As pessoas não sabem, mas fazer
parte de uma
grande banda de rock é como estar em uma jaula.
–– Roger
Waters.
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24 de março de 2013
Pink Floyd na Lua
Uma
unanimidade: trata-se de um dos discos mais estranhos, belos e
cultuados do século 20. A alquimia entre beleza e estranhamento
começa na capa, com aquele fundo preto e o facho de luz que atravessa um prisma em formato de triângulo, tornando-se arco-íris, para prosseguir nas melodias –
hipnóticas, psicodélicas, sofisticadas, em letras sobre a vida
cotidiana, o amor, as perdas, tristeza, ambição, dinheiro, demência, medo de
envelhecer e, principalmente, o valor da amizade.
Em 24 de março de 1973, foi lançado aquele que
muitos consideram o melhor álbum de uma lenda no panteão do rock e
da cultura pop chamada Pink Floyd – um disco que se mantém há décadas, desde o
lançamento, entre os mais vendidos da história, primeiro no formato
LP e agora em CD e arquivos digitais. 'The dark side of the Moon'
merece ser definido como 'emblemático' – palavra que muitos usam,
nem sempre com propriedade. Emblemático e obra-prima – com
novidades musicais e técnicas que seriam rapidamente incorporadas
pela maioria de outras bandas e outros artistas que viriam depois, todas em referência explícita ao guitarrista e vocalista Syd Barrett
(1946–2006), mentor do grupo, criador das ideias musicais e estilísticas, autor do nome da banda e de todas as canções dos primeiros discos.
Barrett
deixou o Pink Floyd em 1968 – mas os integrantes sempre afirmaram
que, mesmo ausente, ele permaneceu como a mais forte influência
na concepção e nos arranjos dos discos lançados por Roger Waters
(compositor, baixista e vocalista), Nick Mason (compositor e
baterista) e Richard Wright (compositor e tecladista), que desenvolveram arranjos e adaptações para as principais ideias sobre música
e estilo inventadas por Barrett desde que os quatro eram estudantes em Cambridge, em meados
da década de 1960.
O nome do grupo, abreviação de The Pink Floyd Sound, foi criado por
Barrett em homenagem aos músicos de blues Pink Anderson e Floyd
Council. Os amigos de escola começaram a ensaiar juntos em 1965 e,
no ano seguinte, contaram com um lance de sorte logo na estreia do
nome Pink Floyd: o cineasta Michelangelo Antonioni assistiu a um dos primeiros shows do grupo, em Londres, num intervalo das filmagens de outra obra-prima, “Blow
Up”, e convidou os quatro para compor a trilha sonora de “Zabriskie
Point”, seu próximo filme.
De
'Blow Up' a 'Zabriskie Point'
Com
o aval de Antonioni destacado na imprensa e o sucesso de “Blow Up”,
o Pink Floyd lança as primeiras canções ('Arnold Layne' e 'See
Emily Play') e se torna o favorito do Underground. Quando surgiu o
primeiro álbum, em 1967, 'The piper at the gates of dawn', a plateia
já disputava ingressos para seus shows em casas que, por conta da
banda, se tornariam lendárias – entre elas, The Roundhouse, Bar-B-Que, The Marquee Club,
UFO Club.
Depois
do primeiro álbum do Pink Floyd, viriam outros clássicos imbatíveis
da era do rock, todos dedicados a Barrett e com letras e canções
criados a partir de suas ideias originais: 'A saucerful of secrets'
(1968), 'More' (1969), 'Ummagumma' (1969), 'Atom heart mother'
(1970), 'Meddle' (1971), 'Obscured by clouds' (1972) e, finalmente,
'The dark side of the Moon' (1973).
A
trajetória do Pink Floyd e as reverências ao talento inaugural de
Barrett ainda incluiriam 'Wish you were here' (1975), 'Animals'
(1977), 'The Wall' (1979). Há ainda os singles, as participações
em trilhas sonoras de filmes, as coletâneas, os registros de shows
ao vivo e um concerto impressionante, “Live at Pompeii”,
transformado em documentário que chegou aos cinemas em 1972, com a
banda tocando seis longas composições no Piazza Anfiteatro, nas ruínas de
Pompeia, na Itália, dirigido por Adrian Maben e gravado em 1971 sem
ninguém na platéia.
David
Gilmour, que havia sido professor de guitarra de Barrett, chegou
depois dele ao Pink Floyd – a princípio para atuar como
guitarrista e backing vocal, mas também passou a protagonizar o
papel de 'pomo da discórdia' em todas as gravações de estúdio e
nas turnês, em conflitos que terminaram por levar ao fim da banda.
Wright deixou o grupo em 1979 e Waters, que assumiu o posto de líder
depois da saída de Barrett, declarou em 1985 o fim do Pink Floyd.
Mas a história teria ainda um triste capítulo: inconformado com o
fim da banda, Gilmour promoveu uma longa e intensa batalha na Justiça
para continuar usando o nome e o repertório do Pink Floyd.
Processos
e reprises diluídas
Por
fim, David Gilmour acabou ganhando a causa, com um arsenal de
liminares e advogados. Em seguida, montou uma nova banda (com
participação ocasional de Mason e Wright) e lançou dois álbuns
usando o nome Pink Floyd, com reprises diluídas e previsíveis dos
grandes sucessos da banda – "A momentary lapse of reason”
(1987) e “The division bell” (1994). A maioria dos críticos e
dos fãs, entretanto, preferem considerar discos e shows de Gilmour
como trabalho solo, da mesma forma que muitos consideram “The final
cut” (1983) um trabalho solo de Roger Waters, mesmo que ele seja na
temática e na técnica um disco do Pink Floyd e tenha contado com
participação de todos os músicos da banda original, à exceção
de Richard Wright.
.
Em
2005, depois de quase duas décadas, os integrantes do Pink Floyd
voltariam a se reunir para uma única apresentação no concerto
beneficente 'Live 8'. Depois disso, Wright morreu em 2008 e somente
em 12 de maio de 2011 Roger Waters, Mason e Gilmour voltaram a se
encontrar no palco, em Londres, para um show de Waters na 'The Wall
Tour'. Tocaram juntos dois clássicos do Pink Floyd: 'Comfortably
numb' e 'Outside the Wall' – não por acaso outra homenagem a Syd
Barrett – cuja presença, ideias e personalidade levaram Waters à
criação de Pink, personagem central em 'The Wall', o disco e o
filme, autêntica ópera-rock escrita por Waters e dirigida por Allan
Parker em 1982.
A
experiência de ouvir 'The dark side of the Moon' pode ser quase
transcendental. Conheci o disco quase uma década depois do
lançamento, quando ganhei o LP de presente de aniversário. Foi uma
descoberta e tanto – que ainda perdura com toques de nostalgia a
cada vez que ouço o disco ou apenas uma ou outra de suas dez
canções. Sua mistura de beleza e estranhamento, com o passar do
tempo, tem reforçado as lendas, que vão da simetria impressionante
dos acordes do disco com as cenas do filme 'O mágico de Oz', de
1939, à inserção quase mística de mensagens cifradas e frases
inteiras com ruídos bizarros do programa de TV do grupo de comediantes Monty
Python, idolatrado pelos integrantes do Pink Floyd e por sua legião
de fãs.
O
lugar de Syd Barrett
As
lendas sobre o disco e suas versões saborosas são alimentadas por
suas sucessivas reedições em novos formatos e suportes – entre
elas a recente "The dark side of the Moon – Immersion box
set", com seis CDs e DVDs que incluem remasterizações, demos,
documentários e muitas entrevistas com o grupo e com técnicos que
participaram das gravações no estúdio Abbey Road, entre junho de
1972 e janeiro de 1973, com participação importante do produtor
Alan Parsons. Também não faltam itens de colecionador na
memorabilia da banda – com destaque para o documentário 'Classic
Albums: Pink Floyd and the making of The dark side of the Moon' (DVD,
2003), de Matthew Longfellow, e duas biografias, semelhantes e
complementares.
Os
dois livros, que receberam títulos quase idênticos no Brasil, foram
escritos por jornalistas reconhecidos como especialistas: 'Os
bastidores de The dark side of the Moon' (Editora Zahar), de John
Harris, e 'Nos bastidores do Pink Floyd' (Editora Évora),
biografia do grupo assinada por Mark Blake. Tanto Harris como Blake
vão fundo nos detalhes da história da banda, reunindo depoimentos
surpreendentes, mas ambos coincidem no destaque e no carisma de Syd
Barrett, que contagiava a todos de imediato.
"Syd Barrett
era um jovem com imenso e estranho carisma. Quando saiu da banda,
inicialmente seus amigos acharam muito difícil continuar sem ele”,
escreve Mark Blake, para quem o criador e mentor do Pink Floyd foi um
poeta brilhante e um guitarrista dos melhores e mais inovadores, dos
primeiros a explorar por completo as capacidades sonoras da distorção, as variações da técnica do instrumento e novidades que estavam surgindo, entre elas a máquina de eco. Syd Barrett, conclui Blake,
influenciou em definitivo não só todo o som personalíssimo e
incomum do Pink Floyd, mas também tudo o que foi feito por diversos músicos, diversas bandas e diversos artistas depois dele.
Não é pouco.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Pink
Floyd na Lua.
In: _____. Blog
Semióticas,
24
de
março
de 2013.
Disponível no link
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2 de fevereiro de 2013
Bodas do 'boom'
Foi
no início da década de 1960 que leitores do mundo inteiro tiveram
as primeiras notícias sobre uma nova safra de grandes escritores de países da América
Latina. Surgiam nomes que pelas afinidades ou pelas semelhanças de estilo
e temática pareciam formar um grupo organizado, como os argentinos
Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares; o
colombiano Gabriel García Márquez; os peruanos Carlos Castaneda, José María Arguedas e
Mario Vargas Llosa; os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e
Guillermo Cabrera Infante; os mexicanos Juan Rulfo, Octavio Paz e
Carlos Fuentes; os chilenos Pablo Neruda, Violeta Parra e José Donoso; o
guatemalteco Miguel Ángel Asturias; os bolivianos Gastón Suárez e Marcelo Quiroga Santa Cruz; os venezuelanos Salvador Garmendia e Miguel Otero Silva; o nicaraguense Ernesto Cardenal; o paraguaio Augusto Roa Bastos; os uruguaios Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti e Eduardo Galeano; ou os brasileiros Guimarães Rosa, Jorge Amado, Clarice Lispector, Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros – alguns deles presentes em todas as listas que se referem ao "boom",
outros sem alcançar o lugar de classificação unânime ou só incluídos a partir das décadas seguintes.
A
novidade: a literatura que estes autores apresentavam a leitores da
Europa, dos Estados Unidos e de outros países era bastante diferente do lugar comum e
imprevisível em suas variações de romances, novelas, contos, poemas. Mas, ao mesmo tempo, trazia semelhanças com clássicos
da Literatura Universal, com recursos do fantástico e do mundo das
fábulas a conduzir narrativas primorosas sobre a vida real nos
trópicos, na periferia do capitalismo, nos confins da América
Central e da América do Sul. Com seus impasses rurais e urbanos de
toda ordem, seus fantasmas e assombrações muito peculiares e suas interfaces de magia, de insólito, de sobrenatural, de crueldade, a nova literatura da América Latina surgia com um inesperado sucesso de crítica e de vendas, surpreendendo até os mais céticos e seduzindo uma multidão de novos leitores pelo mundo afora.
O
inumano, a metalinguagem e seres do mundo da imaginação invadiam de forma poética narrativas que muitas vezes fugiam às categorias estanques de gênero ou tornavam relativas estas fronteiras, quase sempre com destaque no viés de crítica aos dramas da realidade social – daí a
definição que abarcaria grandes autores e obras da América Latina
daquele momento: o “boom” do Realismo Mágico ou Realismo
Fantástico ou Realismo Maravilhoso, nomenclatura sujeita a
sutilezas de classificação e que também não alcança unanimidade entre críticos e teóricos da literatura ou dos estudos culturais. Sobre todos, há pelo menos
um consenso: Borges, que foi um dos patronos e antecessores do grupo.
Com seus textos híbridos entre ensaio e ficção, em que o assunto é
quase sempre a própria literatura, reunidos em livros como
“Ficciones” (1944) e “El Aleph” (1949), Borges é o primeiro
nome do “boom” a alcançar o leitor médio e a crítica
acadêmica do Primeiro Mundo (veja
também "Semióticas:
Outros Borges").
Mais
de quatro décadas depois das primeiras edições de seus livros em
espanhol, Borges finalmente seria publicado em francês, em inglês, em
italiano, em português e em outros idiomas pelo mundo afora. Sua
literatura, encadeada em textos breves e da maior complexidade, surge para seus compatriotas e para seus leitores estrangeiros com a originalidade de uma “obra
aberta” – como definiria com propriedade Umberto Eco, referindo-se a certas possibilidades de cooperação interpretativa nas trilhas da "semiose ilimitada" fundadas pela semiótica de Charles Sanders Peirce.
Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: “Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.
Borges e sua literatura cativam os principais expoentes do Estruturalismo e levam Michel Foucault declarar, em 1966, no prefácio de “As Palavras e as Coisas”, publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes: “Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”.
Meio século de
história
Talvez Borges seja um dos consensos possíveis sobre aquele grupo de autores, mas sempre houve muitas controvérsias sobre as origens e as motivações do “boom”. Sabe-se que o termo, para se referir à
literatura latino-americana, foi usado pela primeira vez por um
escritor e jornalista chileno, Luis Harss. No mesmo ano em que
Foucault publicava na França “As Palavras e as Coisas”, Harss
lançava seu livro “Los Nuestros”, em que mistura
depoimentos, reportagem e crítica para investigar o fenômeno da
repercussão internacional de certas obras e certos autores, algo sem precedentes na literatura da
América Latina.
O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
O livro de Harss, relançado em 2012 pela Editora Alfaguara, foi o resultado de uma série de entrevistas do autor com 10 escritores latino-americanos por ele considerados os mais representativos daquele momento: Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, García Márquez e Vargas Llosa. Houve controvérsias, já que a lista de entrevistados deixou de fora e sequer mencionou nomes que expoentes da crítica em países da Europa já destacavam como protagonistas do renascimento da literatura na América Latina, entre eles Clarice Lispector, José Donoso, Ernesto Sabato, José María Arguedas, Augusto Roa Bastos ou Guillermo Cabrera Infante. Contudo, desde então formou-se um certo consenso entre pesquisadores para o reconhecimento de que Harss exerceu papel pioneiro na criação do cânone e da primeira carta de navegação relevante sobre o "boom".
Harss
destaca entre os autores do grupo uma nova relação com a linguagem
da forma literária, francamente experimental e política, e propõe
um marco inaugural: várias foram as publicações que prepararam o
terreno, incluindo as primeiras edições de Borges na França, na
segunda metade da década de 1950, além de títulos importantes de
outros autores nos anos seguintes, mas ele situa em 1963 o primeiro
grande momento do “boom” latino-americano, com a publicação
simultânea em espanhol, francês e inglês de um livro ímpar:
“Rayuela” (no Brasil, “O jogo da amarelinha”), de Cortázar.
Pelas coordenadas traçadas por Harss, o “boom” completa, em
2013, 50 anos de história.
Do
Terceiro Mundo para o Velho Mundo: a partir de uma reflexão sobre a
situação política e social da América Latina, autores em países
diferentes, e que sequer se conheciam, transformaram em literatura da
melhor qualidade, na mesma época, os absurdos e o insólito da vida
cotidiana. Povoada de tradições exóticas e de cenários
desconhecidos, repleta de apelos ao sobrenatural, a literatura da
América Latina pela primeira vez ganharia projeção internacional,
passando a exercer considerável influência sobre a obra de
importantes pensadores e ficcionistas até nossos dias, incluindo,
entre muitos outros, Italo Calvino, José Saramago, Susan Sontag,
Umberto Eco, Homi Bhabha, Salman Rushdie, Roberto Bolaño.
Contudo,
do lado de dentro das fronteiras de cada país do continente
latino-americano, o contexto político daquele momento histórico era
explosivo e dos mais sombrios. A resposta à Revolução Cubana em
1959 foram, nos anos seguintes, os regimes de exceção e as
ditaduras militares, instaladas simultaneamente na maior parte dos
países da região com apoio dos Estados Unidos. Esta nova realidade,
que despertou uma mistura de sentimentos de utopia e desejo de
justiça, também gerou alegorias transformadas em obras-primas da
Literatura Universal.
Da América
Latina à Europa
O
estudo publicado em 1966 por Luis Harss já apontava para as
semelhanças e diferenças – tanto entre obras e autores incluídos
no “boom” do Realismo Mágico, quanto entre este movimento e as
vanguardas modernistas nas primeiras décadas do século 20. Se é
inquestionável que o “boom” produziu obras-primas que permanecem
há mais de meio século como influência e referência, também é
certo que ele nunca teve qualquer padrão estético coeso. Em outras
palavras, parodiando um célebre aforismo sobre Minas Gerais de Guimarães Rosa, também ele um expoente entre estas referências: no “boom”, são vários.
Em
sua grande maioria, os autores do “boom” sempre estiveram
comprometidos com apoio aos movimentos populares de resistência à
censura e à repressão instaladas pelas ditaduras militares em seus
países de origem. Alguns deles foram exilados e outros, como
Cortázar, chegaram a empreender jornadas internacionais pela Anistia
e pelos Direitos Humanos, mas nenhum deles chegou a apresentar algum
manifesto ou programa de ação – prática frequente da militância
entre as vanguardas da arte no começo do século 20.
Pelo
contrário. Não houve nenhum “alinhamento”, nenhuma “meta
programática”. Tanta variedade e liberdade acabou fornecendo
fôlego às críticas: os detratores do “boom” existem, ainda que
sem grande influência ou ressonância, e costumam se apegar ao
argumento de que o grupo não tinha coesão e que tudo não passou de
marketing editorial. Mas talvez tal argumento seja mesmo um equívoco:
afinal, as obras-primas lançadas naquele período são um
contraponto inquestionável.
A
diversidade de autores e obras nomeados com o rótulo de Realismo
Mágico é evidente. Basta lembrar que um dos destaques incluídos no
“boom” foi o cânone maior da literatura do Brasil, Machado de
Assis (1839–1908), um mestre do século 19, traduzido e publicado
nos Estados Unidos e na Europa na mesma época e no mesmo pacote
editorial que reunia, entre outros “estreantes”, Borges,
Cortázar, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Vargas Llosa, García
Márquez, Guimarães Rosa, Jorge Amado (veja
também "Semióticas:
O Bruxo e a crítica internacional").
Machado de Assis: cânone brasileiro
do século 19 surge em destaque no
"boom" do Realismo Fantásticomesmo pacote literário e comercial dos autores latino-americanos do |
Contracultura, o
contexto libertário
Também
há controvérsias quanto ao tempo de duração do “boom”, mas
com frequência se destaca o período que vai de 1963, com
a publicação de “Rayuela”, até, para alguns, a data de 11 de setembro de 1973, com o golpe militar contra o governo de Salvador Allende no Chile, enquanto para outros o período se estende até 1982, ano em que se concede o Prêmio
Nobel de Literatura a García Márquez. Não por acaso, é também no
ano de 1982 que muitos países da América Latina começam o retorno
a regimes democráticos, depois dos tempos sombrios de violência e censura das ditaduras
militares. Mas este período historiográfico também não deixa de ser uma demarcação
aleatória, sujeita a variáveis – há quem defenda também outros eventos para a demarcação
inicial, entre eles o marco em 1962, ano da publicação de “Historias de cronopios y
de famas”, de Cortázar, ou em 1959, ano da Revolução Cubana.
As controvérsias e questionamentos fazem todo sentido, ainda mais que os nomes principais
do “boom” haviam publicado muito antes de 1963 e continuaram a
produzir e publicar até muito depois do ano de 1982. Outras datas com frequência apontadas como marcos de importância para assinalar o fim, ou mesmo para um novo renascimento do “boom”, incluem o ano de 1986, quando morreu Borges, decano
do grupo, ou o ano de 2010, quando outro baluarte do movimento que destaca a literatura da América Latina, o peruano Vargas Llosa, também seria condecorado com o Prêmio Nobel de
Literatura.
D Três obras de Borges que foram adaptadas com sucesso para o cinema: acima, uma cena de A Estratégia da Aranha, filme de 1970 com direção de Bernardo Bertolucci; e Borges durante as filmagens de Invasión, filme de 1969 de Hugo Santiago com roteiro de Borges e Adolfo Bioy Casares (na foto, a partir da esquerda, o diretor de fotografia Ricardo Aronovich, o cineasta Hugo Santiago, Jorge Luis Borges e o ator Lautaro Murúa); no alto, cartaz de A Intrusa, co-produção entre Brasil e Argentina, de 1979, com direção de Carlos Hugo Christensen. Abaixo, uma cena do filme de 1965 A hora e a vez de Augusto Matraga, versão do cineasta Roberto Santos para o conto que encerra "Sagarana", livro de João Guimarães Rosa. Também abaixo, o fotógrafo no estúdio em Blow Up, versão de 1967 de Michelangelo Antonioni para o Cortázar de Las Babas del Diablo; Week-End à Francesa, versão também de 1967 de Jean-Luc Godard para a narrativa A auto-estrada do sul, de Cortázar; e uma cena de Erêndira, filme de 1983 de Ruy Guerra com roteiro de García Márquez baseado em sua novela La increíble y triste historia de la cândida Erêndira y de su abuela desalmada |
A
descoberta da literatura da América Latina por leitores do Primeiro
Mundo vem no contexto libertário da Contracultura – tempos da
Guerra Fria, da novidade da TV e da dominação cultural
norte-americana avançando pelos cinco continentes. É também a
época em que ganham força protestos da juventude, o recém-criado
rock'n'roll, o movimento estudantil, mobilizações pelos direitos
civis, as passeatas pacifistas, as rupturas lançadas pelo comportamento inconformista e pela literatura libertária da geração beat – por sua vez mentores e
avatares da experiência em sociedades alternativas, em viagens
esotéricas de autoconhecimento, em religiões orientais, em rituais de
shamanismo e de alucinógenos.
Neste
cenário, o “boom” da literatura latino-americana encontra
terreno fértil. Rapidamente assimilado, desatou a imaginação de
leitores e de outros autores, convocou o humor e a ironia em
situações das mais alegóricas e criou novas formas narrativas que
foram absorvidas pela Literatura Universal. Não é um legado
pequeno, ainda que seja possível estabelecer toda uma rede de
filiações dos escritores do “boom” a certas obras e autores
como James Joyce, William Faulkner, Franz Kafka – com reflexos que
transparecem como influência ou referência direta em “Rayuela”,
em “Pedro Páramo”, em “Cien Años de Soledad” e em boa parte
do que o Realismo Mágico produziu.
. |
As
narrativas do trio Faulkner-Joyce-Kafka são fundamentais à
literatura do “boom”, mas há outras obras que prevalecem como
referência direta, entre elas "As Vinhas da Ira" ("The Grapes of Wrath"), romance de 1939 de John Steinbeck. Virginia Woolf também ganha destaque como
forte influência para alguns, caso de García Márquez, Cortázar e
Clarice Lispector, assim são referências importantes para vários autores do “boom” os escritos experimentais lançados por
Guillaume Apollinaire e todo o Modernismo dos surrealistas franceses.
Porém, nem tudo é século 20.
Pairando
sobre todos, inevitável, no “boom”, está a sombra de Edgar Allan Poe, além das
clássicas novelas de ficção científica, enquanto Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e outros também rendem tributo a Machado de Assis, mestre nas
artimanhas do fantástico e nas alegorias construídas no jogo narrativo, não por acaso também leitor devotado e tradutor de Poe. Na lista
de mentores e precursores em evidência ainda há Goethe, Byron,
Baudelaire, Rimbaud, Flaubert, Swift, Shakespeare, Rabelais, o
romance medieval de Cervantes, os contos árabes de Sherazade, a
mitologia pagã da Antiguidade, a Torá e os evangelhos da Bíblia Sagrada,
entre outros títulos enumerados nas estantes da Biblioteca.
Sobre esta rede quase infinita de influências e de precursores,
Borges, o visionário, guardou um comentário definitivo: os livros
sempre falam entre si e isso não depende de os autores terem se
conhecido.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Bodas do “boom”. In: Blog
Semióticas,
2 de fevereiro de 2013. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/02/bodas-do-boom.html
(acessado
em .../.../…).
Clássicos
do Realismo Fantástico nas livrarias:
No alto, "Música de banda" (1960),
fotografia de Juan Rulfo. Acima,
ilustração
na capa da primeira edição
de “Cien años de soledad”, de
Gabriel García Márquez, publicada
|
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