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13 de setembro de 2012

Revistinha de vovô




Quem conduz e arrasta o
mundo e os homens
não são as máquinas, mas sim as ideias.
................................
  Victor Hugo (1802-1885).



Uma notícia policial trouxe “O Tico-Tico” de volta no tempo. As duas primeiras edições da primeira revista em quadrinhos do Brasil, publicadas em 1905, foram furtadas da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. O crime ocorreu em 2011, mas não foi divulgado na época para não atrapalhar as investigações. Até hoje as revistas, extremamente raras e consideradas preciosidades do acervo da FBN, não foram recuperadas. A suspeita da Polícia Federal é de que o furto tenha sido ação de criminosos que se passaram por pesquisadores na seção de periódicos da instituição e simplesmente guardaram as duas edições da publicação em bolsas ou casacos, saindo sem serem notados.

Marco inicial das publicações dedicadas às crianças e fetiche confesso, com suas páginas coloridas, na infância de uma lista interminável de escritores e de personalidades da cultura brasileira, a revista, que o poeta Carlos Drummond de Andrade havia definido como “a segunda vida dos meninos do começo do século 20”, também foi notícia em 2005, ano do seu centenário, quando “O Tico-Tico” e seus personagens reapareceram, depois de décadas de esquecimento, em reproduções nas páginas de dois livros especialíssimos que se tornaram obras de referência.

A duas publicações, com títulos muito parecidos, mas muito diferentes no formato e na abordagem do conteúdo, resgatam uma amostragem do trabalho magistral de pioneiros das histórias em quadrinhos e das artes gráficas no Brasil: “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” (Editora Via Lettera) e “O Tico-Tico: Centenário da Primeira Revista em Quadrinhos do Brasil” (Opera Graphica). Escrito pelo colecionador de quadrinhos Ezequiel de Azevedo, mineiro de Juiz de Fora e formado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), “Cem Anos de Revista” apresenta e analisa, em 64 páginas com ilustrações coloridas, as galerias de imagens dos principais quadrinhos, colunas, adivinhações, páginas para recortar e armar e personagens que tiveram seu auge de popularidade nas primeiras décadas do século 20, antes de serem defenestrados pela invasão norte-americana do império Disney e dos super-heróis da Marvel.







Revistinha de vovô: no alto, ilustração
da capa do álbum de luxo O Tico-Tico:
Centenário da Primeira Revista em

Quadrinhos do Brasil. Acima, fac-símile
da primeira edição da revista, com data
de 11 de outubro de 1905, e outras três
capas de sucesso da publicação pioneira
na primeira década do século 20. Abaixo,
a capa da edição de final de ano em 1914 e
as capas de dois Almanaques O Tico-Tico,
o primeiro, publicado em 1911, e uma
edição edição especial publicada em 1938













Entre estes personagens que passaram de sucesso no imaginário nacional ao mais completo esquecimento, um dos destaques é o loiro Chiquinho, sucesso absoluto de popularidade em histórias inéditas publicadas até o fim das edições semanais, em 1957. Principal chamariz desde o primeiro número de “O Tico-Tico”, Chiquinho ainda viveria a maior polêmica na trajetória da revista. Depois de décadas ficaria provado que o Chiquinho, tão brasileirinho, era na verdade um decalque, copiado por Luís Gomes Loureiro e outros desenhistas, a partir das histórias de um outro personagem criado pelo norte-americano Richard Fenton Outcault (1863-1928).

As histórias inéditas terminaram em 1957, mas Chiquinho ainda retornaria com algum sucesso nas décadas seguintes, nas compilações do "Almanaque O Tico-Tico". Chiquinho, conforme destaca Ezequiel de Azevedo, tem comprovadamente sua matriz original em “Buster Brown” (1902), do mesmo Outcault que passou à história como criador de “Yellow Kid” (1895), que rivaliza na disputa pelo título de primeiro personagem de histórias em quadrinhos com o "Nhô-Quim", criado no Brasil em 1869 pelo italiano naturalizado brasileiro Angelo Agostini (1843-1906). O argumento dos defensores de "Yellow Kid" é que ele foi o primeiro personagem com histórias narradas com o texto em balões, enquanto o "Nhô-Quim" de Agostini trazia o texto em legendas abaixo de cada quadro das ilustrações. 







A polêmica sobre a "adaptação" do personagem de Outcault nas páginas de "O Tico-Tico", aponta Azevedo, só veio à tona depois da Segunda Guerra. Mas o argumento é indefensável: Chiquinho, seu cãozinho Jagunço e a garota Lili têm, no traço dos personagens e nas tramas das aventuras, as mesmas características dos personagens criados por Outcault, batizados pelo autor como Buster Brown, Tige e Mary-Jane. Acontece que o Buster original parou de ser publicado em 1910, enquanto Chiquinho sobreviveu bravamente até dezembro de 1957, recriado em aventuras inéditas pela criatividade dos artistas nacionais de “O Tico-Tico”.



Celebridades de outras épocas



Tanto “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” como “O Tico-Tico: Centenário da Primeira Revista em Quadrinhos do Brasil”, apresentam a revista às novas gerações e descrevem o sucesso imediato de personagens originais do Brasil, como Zé Macaco e Faustina, Kaximbown, Jujuba, Carrapicho, a crioulinha Lamparina e o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, entre muitos outros. “O Tico-Tico” também foi uma publicação pioneira ao apresentar celebridades estrangeiras que nasceram no começo do século 20 – todas com nomes abrasileirados pela revista, caso de, entre outros, Little Nemo (“O Pequeno Nemo”), Popeye (“Brocoió”), Mickey Mouse (“Ratinho Curioso”) e Felix The Cat (“Gato Maluco”).

 






A versão nacional e o personagem original:
Chiquinho, destaque na revista O Tico-Tico
 desde 1905, e Buster Brown, que foi criado e
publicado a partir de 1902 nos EUA pelo
norte-americano Richard Fenton Outcault




O principal destaque do livro de Azevedo são as ilustrações coloridas e os perfis de colaboradores que marcaram época na revista, entre eles artistas magistrais como Angelo Agostini. Coube a Agostini a honraria de ser um dos principais pioneiros dos quadrinhos no Brasil e no mundo. Seus trabalhos gráficos, que misturavam desenhos e pequenos textos, surgiram ainda nas últimas décadas do século 19 e teriam um marco com “As aventuras de Nhô-Quim”, publicadas entre 1869 e 1883.

Nhô-Quim estreou na historinha ilustrada “Impressões de uma viagem à Corte”, cujo primeiro capítulo foi publicado na revista “Vida Fluminense”, em 30 de janeiro de 1869, apresentando o personagem caipira que se muda para a cidade do Rio de Janeiro e que fica chocado com as novidades da civilização urbana. Com o sucesso de "Nhô-Quim", no mesmo ano seria publicada a primeira ilustração apresentando um outro personagem lendário criado por Agostini: o aventureiro Zé Caipora.






Um gênio da arte da ilustração:
Angelo Agostini, pioneiro na criação de
personagens e de ousadias gráficas




A importância da obra de Agostini é tão grande que, para alguns pesquisadores, Nhô-Quim e Zé Caipora foram o ponto de origem para a criação da revista “O Tico-Tico”. Nhô-Quim também passou a ser o símbolo dos quadrinhos no Brasil e comprova a surpreendente atualidade do trabalho de Agostini, que ainda tem outros méritos de pioneirismo: além de Nhô-Quim rivalizar com Yellow Kid e outros heróis estrangeiros na disputa pelo posto de primeiro dos personagens dos quadrinhos, muitos especialistas defendem que também foi ele o inventor da revista de quadrinhos, pois, em 1886, relançou as aventuras de Zé Caipora em fascículos individuais, encadernados com seis capítulos cada. 



Agostini, primeiro entre seus pares
 


Zé Caipora também consta em outra disputa como o primeiro dos heróis de aventura dos quadrinhos, décadas antes de personagens lendários como "Little Nemo" (1905), Tarzan (1912), Zorro (1920), Jim das Selvas e Flash Gordon (1934), Batman (1939) e super-heróis como Superman (1938), Capitão América e Mulher Maravilha (1941), entre outros. A lista de marcos pioneiros na trajetória de Agostini traz ainda a amada de Zé Caipora, a índia chamada Inaiá, primeira heroína do Brasil e do mundo com conotações eróticas.

Agostini foi homenageado no ano 2000, com a publicação de um catálogo ilustrado pelo Senado Federal. “Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros 1869-1883”, organizado pelo jornalista e pesquisador Athos Eichler Cardoso, traz na íntegra as histórias dos personagens criados por Angelo Agostini, reunindo o que foi publicado nas revistas “Vida Fluminense”, “O Malho” e “Don Quixote”.











 

Revistinha de vovô: acima, Hully Gee,
mais conhecido por Yellow Kid, criado
em 1895 por Richard Fenton Outcault.
Abaixo, uma amostra das aventuras e das
ousadias gráficas de Zé Caipora e de
Nhô-Quim, no traço de Angelo Agostini












Por conta da estreia de Nhô-Quim, o dia 30 de janeiro foi escolhido como data comemorativa das HQs nacionais. Agostini, sempre atuante na florescente imprensa brasileira, abraçou o projeto e foi um dos mais ativos mentores da novidade da primeira revista em quadrinhos: criou o projeto gráfico e o logotipo de “O Tico-Tico”, além de desenhar as primeiras capas, muitas das ilustrações e algumas histórias completas, como “História do Macaco”, “Chico Caçador” e “A História do Pai João”.



J. Carlos, meu amor, e outras tiras



Além da presença fundamental de Agostini, o livro de Azevedo também chama atenção para outros nomes da equipe de “O Tico-Tico” que estiveram entre os principais artistas nacionais do século passado, caso do carioca J. Carlos, na verdade José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), considerado nosso maior caricaturista e também ilustrador, designer gráfico, escultor, escritor, letrista de samba, autor de teatro de revista, inventor das melindrosas e de muitas capas, páginas e personagens de sucesso em “O Tico-Tico”.

À frente da revista com Agostini desde o primeiro número, J. Carlos foi um de seus principais ilustradores, criando e publicando a série “O talento de Juquinha” e diversos personagens de tiras e histórias completas, entre eles Jujuba e seu pai, Carrapicho, e a impagável negrinha Lamparina, que é considerada sua maior criação nas HQs. Além de Agostini e J. Carlos na linha de frente, também são surpreendentes as criações originais de Luiz Sá, Max Yantok, Alfredo e Oswaldo Storni, Leônidas Freire, Lino Borges, Theo e muitos outros.









 Revistinha de vovô: acima, o pioneiro J. Carlos,
considerado o maior de todos os caricaturistas
brasileiros, e seu maior sucesso nas páginas de
O Tico-Tico, a garota negra Lamparina (1910).
Abaixo, o jornalista e pesquisador dedicado às
histórias em quadrinhos, Álvaro de Moya; e o
cartunista, chargista, pintor, dramaturgo, caricaturista,
escritor, cronista, desenhista, humorista e jornalista
Ziraldo, que sempre apontou a revista O Tico-Tico
como sua primeira e principal influência

 









Os saudosistas mais exigentes, entre os colecionadores e pesquisadores, por certo vão preferir a edição de luxo “O Tico-Tico 100 Anos – Centenário da Primeira Revista de Quadrinhos do Brasil”, organizada pelos professores universitários Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos. O álbum conta com colaboração de especialistas como Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Diamantino Silva, Sérgio Augusto, Franco de Rosa, Sônia Buyten e Marco Aurélio Lucchetti, que assinam capítulos analíticos e reproduzem depoimentos de grandes nomes da literatura e da imprensa que acompanharam as edições semanais e os famosos “Almanaques Tico-Tico”.



Trajetória no século 20



O livro de Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio alerta sobre a fragilidade de nossa memória cultural e destaca que a pioneira entre as revistas em quadrinhos nacionais também é citada em muitos poemas, crônicas, contos e romances, contando entre seus leitores os nomes de ilustres escritores como Carlos Drummond de Andrade e toda a geração dos modernistas, mais Rui Barbosa, Érico Veríssimo, Lygia Fagundes Telles, o sociólogo Gilberto Freyre, o folclorista Luiz Câmara Cascudo, o bibliófilo José Mindlin e centenas de outros, incluindo ainda expoentes da literatura infantil, dos cartuns e do grafite, numa lista extensa de fãs que tem, entre outros, de Ruth Rocha a Jaguar e Ziraldo, de Maurício de Souza a Millôr Fernandes e Henfil.







Além de ilustrações primorosas, “O Tico-Tico, Cem Anos de Revista” traz um brinde simplesmente irresistível para os fãs de HQ: um encarte em fac-símile com a reprodução completa e colorida da raríssima primeira edição da revista, fundada no Rio de Janeiro pelo grupo editorial que também editava “O Malho” (lançada em 1902), sob comando do jornalista Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (1866-1932). Sobre o nome da revista há duas versões: seria uma referência ao passarinho típico do Brasil ou ainda uma alusão às escolas Tico-Tico, que apareceram no final do século 19 com a novidade de receber crianças pequenas para alfabetização.

A primeira edição de “O Tico-Tico” é uma história à parte: por erro de impressão, o dia 11 de outubro de 1905, data de lançamento da revista, foi grafado como quinta, e não como quarta-feira. A nova revista – alertam os estudos de Ezequiel de Azevedo, Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos – foi um sucesso imediato pelo ineditismo e pelas qualidades artísticas de seus colaboradores, mas também graças à logística do grupo “O Malho” e sua equipe de profissionais, incluindo parque gráfico e estrutura de distribuição.








Revistinha de vovô: a estreia dos heróis
estrangeiros em O Tico-Tico começa 
com Felix The Cat, rebatizado como
"Gato Maluco", e Mickey Mouse, que foi
apresentado como "Ratinho Curioso"




Disney e super-heróis: ameaça fulminante
 

Uma curiosidade: esgotado no lançamento, o primeiro número da revista rendeu um lucro que não estava previsto pelos editores, tanto que teve sucessivas reimpressões nos meses seguintes. As novas edições de “O Tico-Tico”, semanais a partir do início de 1906, atingiriam a impressionante tiragem inicial de 30 mil exemplares, chegando muitas vezes em sua trajetória ao número de 100 mil exemplares vendidos, sem contar reimpressões de exemplares antigos e reedições em formato almanaque – um sucesso que poucas vezes iria se repetir na trajetória de outras publicações, mesmo considerando as tiragens e vendagens da atualidade.

O Tico-Tico”, que custava 200 Réis, trazia o atrativo de colunas fixas e personagens variados em quatro páginas coloridas e quatro páginas impressas em vermelho, verde e azul. A partir da Segunda Guerra, a chegada dos super-heróis norte-americanos em novas revistas e formatos avançaria como uma ameaça para o sucesso das edições ingênuas de “O Tico-Tico”. O último número semanal saiu em 1957, seguido do lançamento de uma ou outra edição especial, até o final definitivo da revista, em 1977.

Sem nenhum rival à altura, O Tico-Tico” seguiria rentável e imbatível até o final da década de 1930, quando outros jornais e revistas começaram a investir em seções infantis e passaram a importar os quadrinhos produzidos em escala industrial nos Estados Unidos. O humor, a novidade dos quadrinhos, o tom brasileiro de personagens e os joguinhos para preencher ou recortar estavam entre os trunfos principais da revista, mas havia também as atividades de caráter didático, que ajudaram a dar prestígio à revista e garantir seu reconhecimento e importância no meio intelectual.






Já a partir do número 3 começaram a ser narrados em "O Tico-Tico", em forma de quadrinhos, fatos da história do Brasil como “O Descobrimento”, de Leônidas Freire, com ilustrações e legendas, como era comum aos quadrinhos da época. Leônidas também foi o autor de uma série que marcou época, “História Ilustrada – Páginas Relembradas”, publicada em 1910, que abordava o regime de escravidão que vigorou até o final do século 19.



Diversão & educação: fronteiras



Outro trabalho importante na trajetória da revista, pelo que apresentava de inovação em questões pedagógicas, é apontado por Roberto Elísio: trata-se da série em quadrinhos “A vida de Floriano Peixoto”, com texto de A. Plessen e ilustrações de Cícero Valladares. Sobre o caráter didático da revista, há também o depoimento saboroso do poeta Drummond, que em carta a Álvaro de Moya confessa a saudosa lembrança que sentia da revista que o ajudou a aprender a ler e a ver figuras, no lendário ano de 1910. 



 


Segundo Drummond, a primeira reminiscência literária que o sensibilizou não foi de um texto de literatura em verso e prosa, mas legendas e quadrinhos de um personagem de romance – uma versão infantil de “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe (1660–1731), que saiu na revista “O Tico-Tico”. A ilha e o náufrago, em "Infância", segundo poema do livro de estreia de Drummond (“Primeira Poesia”, 1930), fornecem um contraponto marcante à oscilação entre reminiscências da infância e isolamento existencial, temas dos mais frequentes na obra de Drummond.

O poeta, mineiro de Itabira, também declarou que devia a Robinson Crusoé sua primeira emoção literária, pois quando este “conseguiu se mandar da ilha”, o menino Carlito sentiu um nó na garganta, uma emoção produzida por uma personagem literária, um mito. Queria que o herói continuasse lá, solitário e dominador, mas não era bem a solidão da ilha que o encantava e sim a sugestão poética. Para Drummond, menino antigo, “O Tico-Tico” revelou a literatura.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Revistinha de vovô. In: Blog Semióticas, 13 de setembro de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/09/revistinha-de-vovo.html (acessado em .../.../…).


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Veja também:
 






Infância


Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.


       (Publicado em “Alguma Poesia”, de 1930, livro de
       estreia do poeta Carlos Drummond de Andrade)







14 de julho de 2011

A batalha de papel








Na paz, os filhos enterram seus pais;
na guerra, os pais enterram seus filhos.

–– Heródoto (século 5° a.C.) 


Dizem que em tempos de guerra a primeira vítima é a verdade, mas o jornalista Mauro César Silveira põe as coisas nos seus devidos lugares em "A Batalha de Papel - A Charge como Arma na Guerra Contra o Paraguai". Confrontando as mais conhecidas opiniões apaixonadas e esmiuçando diversas versões oficiais, Silveira apresenta no livro um inventário corajoso ao abordar a infame Guerra do Paraguai (1864-1870), na qual morreram pelo menos 600 mil soldados. Se é fato que a primeira vítima de uma guerra é a verdade, no livro o autor defende que, no maior conflito já registrado na América Latina (e maior empreendimento bélico da história brasileira), todos os recursos foram mobilizados pelo Segundo Império do Brasil - inclusive o humor.

"O jornalismo sempre escreve a história, direta ou indiretamente", defende Silveira, em entrevista por telefone de Santa Catarina. Gaúcho de Porto Alegre, formado em Jornalismo e com mestrado e doutorado em História, Silveira atualmente é professor de graduação e pós-graduação em Jornalismo pela UFSC. "O problema é que o pior jornalismo também produz história", lamenta. "Então, nas lacunas entre o pior e o melhor jornalismo é que estão as pistas principais para o trabalho do pesquisador", ele explica, alertando que se considera mesmo um jornalista e não um historiador.






A batalha de papel: acima, capa
do livro de Mauro César Silveira, versão
de sua tese de Mestrado. No alto, oficiais
brasileiros em 1865, durante a 
Guerra do Paraguai, em daguerreótipo
de autor desconhecido. Abaixo, um
daguerreótipo de autor anônimo registra
a tropa do coronel Joca Tavares (terceiro
sentado da esquerda para a direita) e seus
auxiliares, incluindo José Francisco Lacerda,
mais conhecido como Chico Diabo (terceiro
em pé, da esquerda para a direita). Também
abaixo, um registro de um cabo anônimo do
1° Batalhão Brasileiro de Voluntários da
Pátria em daguerreótipo anônimo datado
de 1865. As maioria das imagens reproduzidas
abaixo fazem parte da primeira edição do livro
A batalha de papel, exceto quando indicado
em daguerreótipos e em fotografias da época















"A Batalha de Papel" é uma versão revista e ampliada da tese de mestrado de Silveira, que fez carreira nos jornais "Diário de Notícias", "Zero Hora" e "Folha da Manhã", todos de Porto Alegre, e nas revistas "Veja" e "IstoÉ". Sua tese de doutorado, intitulada "A Guerra do Paraguai e as Relações Luso-Brasileiras na Década de 1860-1870" também virou livro em 2003: "Adesão Fatal - A Participação Portuguesa na Guerra do Paraguai", lançamento da Editora PUC-RS.

Especialista no assunto, Silveira alerta que o esforço do governo imperial para conquistar apoio ao envio de tropas contra o país vizinho envolveu escritores, jornalistas e até artistas plásticos, entre eles os maiores cartunistas da época. Para revelar essa faceta pouco conhecida da campanha anti-paraguaia, o jornalista mergulhou nos arquivos do Império e analisou com especial atenção as revistas ilustradas do Rio de Janeiro principal meio de informação dos 15% de brasileiros alfabetizados no Império, de acordo com nosso primeiro censo demográfico, datado de 1872.
A pesquisa exaustiva de Mauro César Silveira resultou na seleção de 202 caricaturas que fazem referência direta ao inimigo paraguaio 38 delas estão reproduzidas no livro. Produzidos no calor da luta, os desenhos expressam a imagem desdenhosa de preconceito e deboche inventada contra o Paraguai que criou raízes durante a guerra e que até hoje sobrevive na memória coletiva da maioria dos brasileiros.












Cenas da Guerra do Paraguai:
a partir do alto, ilustração do século 19
sobre os Voluntários da Pátria, seguida
por daguerreótipo que registra prisioneiros
paraguaios em 1866. Acima, detalhe
da pintura de Pedro Américo em
óleo sobre tela, A Batalha de Avahy,
datada de 1877. Abaixo, A rendição
de Uruguaiana, desenho de 1865
de Victor Meirelles; e a batalha pela
tomada da cidade de Paysandú, no
Uruguai, em dezembro de 1964, em
gravura de um artista anônimo publicada em
1865 pela revista da França Illustration



















Sucesso editorial na década de 1990, a primeira edição de "A Batalha de Papel" chegou a ter sucessivas edições pela L&PM. A nova versão, revista e ampliada, inclui textos inéditos entre eles o posfácio "A corrida inglória dos cavalos paraguaios", no qual Silveira questiona os preconceitos e as grossas e deslavadas mentiras que os caricaturistas da imprensa brasileira propagandeavam nos anos da Guerra do Paraguai e que permanecem em evidência na imprensa atual.
"Com certeza estão ali as origens do preconceito contra o povo paraguaio que perdura até hoje. O país do lado é apresentado sempre como lugar de negócios escusos, pátria de ladrões e contrabandistas, quando na verdade não era nada disso. É incontestável a importância política, social e econômica do Paraguai no contexto da época, quando era um país que se orgulhava do analfabetismo zero e que chegou a ser considerado como o único país independente no continente sul-americano", aponta Silveira. 
No livro "A Batalha de Papel", o conflito é reapresentado pelo autor trafegando em duas vias: a das batalhas reais e violentas travadas pelo exército paraguaio para resistir frente à Tríplice Aliança da parceria Argentina/Brasil/Uruguai, liderada pelos brasileiros, e a das guerrilhas de papel protagonizada pelas penas dos desenhistas a serviço da Corte de Dom Pedro II. Uma constatação se destaca: as charges contra o Paraguai vêm confirmar sem nenhuma sutileza aquela máxima sobre a verdade ser a primeira vítima em tempos de guerra.


Guerra mobilizou artistas



Muito além do impacto documental, o livro "A Batalha de Papel" pode ser tomado como uma aula de jornalismo como defende o próprio Mauro César Silveira. Apresentado como uma grande reportagem dotada de todos os ingredientes do trabalho jornalístico investigativo, emoldurado por um texto agradável que dinamiza a leitura e seduz os leitores, por mais leigos que eles sejam no assunto. Silveira questiona e analisa a intenção dos caricaturistas da Corte brasileira sobre o inimigo de guerra.

"A dura e crua verdade é que, utilizando a charge, amparada em textos-legendas e editoriais, a imprensa brasileira contribuiu vergonhosamente para a deformação completa dos fatos", destaca Silveira sobre o conflito. Na avaliação do autor, a Guerra do Paraguai alcançou a dimensão trágica do genocídio.











Cenas da Guerra do Paraguai:
acima, daguerreótipos datados de
1865 que retratam o campo de batalha
durante os violentos ataques militares às
terras paraguaias. Abaixo, o general D. Bartolomé Mitre
com suas tropas em Tuiutí, no Paraguai, em fotografia
de 1866 do Estúdio Bate & Cia. Também abaixo, uma
litografia publicada na revista Semana Illustrada 
mostra as vivandeiras, mulheres que
seguiam as tropas vendendo alimentos
para os soldados e socorrendo feridos

















Cético, inconformista e iconoclasta, o autor exercita as virtudes do jornalismo em busca de versões dissonantes e da denúncia sobre os danos do malfeito. Econômico em citações bibliográficas, recorre a diversas fontes e confronta a transcrição de documentos e depoimentos. Ele diz que foi paciente nas pesquisas: leu mais de 100 publicações da época e vasculhou bibliotecas no Brasil e no exterior, tendo em mira a determinação jornalística para reabrir as cicatrizes do passado.

Entre tantas charges e piadas violentas, Silveira diz que tem preferência por certas imagens reproduzidas no livro. "Em uma delas, de autoria do grande Angelo Agostini, o ditador Francisco Solano López é apresentado como O Nero do Século XIX, empunhando sua espada e escalando uma montanha de crânios e esqueletos. É terrível, mas muito eficiente como propaganda de guerra", destaca.














A batalha de papel. Acima, três
caricaturas pelo traço refinado de
Ângelo Agostini: 1) para Solano López;
2) para o desfile militar no Rio de Janeiro
em 1° de março de 1870, depois da
vitória na Guerra do Paraguai; e 3) para
o retorno do escravo que recebeu
alforria depois de participar das batalhas
na condição de Voluntário da Pátria.

Abaixo, daguerreótipos da época da guerra
registram soldado e oficial paraguaios
feitos prisioneiros e transformados em
escravos, depois que foram capturados no
campo de batalha; e ilustração para a 
morte de Solano Lopez, publicada
na Semana Illustrada em edição
datada de 27 março de 1870 












Silveira reconstitui com sua pesquisa uma minuciosa trajetória para destacar que os grandes artistas da época se engajaram no esforço de guerra, empenhando a arte do humor e das imagens impressas. "Era uma arte que estava bastante desenvolvida no Rio de Janeiro, em sintonia com os melhores padrões europeus. O esforço de guerra, afinal, trouxe popularidade para a recém-criada imprensa no Brasil e mobilizou a opinião do povo brasileiro em favor do conflito", completa.



Diamantina teve papel importante


O jornal "O Jequitinhonha", da cidade mineira de Diamantina, destacou-se no século 19 como uma publicação pioneira, progressista e libertária - um jornal de tendência republicana num país monarquista, que se intitulava porta-voz do Partido Liberal e um órgão de denúncia no Norte de Minas Gerais. Fundado por Joaquim Felício dos Santos e por seu cunhado Josefino Vieira Machado, o Barão de Guaicuí (o primeiro número circulou em 30 de dezembro de 1860), o jornal teve seu apogeu durante a Guerra do Paraguai, principalmente no período 1868-1869. Com o fim da guerra, assumiu a partir de 1870 uma posição radical a favor do regime republicano, sobrevivendo ainda por mais dois anos.








A trajetória pioneira e incomum do jornal de Diamantina é abordada pela jornalista e professora universitária Maria de Lourdes Reis nas páginas do livro "Imprensa em Tempo de Guerra: O jornal O Jequitinhonha e a Guerra do Paraguai", que acaba de ganhar uma quinta edição revista e ampliada, lançamento das Edições Cuatiara.

O livro, que inclui uma série de fotografias e ilustrações da época, é uma versão da dissertação de Mestrado que a autora, mineira de Belo Horizonte, defendeu na PUC-RS em 2002, após a conclusão do curso de História das Sociedades Ibero Americanas - incluindo um período de quase três anos buscando subsídios em livros, revistas e jornais em bibliotecas e arquivos em Belo Horizonte, Diamantina e Rio de Janeiro.

Maria de Lourdes Reis faz questão de destacar que está muito feliz e satisfeita com o resultado do trabalho reunido no livro, mas reconhece que tanto na pesquisa como nos trabalhos para viabilizar a edição as dificuldades foram enormes, principalmente porque o acervo das edições de "O Jequitinhonha" encontra-se dividido em três instituições diferentes: Hemeroteca Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte; Biblioteca Antônio Torres, em Diamantina; e Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.










Imagens da cidade de Diamantina no final
do século 19, em daguerreótipos de autor
desconhecido. Abaixo, fotografia de 1868
de Augusto Riedel registra moradores na
Rua Direita de Diamantina. Também abaixo,
capa da edição do livro sobre a caricatura
na história do Brasil e ilustração anônima
que retrata os líderes do Paraguai e do
 Brasil: o presidente Solano López e
imperador Dom Pedro 2°











"Posso dizer que foi fascinante trabalhar nesta pesquisa que gerou o livro 'Imprensa em Tempos de Guerra'. Principalmente porque recupera a importância que teve O Jequitinhonha. Encontra-se no amarelado silêncio de suas páginas fonte para compor um trecho da história de Minas pouco explorado", explica Maria de Lourdes, que tem outros livros publicados em gêneros diversos como poesia ("Repassagem", de 1985; "Minhas Gerais", de 1987; "Polícia Militar destas Gerais", de 1994), infantil ("Quem-Quem", de 1986; "Circo Mambembe", de 1993) e crônica ("Flor de Vidro", coletânea de autores mineiros, de 1990; "Olhos para o Mundo", de 1999).

"A metodologia usada foi o caminho sugerido pela História Nova, baseada na pesquisa em jornais e publicações de época", destaca a autora. "A leitura e a interpretação de O Jequitinhonha levam o leitor a conhecer uma nova versão da Guerra do Paraguai que é, sem dúvida, um dos capítulos mais ricos em possibilidades de análises simbólicas para o historiador", completa. Como bem destaca a autora, a verdadeira história daquela guerra terrível, como são todas as guerras, ainda está por ser escrita.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A batalha de papel. In: Blog Semióticas, 14 de julho de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/batalha-de-papel.html (acessado em … /… /…).


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