A
fotografia não sabe mentir, mas os mentirosos sabem fotografar.
–– Lewis
Wickes Hine (1874-1940). |
O Brasil e outros países comemoram no dia 1° de maio o feriado do Dia do Trabalhador, mas poucos se lembram da origem da data e menos ainda de seu sentido. O registro mais antigo de que se tem notícia sobre o assunto é a Revolta de Haymarket, com manifestações de protestos de trabalhadores nas ruas de Chicago, Estados Unidos, no início do mês de maio de 1886. Os protestos, que reivindicavam a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas, foram reprimidos pela polícia com violência e resultaram em dezenas de mortos e feridos. A repressão teve um resultado contrário ao esperado pelos patrões: a data e os protestos passaram a ser propagados em sua força simbólica.
Aqueles primeiros relatos sobre as lutas sindicais de Chicago correram o mundo e foram lembrados nos anos e décadas seguintes, com muitas passeatas e protestos por melhores condições de trabalho. O que a princípio parecia um sonho impossível começou a se concretizar anos depois, em 1890, quando a repercussão do massacre em Chicago levou o Congresso norte-americano a decretar a redução da jornada de trabalho: de 16 para 8 horas diárias. Algumas décadas se passaram e, em abril de 1919, o Senado da França também ratificou a jornada de trabalho de 8 horas e proclamou o dia 1° de Maio como feriado nacional em homenagem aos trabalhadores assalariados.
O exemplo da redução da jornada foi seguido em muitos países, menos no Brasil. Por aqui, o processo foi muito mais lento. Da mesma forma como detém o triste recorde de ter sido o último país do mundo ocidental a abolir o trabalho escravo, em 1888, no Brasil a redução da jornada de 16 horas também demorou a se concretizar. O dia 1° de maio virou feriado nacional somente em 1925, por um decreto do presidente Artur Bernardes. A questão da jornada e os direitos do trabalhador, entretanto, só foram legalizados 20 anos depois do feriado, com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pelo presidente Getúlio Vargas, não por acaso em 1° de maio de 1943.
Se no plano político as lutas e reivindicações de trabalhadores no mundo inteiro geram batalhas permanentes, coube a um fotógrafo o trabalho pioneiro de transformar em arte as denúncias de situações de trabalho aviltantes. Há pouco mais de 100 anos, o sociólogo norte-americano Lewis Wickes Hine (1874-1940) encontrou na fotografia a sua forma de denunciar as injustiças sociais e as mazelas do trabalho infantil.
No começo do século 20, crianças compunham uma boa parcela da mão de obra na indústria, nas ruas e no campo nos Estados Unidos e em vários países, inclusive no Brasil. Diante do que percebeu como situação de abuso e imoralidade, Hine produziu, a partir de 1903, um dos mais impressionantes acervos sobre condições desumanas de trabalho, questões de saúde pública e discriminação de minorias, com mais de 5 mil fotografias em papel e 300 negativos de vidro.
Hoje aclamado como um dos mais importantes fotógrafos de todos os tempos e com seu legado estudado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento acadêmico, Lewis Hine também é reconhecido como um pioneiro na luta pela criação de leis trabalhistas e de reforma social. Contratado em 1908 como fotógrafo e inspetor do Comitê Nacional do Trabalho Infantil dos EUA, Hine acreditava que o semblante de uma criança poderia mostrar muito mais do que qualquer outro tipo de prova sobre a realidade do trabalho infantil.
Exploração e vertigem
Além de seu trabalho investigativo como funcionário do governo, Lewis Hine também realizou séries de documentação fotográfica humanitária na Europa, a serviço da Cruz Vermelha Internacional, durante a Primeira Guerra, registrando imagens que ainda hoje são sempre reproduzidas para ilustrar reportagens e documentários, tais como “Soldier thrown in the air”, com o soldado lançado ao ar em comemoração das tropas aliadas ao fim do conflito. As fotografias de Lewis Hine registraram os momentos de descontração e até poéticos da tropas militares, mas também os horrores da guerra que, em quatro anos de matança e destruição nunca vistas, resultou em incontáveis milhões de mortos. Somente entre as tropas militares, os números oficiais apontam 11 milhões de soldados mortos e 21 milhões com ferimentos graves ou mutilados, com uma média diária de 6 mil soldados mortos por cada dia de conflito.
De volta aos Estados Unidos, Lewis Hine passaria os anos seguintes e toda a década de 1920 engajado em campanhas pelo estabelecimento de leis que regulamentassem a segurança no trabalho e a saúde do trabalhador. Em 1930, ele registraria outra de suas séries que ganharam o mundo: as panorâmicas de altitude sobre os operários na impressionante e vertiginosa etapa de finalização das obras de construção do Empire State Building, que era até então o prédio mais alto do planeta. Em plena época da chamada “grande depressão”, Lewis Hine documentou o que também se tornou, para muitos, um símbolo de esperança e de progresso naqueles tempos difíceis.
Na fronteira entre a denúncia e a exaltação da coragem, as fotografias de Hine sobre os operários no Empire State são sempre lembradas por muitos como tributo à individualidade e à importância do trabalho. Nas palavras de Hine, cada uma dessas imagens são um lembrete de que "as cidades não são construídos por si só. Elas têm atrás de si o sacrifíco e o suor de muitos homens". Os operários e as cenas de vertigem no alto do Empire State foram reunidas em 1932 em “Men at Work”, o único livro que Hine publicou.
A dedicação à fotografia teve início quando Lewis Hine comprou sua primeira câmera, em 1903. Desde então, seu mergulho no registro de imagens e seu empenho em denunciar a pobreza e a vida miserável dos imigrantes, os abusos da exploração e das condições degradantes de trabalho, o levaram a deixar o cargo de professor na Ethical Culture School e a viajar durante anos por todo o território dos Estados Unidos, documentando com suas fotografias as condições de trabalho em diversas atividades.
Trabalho Infantil na América: imagens
comoventes de crianças de 6 a 12 anos
em jornadas e condições abusivas nas
fábricas e minas de carvão foram
registradas por Lewis Hine em 1910
|
Apelo estranho e comovente
No decorrer no último século, as imagens de denúncia produzidas por Hine foram reproduzidas com frequência em reportagens, em panfletos sindicais, em livros de história e nos manuais sobre fotografia, além de lugares mais improváveis, de montagens de arte underground a capas de discos de punk-rock. Cada uma delas mantém seu apelo estranho e comovente, ao mesmo tempo real e abstrato – como destaca Roland Barthes em seu célebre estudo sobre a arte e a técnica da fotografia intitulado “A Câmara Clara”.
Entre a invenção de uma “teoria do olhar” e a análise sobre imagens de Nadar, Kertész, Niépce, Stieglitz, Avedon, Mapplethorpe e William Klein, entre outros grandes fotógrafos citados por Barthes, Hine é quem tem o maior número de fotografias reproduzidas na edição original de “A Câmara Clara”, publicada em 1980. Barthes destaca em Hine um certo “punctum”, o sentido da arte e não apenas a exposição da dor, do sofrimento, da exploração e da miséria: “o punctum de uma foto é esse acaso que nela me punge (mas também me mortifica, me fere)”.
No breve texto de apresentação a “Men at Work”, Hine chegou a relatar algumas das inúmeras dificuldades e perigos que enfrentou em suas “investigações”. Os donos das fábricas não permitiam que ele fotografasse e não raro contratavam capangas para ameaçá-lo e tentar tomar seus equipamentos. Hine tinha por método esconder a câmera e se apresentar como um inspetor de incêndio. Assim, capturava as fotos mais reveladoras.
Em uma
das muitas vezes em que foi preso, acusado de invadir uma propriedade
particular para fazer suas fotografias de denúncia sobre exploração do trabalho infantil, Hine declarou em uma audiência diante das autoridades policiais e da justiça: “Talvez vocês estejam
cansados de tantas fotos que fazem denúncias sobre o trabalho
infantil. Preciso dizer que eu também estou, mas quero fazer vocês
e o resto do país ficarem tão enjoados destas cenas a ponto de
obrigar isso a ter fim. Tenho esperança de que haverá um dia em que o trabalho infantil
será apenas um registro esquecido em fotografias do passado.”
A
experiência proporcionada por uma das imagens de Lewis Hine,
conforme destaca Roland Barthes em “A Câmara Clara”, é exemplar
sobre o que o fenômeno da fotografia pode provocar de mais intenso e
revelador. Ao observar o registro feito por Lewis Hine, em 1924, de
duas crianças anormais em uma instituição de New Jersey, Barthes
localiza um conceito que se tornaria célebre em análises sobre
fotografia: o “punctum”.
“O
que vejo é o detalhe descentrado, a imensa gola Danton do garoto, o
curativo no dedo da menina. Sou um selvagem, uma criança – ou um
maníaco; mando embora todo o saber, toda cultura, abstenho-me de
herdar de um outro olhar”, confessa Barthes. É a
subjetividade do leitor que vai perpassar o enquadramento do objeto
retratado, pondo-o em movimento, dando-lhe tanto a continuidade como
a descontinuidade narrativas.
A
reflexão a respeito da trama situacional, que fez a fotografia
emergir, se impõe através da atenção do receptor que observa e
pode, por fim, enveredar por um percurso que articula razão e
emoção. Cabe ao observador encadear o que o fotógrafo quis que ele
visse e fundir a maior parte dos elementos que fazem convergir
fotografia e memória, essa “estocagem” cultural que vem
alinhavar cada uma das experiências vividas.
Horror cotidiano
Com
a autenticidade da grande arte, o trabalho de Lewis Hine emociona,
como destaca Barthes em "A Câmara Clara". E emociona
exatamente porque não estava à procura de piedade ou de
sentimentalismos, nem mesmo de caridade. Como nos épicos monumentais
da literatura universal ou nos afrescos góticos das grandes
catedrais da Idade Média, Hine produziu registros sobre cenas cotidianas que reservam algo de mitológico exatamente porque
conseguem recriar o que na época era muito comum e hoje provocam estranhamento, provocando no observador emoções contraditórias e levando ao entendimento sobre alguns dos horrores que se repetiam nos primórdios da sociedade industrial.
Numa época em que a escravidão humana ainda era uma experiência muito recente, quando era tão comum haver tanta injustiça social e com a maioria das pessoas estando tão acostumadas com esses problemas, Lewis Hine ousou se manifestar em defesa dos mais explorados e das vítimas mais contumazes da ordem vigente. Quando o jornalismo e os repórteres investigativos ainda não tinham saído a campo e quando quase todos acreditavam que o trabalho mais aviltante de crianças e de adultos era algo inevitável, e até mesmo os próprios operários pareciam estar conformados e resignados em tal situação, o fotógrafo enfrentou a tudo e a todos na intenção de fazer suas denúncias contra o que o senso comum ainda considerava natural ou inevitável.
Por ironia do destino, o reconhecimento da importância do trabalho de Lewis Hine tanto na imprensa como por parte de críticos e historiadores da arte foi muito tardio e não garantiram a ele nem fama nem fortuna. Em seus últimos anos de vida, talvez por força da resistência dos interesses corporativos que ele enfrentou e contrariou durante décadas, Lewis Hine não conseguiu mais nem emprego e nem espaço nos jornais e revistas para publicar suas fotografias.
Sem dinheiro e com poucos amigos, acabou hipotecando e perdendo a casa em que morava e tornou-se vítima da pobreza que sempre fez questão de retratar. Morreria esquecido e na miséria, em 1940. Entretanto, sua herança de realismo e de percepção pioneira sobre o papel fundamental da fotografia como documento, a força das situações de trabalho aviltantes e dos rostos comoventes das crianças e dos adultos que registrou, assim como suas denúncias contundentes contra as formas criminosas de injustiça social, continuam como um alerta a questionar, a impressionar e a assombrar a experiência humana.
Sem dinheiro e com poucos amigos, acabou hipotecando e perdendo a casa em que morava e tornou-se vítima da pobreza que sempre fez questão de retratar. Morreria esquecido e na miséria, em 1940. Entretanto, sua herança de realismo e de percepção pioneira sobre o papel fundamental da fotografia como documento, a força das situações de trabalho aviltantes e dos rostos comoventes das crianças e dos adultos que registrou, assim como suas denúncias contundentes contra as formas criminosas de injustiça social, continuam como um alerta a questionar, a impressionar e a assombrar a experiência humana.
por José Antônio Orlando.
ORLANDO, José Antônio. O trabalho de Lewis Hine. In: _____. Blog Semióticas, 1° de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/o-trabalho-de-lewis-hine.html (acessado em .../.../...).
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Como
citar:
ORLANDO, José Antônio. O trabalho de Lewis Hine. In: _____. Blog Semióticas, 1° de maio de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/05/o-trabalho-de-lewis-hine.html (acessado em .../.../...).
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