O artista mais polêmico, mais político, mais surpreendente e mais misterioso de nossa época, do qual ninguém sabe realmente a verdadeira identidade, no melhor estilo lendário dos super-heróis que mantêm a identidade em segredo para salvar o mundo, registrou em dose dupla, em latitudes bem distantes no mapa do Hemisfério Norte, suas mensagens polêmicas e políticas para o Natal de 2019. As novas obras com a assinatura provocadora de Banksy surgiram às vésperas do Natal na cidade de Birmingham, na Inglaterra, e na cidade palestina de Belém (Bethlehem), na Cisjordânia – terra natal do mítico Rei Davi nos relatos da Bíblia Sagrada e também, segundo a tradição do Cristianismo, o verdadeiro local do nascimento de Jesus Cristo.
A
autenticação das novas obras de Banksy com mensagens sobre o Natal
foi feita pelo próprio artista na Internet, em seu site oficial e na
conta que ele mantém no
Instagram. A obra que surgiu em Birmingham é uma declaração
poderosa do artista e
militante político de esquerda sobre
os relatórios oficiais que confirmam o aumento da pobreza e da falta
de moradia no Reino Unido: Banksy grafitou em um muro, ao lado de um
banco público onde com
frequência dormem moradores
de rua, a imagem de duas
renas de
Papai Noel, figuras típicas
dos enfeites mais apreciados
nas festas natalinas. Na
cidade palestina de Belém, o artista montou
a instalação
de um pequeno presépio
tradicional,
com as figuras
de Maria, José, o menino Jesus recém-nascido na manjedoura do estábulo e
alguns animais,
próximo a um muro perfurado por tiros da artilharia pesada dos
soldados do Estado de Israel.
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Mantendo sua condição há
décadas como um dos
grandes
mistérios
do mundo da arte, Banksy também
publicou em sua página no Instagram um pequeno vídeo sobre a nova
obra
na Vyse Street, uma
área de joalherias e lojas de grifes luxuosas em
Birmingham. Em
poucos minutos, o enquadramento em câmera fixa mostra no
grafite as
duas
renas prestes a voar arrastando
o banco que
substitui o trenó do Papai Noel. Na
trilha-sonora,
a
canção “I'll
Be Home for Christmas” (Eu estarei em casa no Natal) – um
clássico nostálgico que todo final de ano retorna em filmes,
programas de TV e anúncios de publicidade, desde que foi lançada em
1943, por Bing Crosby, para homenagear os soldados que passariam o
Natal nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial, e que foi regravada,
entre
muitos outros,
por Ella Fitzgerald, Nat
King Cole, Frank
Sinatra, Elvis Presley e
The Carpenters. No
vídeo de
Banksy,
um morador de rua, identificado na
legenda como
“Ryan”,
se
prepara para passar a
noite deitado
no
banco, na
calçada da rua,
sob
as estrelas,
enquanto passam
pessoas
e carros. “Deus abençoe Birmingham”, diz a legenda.
A
cicatriz
de Belém
Na
cidade palestina de Belém ocupada por tropas militares do Estado de
Israel, a mensagem de
Banksy para
o Natal de 2019 não é
nem
menos polêmica nem menos política que as duas
renas
mágicas
de
Papai Noel arrastando, no
lugar do trenó,
o banco de rua usado como cama pelos sem-teto de Birmingham.
O
pequeno presépio, batizado
pelo artista como “Scar of Bethlehem” (A cicatriz de Belém),
foi
instalado
na rua, em
frente ao
muro construído por Israel para impedir o acesso do povo palestino,
bem
na
entrada do The
Walled-Off
Hotel
(Hotel
cercado)
– uma
peça de resistência que
o próprio Banksy inaugurou em 2017 com
o slogan provocador de
“o
pior hotel do mundo” e
que mistura, aos
aposentos para hospedagem de turistas, as
funções como
museu para abrigar seu
acervo
de
arte de
contestação e
como
manifesto
político e ideológico em protesto pela violência dos
israelenses contra
os palestinos na
região.
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No
presépio de Banksy, as figuras tradicionais da sagrada família
estão posicionadas diante de
um
pedaço do muro que
foi perfurado
por um tiro, disparado
por
artilharia de guerra, cujo
formato
em
quatro pontas
acima
de José, de Maria e do menino Jesus, rodeados por uma vaca e um
burro, faz
lembrar a estrela de Natal. No
pedaço do muro atrás do presépio é possível ler
em
grafites meio apagados as
palavras
rabiscadas em inglês e francês: amor
e paz.
O árabe Wissam Salsaa, um dos funcionários contratados por Banksy
para administrar
o Hotel Walled-Off, declarou às agências de notícias que
a instalação do presépio na
rua, pelo
artista e militante político, simboliza
uma “cicatriz da vergonha” pela
violência que
o
muro representa
e,
também,
um protesto contra todos que
apoiam a ocupação ilegal dos territórios palestinos pelas tropas
militares e pelos assentamentos de colonos financiados
pelo
Estado de Israel.
O
muro
começou a ser construído por Israel na Cisjordânia em 2002, como
barreira contra o povo da
Palestina,
com extensas fileiras de blocos de concreto
maciço de mais
de oito
metros de altura. Em 2004, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia, principal órgão judiciário da ONU, declarou que a construção do muro era ilegal e determinou que ele
deveria ser removido, mas o Estado de Israel não cumpriu a
determinação do parecer e continuou com a construção da barreira e com novas
ocupações forçadas
em
territórios palestinos
na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Símbolo das ocupações, a
barreira de concreto construída por Israel tem sido uma fonte de
inspiração para a arte subversiva de Banksy, que já
fez
várias pinturas no muro e criou
um novo modelo de resistência com sua mistura de arte e política,
amplificando para o mundo a voz de protesto dos palestinos e
transformando
o espaço, que representa violência e segregação racial, em uma
atração turística.
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Criações
subversivas
Com
o passar dos anos a popularidade e a surpreendente criatividade de
Banksy só vêm
aumentando,
com grafites e murais de arte e política pintados por ele
clandestinamente em Bristol,
na Inglaterra, que se supõe ser sua terra natal, em Londres
e em outras cidades de
vários
países pelo mundo afora – o que faz muitos
questionarem se as obras personalíssimas de Banksy são criações
subversivas de um só artista ou resultado de um trabalho coletivo
que mobiliza apoiadores e co-autores espalhados em outras latitudes, distantes das fronteiras da Inglaterra. Além da
cena do presépio e do Hotel
Walled-Off instalados
na Cisjordânia, no muro de Israel contra os palestinos estão
diversos trabalhos de Banksy pintados por ele sob
disfarce nos
últimos anos, alguns
destacados entre suas obras mais populares. Lá estão, entre outros,
a menina de vestido rosa revistando o soldado israelense fortemente
armado e de mãos para cima, assim como a imagem de uma escada que
convida o observador a subir e pular o muro ou o ativista em preto e branco com máscara prestes a atirar, no gesto de protesto, um buquê de flores coloridas.
Outras
imagens de Banksy no “muro da vergonha” incluem a
garotinha levada ao céu por balões coloridos, uma janela que rompe
o concreto e abre
para uma pacífica paisagem de montanhas – e
também a pomba branca que traz no bico um ramo de oliveira,
símbolo da paz desde o Antigo Testamento da Bíblia. No grafite de
Banksy, porém, a pomba branca da paz, nos
territórios palestinos ocupados pelas tropas de Israel, veste
um colete à prova de balas e
tem o coração marcado à distância na mira de uma arma.
Outra obra muito conhecida de Banksy que aborda uma cena tradicional
de Natal é uma pintura feita por ele em 2005 mostrando
a passagem bíblica da
Natividade descrita nos
evangelhos: na versão de Banksy, José e Maria, antes
do nascimento do menino Jesus,
são
impedidos de chegar a Belém pela barreira do
muro construído
na Cisjordânia pelos
israelenses.
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Além
das obras com mensagens para o Natal em Birmingham e na Cisjordânia,
Banksy tem
sido
notícia com
grande
destaque
internacional
em
diversas
ocasiões
nos últimos meses. Em
outubro de 2018, houve
a destruição espetacular de sua obra em um
disputado leilão na Sotheby’s, em Londres. Após ser vendida pelo
preço recorde de um milhão de libras (mais de R$ 6 milhões), a
gravura “Garota
com balão” foi destruída por um triturador de papel que estava
escondido na moldura e foi misteriosamente acionado por controle
remoto, diante do espanto da equipe
de
leilões e da plateia com
imprensa
e compradores. A obra havia sido grafitada em um mural em Londres, em
2002, mas
foi destruída
por vândalos, o
que levou
Banksy a
fazer
cópias em papel, sendo
uma
delas a que foi triturada no leilão da Sotheby’s.
Cotações
em alta e crise global
Também
na Sotheby’s, um ano depois da destruição espetacular de “Garota
com balão”, Banksy bateu um novo recorde: em 3 de
outubro
de 2019, sua
irônica e monumental pintura em óleo sobre tela,
chamada
de “Devolved Parliament” (Parlamento devolvido ou parlamento
“involuído”),
que
mostra chimpanzés no lugar de deputados no Parlamento Britânico,
atingiu um
valor
muito
acima das expectativas e foi vendida a um comprador anônimo por 12
milhões de dólares, equivalente a 9,8 milhões de libras ou mais de
R$ 50 milhões. O quadro, medindo
4,46 metros por 2,67 metros – a maior tela conhecida do artista –
foi
pintado
em 2009 e havia sido doado por Banksy para
uma exposição no Museu de Bristol. Os recordes
de preços
elevaram ainda mais as cotações para obras do
artista e
outros leilões já estão anunciados para os próximos meses, à
revelia de
Banksy,
colocando
à venda
obras que
foram retiradas
de espaços públicos e das ruas contra sua vontade.
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Banksy
também ganhou
destaque
no Natal de 2018 com um mural sobre o tema da pobreza e dos moradores
de rua, além
de marcar presença
em
2019 durante
um
dos principais eventos mundiais
do mundo das artes, a
Bienal de Veneza, na Itália, que
aconteceu em
maio. Às
vésperas
do Natal do ano passado, um
outro
surpreendente
mural
de Banksy surgiu em Port Talbot, cidade ao sul do País
de Gales,
no Reino Unido. A obra, pintada em paredes de um terreno baldio,
mostrava uma criança com os braços abertos apreciando as cinzas de
uma fogueira que caíam como neve. A imagem
da fogueira,
queimando
em
uma caixa, lembra
o fogo aceso pelos sem-teto nas ruas e por
pessoas que tentam evitar o frio em
abrigos para imigrantes.
Em
Veneza, Banksy
marcou presença com uma obra grafitada em um dos canais por onde
trafegam as gôndolas tradicionais e com uma performance não
autorizada em uma praça da cidade durante a Bienal. A
obra grafitada
surgiu
no
canal
do
distrito de Dorsoduro,
chamando
atenção para o
drama mundial
dos refugiados – um
tema cada
vez mais frequente na arte de Banksy. O
mural mostra uma criança migrante grafitada
em
uma antiga
construção
em ruínas que
fica submersa quando sobem as marés.
A
criança, com expressão de tristeza no rosto, veste
um colete salva-vidas e segura com o braço erguido um sinaleiro que
está aceso
com chama e fumaça na cor rosa-choque, do tipo usado pelas
embarcações nos mares e nos
rios
para indicar à distância algum
perigo
ou
acidente
e para
pedir
por socorro.
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Identidade secreta e direitos autorais
Também
em Veneza,
Banksy instalou sem autorização na
praça principal uma
barraca exibindo uma montagem com uma
série de pinturas
a óleo. Vistas no conjunto, as obras emolduradas formavam a figura
de um enorme e luxuoso navio de cruzeiros em um largo canal, cercado
por pequenos barcos de gôndolas. Pelo
Instagram, Banksy confirmou
sua
autoria para
a
imagem grafitada e para
a
instalação na praça. Ele também postou um vídeo de um minuto
mostrando
sua
enigmática
instalação
e a pequena multidão que se formou
ao redor, com
pessoas questionando a mensagem política da montagem, até
a chegada da
polícia local para pedir que a
exposição fosse
desmontada.
“Apesar
de ser o maior e mais prestigiado evento de arte do mundo”,
escreveu ele com ironia no Instagram, “por algum motivo, nunca fui
convidado”. Ele
não confirmou, mas é possível que o
protagonista do vídeo, que
usa
chapéu e
não mostra o rosto, seja
o próprio Banksy.
As
questões
sobre a
verdadeira identidade e sobre
direitos
autorais são também as notícias
mais
recentes
sobre
Banksy.
Em
outubro, ele mais uma vez surpreendeu a todos a abriu uma loja
em Londres, em
Croydon, um espaço na esquina com amplas vitrines que antes
abrigavam
uma tradicional loja de tapetes. Para não fugir à regra das
atitudes incomuns do artista, não se trata de uma loja convencional,
porque nada pode ser comprado ali e as portas não serão abertas ao
público. Trata-se de uma estratégia para garantir direitos legais e
registrar a marca “Banksy”, já que uma editora de cartões e
agendas da Inglaterra iniciou a comercialização sem
autorização de
produtos que trazem impresso o nome Banksy. Por orientação de
advogados, o próprio Banksy vai
comercializar
réplicas de suas obras e artigos que trazem seu nome para
garantir seus direitos como marca registrada.
A
loja em Croydon,
chamada Gross Domestic Products (Produto interno bruto), na verdade é
só
uma
vitrine, já que as vendas serão
feitas exclusivamente pela Internet.
Há
também um livro
de memórias
e de
fotografias
que
está sendo lançado
neste
final de ano por Steve Lazarides, fotógrafo, artista plástico,
curador
de galerias, antigo colaborador
de Banksy e,
tal
como ele, também
nascido na
cidade de
Bristol. O livro ilustrado de Lazarides, chamado “Banksy Captured”,
traz em 256 páginas muitas fotografias que
registram o
próprio Banksy em ação, visto
bem
de
perto, mas devidamente
de costas, ou
com
o rosto encoberto por
sombras,
por um
chapéu
ou pelo
capuz
de um
moletom,
além
de uma ou outra tarja
impressa
para
evitar a identificação, em
relatos de
aventuras
anárquicas
e fascinantes sobre
a criação de algumas obras e sobre os 11 anos da parceria iniciada
na década de 1990. Detalhe importante: Banksy e Lazarides romperam relações e não se falam há anos, nem por e-mail.
Mesmo
com as revelações anunciadas pelo novo
livro,
Banksy e seus tantos
mistérios
continuam a gerar dúvidas e especulações. Em
nossa era de extrema vigilância de câmeras e de infinitos aparatos de
segurança, de reconhecimento facial automático
e
de milhões
de dispositivos eletrônicos
conectados às
mídias sociais, é impressionante como Banksy consegue há
décadas manter
sua
identidade em anonimato. Como ele faz isso? Steve Lazarides responde
na primeira página de seu livro. “Banksy é muito bom em escolher
as pessoas em quem ele
confia.
O círculo interno é muito leal, ninguém nunca se voltou contra
ele”, escreve o antigo parceiro. Diante
da complexidade
criativa de sua arte que questiona e reflete uma compaixão genuína
pelas causas sociais, o que nos resta senão desejar que toda
lealdade
sobreviva
para
garantir sorte
e vida longa ao talentoso Banksy?
por
José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. A noite do Natal de Banksy. In: Blog
Semióticas,
23 de dezembro de 2019. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2019/12/a-noite-do-natal-de-banksy.html
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Veja também Semióticas: A guerra de Banksy
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Veja também Semióticas: A retrospectiva de Banksy
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