar atento descobre logo, nos detalhes, materiais surpreendentes que compõem em pequenas partes cada uma das imagens. Tinta, açúcar, molho de tomate, chocolate, geleia, algodão, botões, fragmentos de plástico, pedras, madeira, folhas e caules de plantas, terra, metal, tiras e remendos de anúncios de publicidade, pedaços de folhetos coloridos, de revistas, de jornais, de fitas, de embalagens para presentes e de outros recortes de papel formam as novas obras que Vik Muniz montou para criar ilusões de ótica e depois fotografou. Batizada de “Imaginária”, a série, que reúne imponentes fotografias, 20 no total, ampliadas com dois metros de altura e emolduradas, como os modelos solenes das pinturas originais de santos católicos a que fazem referência, foi apresentada em destaque no festival de fotografia Rencontres d’Arles (veja o link no final deste artigo), realizado a cada ano entre julho e setembro na cidade de Arles, às margens do mar Mediterrâneo, no sul da França.

Criado em 1970, o festival se mantém como um dos grandes eventos internacionais de fotografia e reúne dezenas de mostras que vão dos acervos históricos até as novas tendências, os experimentos recentes em novas tecnologias de câmeras e painéis de atualidades sobre fotojornalismo. As imagens de Vik Muniz frequentaram o festival nas últimas duas décadas como amostragens temáticas e em séries inéditas – como esta “Imaginária”, que pela primeira vez é exibida na Europa. Em entrevistas e no dossiê de imprensa distribuídos pela organização do festival, ele explica que a intenção foi homenagear grandes artistas que criaram imagens que há séculos fazem parte do imaginário coletivo, mas artigos na imprensa internacional destacam que a nova série, colorida e fulgurante, não esconde um melancólico tom de “réquiem”, de celebração fúnebre, em relação direta com a violência e as ações de destruição em vários níveis provocadas pelo governo de extrema-direita e de orientação fascista que em 2019 tomou o poder no Brasil.






Vik Muniz na Arte Sacra: no alto, retrato
do artista por Carolyn Cole. Acima e abaixo,
as releituras para imagens sagradas dos
santos católicos segundo Vik Muniz: acima,
Santo Agostinho (após Philippe de Champaigne).
Abaixo, Crucificação (após Thomas Eakins) e
Imaculada Conceição ou Nossa Senhora
da Conceição, a pintura original de 1768
do mestre italiano Giovanni Battista Tiepolo
e a recriação feita por Vik Muniz com materiais
nada convencionais. Todas as imagens fazem
parte do dossiê de imprensa do festival
internacional de fotografia Rencontres d’Arles












O simulacro da cópia e o peso da tradição



Diante das novas experiências de Vik Muniz com sua “Imaginária”, também são inevitáveis as referências sobre questões como o valor de culto e o valor de exposição, as interfaces entre o original e suas cópias, assim como as aproximações e as relações milenares entre a religião e a história da arte, entre o sagrado e o profano. Ao reconstruir formas e imagens tradicionais de obras de arte a partir de simulacros imprevistos, o artista provoca uma mistura por certo iconoclasta, mas que permite também interpretações extremas, em variações pontuadas tanto por veneração como por toques generosos de ousadia e ironia, diante do peso da tradição. Ao tomar como modelo figuras de devoção, perenes em seu significado e sua originalidade, as réplicas de Vik Muniz questionam a representação da obra de arte e o fascínio que o mistério da fé exerce, há séculos, sobre os grandes artistas.

A criação artística sempre teve fascinação pelo mistério da fé”, argumenta Vik Muniz em um breve depoimento reproduzido no dossiê de imprensa distribuído pela organização do festival. “A arte mistura elementos fundamentais que vêm da crença e das experiências coletivas e individuais para promover um consenso sobre a realidade, seja ela presentificada ou apenas imaginada. Com a obra de arte, a verossimilhança não é mais que uma ilusão. Escrever não é descrever, pintar não é evocar, mesmo se constatamos que grande parte do que admiramos na história da arte está, objetivamente, relacionada à arte sacra”, conclui. Segundo a descrição apresentada pelos organizadores da exposição, a nova série de Vik Muniz explora, incansavelmente, as possibilidades da fotografia e as mais variadas possibilidades da arte que buscam uma tradução para o indizível.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima,
as releituras para as imagens clássicas
de Santa Inês (após Simon Vouet) e
São Benedito (após Jose Montes de Oca).

Abaixo, as releituras de Maria Madalena
(após Giovanni Girolamo Savoldo)
e São João Batista no Deserto
(após Caravaggio)









Realidade e representação: enganar o olho



O indizível, no caso da série “Imaginária”, provoca um olhar que nunca é neutro nem desinteressado. Diante das imagens que o artista Vik Muniz selecionou e “montou” com a intenção de construir uma ilusão de ótica, provocando uma semelhança inegável e irrecusável com um modelo religioso pré-existente, há uma quase obrigatória curiosidade que enlaça a experiência da percepção à identificação dos detalhes. Identificado pelo olhar mais atento, cada detalhe interroga o pensamento e leva o observador a considerar tanto o modelo original como a cópia que no momento se apresenta e a pensar, talvez, na origem da própria representação, na remota pré-história da arte, no sentido que ela evoca e no que ela desencadeia sobre o que seja falso ou verdadeiro.

A partir da brutalidade apenas aparente dos materiais utilizados, os pequenos fragmentos foram reunidos para “enganar o olho” e formar a imagem. Ao final do processo de montagem, o artista registrou tudo em fotografias – porque a arte, neste caso específico, também é a arte da fotografia. Conhecidas desde a Antiguidade Clássica pelos mestres da arquitetura e da pintura, as técnicas de “trompe l’oeil” (em francês, “enganar o olho”) não surgem como novidade nas obras de Vik Muniz. Na verdade, são estratégias presentes na maioria de sua produção, seja em recriações de obras muito conhecidas, seja em retratos de celebridades ou em recomposições de mosaicos sobrepostos e fotografados.
 
As estratégias de Vik Muniz, para o olhar do observador mais atento, trazem pontos de semelhança com a arte do holandês M. C. Escher (1898-1972), mestre incomparável na criação das ilusões de ótica em padrões geométricos, mas também remetem às montagens e colagens criadas pelos primeiros mestres do cubismo, Pablo Picasso e Georges Braque, além de outros artistas das vanguardas na arte moderna, desde o começo do século 20. A partir da década de 1960, estas mesmas estratégias de composição e de justaposição tornaram-se uma constante na Pop Art de nomes como Andy Warhol, Jasper Johns, Peter Blake, Robert Rauschenberg, Tom Wesselmann, Claes Oldenburg e Roy Lichtenstein, ou de brasileiros como Nelson Leirner, Athos Bulcão, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Regina Silveira, entre outros.











Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Tiago, o Maior (após Guido Reni)
e Nossa Senhora de Guadalupe (imagem
da tradição religiosa do México).

Abaixo, São Pedro (após Girolamo Batoni)
e Santa Luzia (imagem da tradição da Itália)








Apagando as diferenças



A principal novidade das práticas de Vik Muniz, em especial nesta “Imaginária”, talvez esteja na “remediação”, ou no uso de novas mídias e tecnologias para reconstituir ou reconfigurar, reinventando ou apagando a diferença entre novas formas de expressão e formas cristalizadas em aparatos tradicionais. A palavra “remediação” (do latim “remedere”, curar, restaurar) foi apresentada na década de 1960 por Marshall McLuhan para identificar uma inter-relação entre os meios de comunicação e para afirmar que o conteúdo de uma mídia é, sempre, uma retomada de conteúdos de outra mídia.
 
Mais recentemente, o mesmo conceito de "remediação" retornou às discussões teóricas sobre meios de comunicação, história da arte e literatura como um neologismo proposto por Jay Bolter e Richard Grusin (no livro “Remediation: Understanding New Media”, publicado no ano 2000 por The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, USA). No contexto das teorias da literatura e da comunicação, Bolter e Grusin lançaram o neologismo para refletir sobre novas versões baseadas nos escritos de ficção científica e horror de Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), com foco nos diferentes tipos de mídias: eletrônicas, impressas, digitais.

Remediação é um processo que ocorre quando um meio (de representação, de comunicação) passa a imitar ou incorporar elementos de outros meios, ou de outras mídias. Como processo, tem aproximações ou similaridades com as estratégias de citação, de paródia, de paráfrase e de intertextualidade, mas o que está em destaque é a transposição da obra original. Segundo Bolter e Grusin, a internet, por sua própria natureza, "remedia" todos os meios, fazendo a transposição de outras mídias que na origem estiveram veiculadas em jornais, nas revistas, na TV, no rádio, no livro, nas obras de arte e em todas as demais formas e tipos de linguagem e comunicação.

O termo remediação, portanto, tem equivalências diretas com as estratégias usadas por Vik Muniz na medida em que uma mídia “toma emprestado” de outra mídia 
as questões de forma e conteúdo para constituir, remediar, ou "fazer de novo", uma adaptação ou transposição. As estratégias nesta Imaginária evidenciam, também, relações com pressupostos específicos da história da arte, tais como o valor de culto e o valor de exposição, em suas referências diretas às relações fluidas e instáveis, quase sempre cambiantes, entre categorias conceituais de “cultura de massa”, “cultura popular e “cultura erudita”.








Vik Muniz na Arte Sacra: acima, a releitura
para São Sebastião (após José de Ribera) e
Santa Rita de Cássia (imagem da tradição).
Abaixo, a releitura para Santo Antônio de Pádua
(após Tanzio da Varallo) e Santa Terezinha
(segundo imagem da tradição). No final da página,
releituras de Vik Muniz para São Miguel Arcanjo
(após Darko Topalski) e para São Jorge e
o Dragão (após Gustave Moreau)








No contraste ou na fusão da riqueza das cores e das formas, situando em uma mesma obra elementos da expressão labiríntica e fragmentária pela escultura, pelo desenho, pela pintura, pela fotografia (que, ao final, sintetiza uma remontagem de todo o processo), Vik Muniz reúne e apresenta, em um mesmo plano, vários discursos simbólicos ou várias dimensões sobrepostas para engendrar a ilusão de uma só forma, um só objeto. A diversidade de materiais e de técnicas constrói uma unidade e se transforma em uma só imagem, que por sua vez reproduz, por analogia ou semelhança, uma imagem anterior muito conhecida.

O paradoxo de atrelar o mosaico e o múltiplo, o plural, a complexidade, à construção de uma só imagem, estabelece ainda um alerta importante para o observador, porque transforma a percepção da realidade e a percepção sobre a representação em coisas semelhantes e visualmente equivalentes. Observar com atenção a metamorfose dos detalhes reunidos pelo artista, que se fundem para constituir a ilusão de uma forma conjunta, torna-se também uma questão ideológica, porque denuncia que não há mais lugar para o olhar ingênuo e que o sentido da visão não pode ser separado da interpretação.



por José Antônio Orlando.



Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Vik Muniz na Arte Sacra. In: Blog Semióticas, 13 de agosto de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/08/vik-muniz-na-arte-sacra.html (acessado em .../.../...).



Para uma visita virtual às exposições do Rencontres d'Arles,  clique aqui.
























6 comentários:

  1. Isabella Maria Gastigliono14 de agosto de 2019 às 11:47

    Artigo excelente, como sempre, e com um cuidado extremamente profissional na edição de imagens e na identificação de cada uma, o que é coisa rara nas postagens que encontro, mesmo nas postagens dos mais conhecidos jornais e revistas (que deveriam ser profissionais e não são). De novo, aprendi muito. E entendi algumas questões sobre a arte de Vik Muniz que eu ignorava, confesso que sempre pensei que era uma novidade, e entendi que não é, tudo isso que ele monta para fotografar e desafiar a percepção do espectador ao elaborar imagens compostas por uma variedade de materiais não convencionais. José: parabéns porque você tem uma qualidade rara que é apresentar referências significativas da cultura em geral, em alto nível, traduzindo o que é muito erudito e levando para o entendimento popular sem perder a qualidade. Amo cada nova postagem que encontro aqui. Sou fã. E só agradeço.

    Isabella Maria Gastigliono

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  2. Cada vez que faço uma visita a este blog excelente, chamado "Semióticas", eu encontro beleza e inteligência. Vi em outra postagem aqui um comentário de alguém dizendo que a visita valeu por uma aula ou um curso inteiro. Assino embaixo. Eu nunca tinha conseguido entender muito bem a arte de Vik Muniz, agora estou com a sensação de que aprendi tudo, ou pelo menos o mais importante, sobre a arte que ele vem construindo com estas colagens e montagens. Também agradeço muito por você compartilhar algo tão belo e especial. Parabéns. João Pedro Lopes

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  3. Gosto muito da obra do Vik e AMO cada postagem que encontro aqui neste blog Semióticas. Parabéns demais!

    Deborah Marques

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  4. Delícia de seleção de imagens e de texto interpretando questões tão difíceis que você consegue traduzir e explicar como se fossem a coisa mais simples. Agradeço imensamente. Minhas visitas a este Semióticas valem por aulas e até por um curso inteiro. Agora sinto que sou especialista na Arte de Vik Muniz. Muito obrigado por esta maravilha!

    Ana Paula Barrozo

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  5. Procurei pelas imagens de arte sacra de Vik Muniz e encontrei seu blog Semióticas. Foi a melhor surpresa e o melhor presente que eu poderia receber. Parabéns pelo alto nível e pela beleza de tudo aqui em cada detalhe. Amei tudo.

    Danielle Piccolo

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  6. Interessante demais esta releitura da Arte Sacra pelo Vik Muniz. Faz a gente entender que há obras na história da arte que transcendem o tempo e o espaço para permanecer com força no imaginário das pessoas de diferentes países e culturas. Gostei muito da postagem, aprendi muito. E parabéns por este blog Semióticas que é um espetáculo.

    Luis Augusto Garcia

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