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26 de agosto de 2014

Cortázar faz 100 anos





Andávamos sem nos procurar, mas sabendo 
sempre que andávamos para nos encontrar. 

–– "Rayuela" (1963), Julio Cortázar.    


Um dos autores mais inovadores e originais de nossa época, Julio Cortázar (1914-1984) completa 100 anos lembrado como mestre do conto e da prosa poética. Militante incansável dos Direitos Humanos, das causas políticas e sociais, Cortázar criou um universo literário especialíssimo, pontuado de revelações insólitas e imprevistas que fizeram dele um expoente do fantástico, destacado, por muitos, como comparável a Jorge Luis Borges, Franz Kafka e Edgar Allan Poe. Seus textos, em prosa, poesia e ensaios, lançaram o chamado “boom” do realismo mágico da literatura latino-americana e romperam com os modelos clássicos da narração e da linearidade temporal (veja também o artigo Semióticas: Bodas do "boom").

Cortázar e seus livros mais conhecidos, especialmente “Rayuela – O Jogo da Amarelinha”, publicado em 1963, inauguram um novo formato que permite várias leituras, orientadas pelo autor, e inspiram há mais de meio século um grande número de leitores, escritores, músicos, cineastas e artistas em geral. Há também os vários filmes baseados em sua literatura, entre os quais dois, pelo menos, se destacam como clássicos do cinema – os dois, por coincidência, lançados em 1967:  “Blow-Up”, de Michelangelo Antonioni, baseado em “Las babas del diablo”, um dos contos de “Las armas secretas”, publicado em 1959; e “Week End à Francesa”, de Jean-Luc Godard, adaptação de “La Autopista del Sur”, publicado em “Todos los Fuegos el Fuego” (1966).

Abaixo reproduzo alguns trechos das minhas entrevistas preferidas de Cortázar, nas quais ele fala da infância, da política, da literatura. Como em toda entrevista, a complexidade surge por via indireta, condensada, às vezes em metáforas, mas a voz de Cortázar guarda sempre a qualidade de revelar o coletivo no autobiográfico, destacando aspectos fundamentais em sua mitologia autoral que sempre têm aquela estranha habilidade de transformar as experiências mais cotidianas e rotineiras em algo a que temos por hábito chamar de Arte – por vezes insólita, incômoda, extraordinária, mas sempre bela, incomum, surpreendente.









Memórias de Cortázar: no alto,
em 1980, em Paris, fotografado por
José Alias. Acima, imagens do álbum
de família. Abaixo, com sua irmã, Ofelia;
com a mãe, María Herminia Descotte;
e em uma sequência de sete fotografias por
José Gelabert em 1959, na sede da UNESCO
em Paris, 
onde trabalhou como tradutor










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1. Infância



Sou filho de argentinos, mas nascido na embaixada da Argentina em Ixelles, uma vila em Bruxelas, na Bélgica, conhecida por reunir muitos estudantes, artistas e intelectuais. Voltei com meus pais para a Argentina aos quatro anos de idade. Meus pais se separaram naquela época e fui criado por minha mãe, uma tia e uma avó. Passei minha infância em uma névoa de duendes, elfos e fadas, com uma sensação de espaço e tempo diferente dos outros.

Um dia, meu pai desapareceu misteriosamente de casa e nunca mais foi visto. Anos mais tarde, tivemos notícias dele: havia morrido no interior do país. Maior foi a surpresa quando soubemos que ele havia deixado fazendas e uma confortável pensão, tudo em nome de minha mãe. Meu pai também se chamava Julio – Julio Cortázar.


– Extraído da entrevista a Elena Poniatowska publicada na “Revista Plural”, n° 44 (México, maio de 1975). 





 
















2. Política



Claro que me incomoda ser mais requerido para dar opiniões políticas que literárias, porque sou um homem literário. Assim como os franceses costumam referir-se ao homem como um animal pensante ou um animal filosófico, eu sou um animal literário. Nasci para a literatura e se fui assumindo lentamente este compromisso ideológico que eu tenho e vocês conhecem, isso foi ao término de um processo muito lento, muito complicado e às vezes muito penoso.

No meu coração, a América Latina existe como uma unidade. Sou argentino, claro (e sinto-me contente com isso), mas estou em casa em qualquer país da América Latina. Sinto as diferenças locais, mas são diferenças dentro da unidade. No plano geopolítico, está a nefasta política de dividir para reinar, que os norte-americanos impõem desde há muito tempo, fomentando os nacionalismos, as rivalidades entre os países para dominá-los melhor, destruindo o sonho de Bolívar dos “Estados Unidos da América do Sul” e criando diferentes países orgulhosos, dispostos a fazer a guerra por questões que não resistem a uma análise profunda. Isso é uma realidade.


– Extraído da entrevista a Viviana Marcela Iriart publicada na “Revista Semana” (Venezuela, setembro de 1979).










Memórias de Cortázar: acima, durante a entrevista

com Viviana Marcela Iriart em setembro de 1979

em Caracas, Venezuela, fotografados por

Eduardo Gamondés. Abaixo, com suas duas

esposas: com Aurora Bernárdez, com quem

viveu de 1953 a 1967; e com Carol Dunlop,

com quem viveu de 1970 a 1982.


Também abaixo, Cortázar na capa do livro com

a transcrição da longa entrevista que concedeu

Ernesto González Bermejo, fotografado

pelo próprio Bermejo, seguido por Cortázar em

Buenos Aires, em 1983, fotografado por Dani Yaco;

e Cortázar em 1976 no deserto de Zabriskie Point,

em Death Valley (EUA), cenário do filme de

Michelangelo Antonioni, cineasta que também

havia adaptado para o cinema, em 1966, o conto

de Cortázar Las babas del diablo, transformado

no filme Blow Up. A fotografia foi enviada

pelo correio por Cortázar, para Antonioni,

em março de 1976 com a inscrição

"Blow Up encontra Zabriskie Point"


















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3. Literatura



A literatura que escrevo sempre recebeu muitas críticas das mais violentas. De um lado, por parte dos aficionados da literatura da direita liberal ilustrada; e de outro, por parte dos meus próprios companheiros de estrada da esquerda. É claro que os mal-entendidos da esquerda me doem. Os da direita, não levo a sério. Até porque teria sido estranho se a direita não tivesse ficado zangada com o que escrevo.

Creio que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de realizar-se como "homo ludens". E, em última instância, como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da felicidade humana. Fazer e ler literatura. Sou feliz quando escrevo e penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata: felicidade pode ser exaltação, amor, cólera... Digamos, potencialização.






 
 
  
 



Memórias de Cortázar: no alto, durante temporada na
Universidade de Berkeley, Califórnia, EUA, em 1980,
no curso que depois seria transformado no livro
Aulas de Literatura. Acima, com sua gata Flanelle
no apartamento em que morava em Paris, em 1967,
fotografado por Antonio Marín Segovia, e aclamado
pela multidão nas ruas, em fotografia de Renzo Gostoli,
na última visita que fez a Buenos Aires, em dezembro
de 1983, dois meses antes de sua morte. Abaixo,
fotografado por José Alias nos anos 1970, nas ruas
de Paris e indo às compras com Carol Dunlop.

Também abaixo, na Kombi Volkswagen batizada
de Fafner, durante a viagem de 800km entre Paris
e Marselha que Cortázar fez com Carol Dunlop,
entre maio e junho de 1982, transformada no livro
Los autonautas de la cosmopista. Carol morreria
em novembro daquele ano e Cortázar morreria
logo depois, em 12 de fevereiro de 1984. Nas
três últimas fotografias abaixo, Cortázar em
uma 
visita a Ouro Preto, Minas Gerais, em
1973, sua agente literária Ugné Karvelis




















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Na verdade meus amigos acreditam que sou um vampiro porque tenho uma alergia muito forte ao alho. Desde os 30 anos não posso comer a mais insignificante quantidade de alho que tenho enxaquecas incríveis. E os vampiros são alérgicos a alho. Até hoje os camponeses húngaros e romenos têm em suas cabanas réstias de alho, pois sabem que os vampiros são afugentados por duas coisas: alho e crucifixo, porque são criaturas do Diabo. Salvo que aconteça como na paródia de Polanski, na qual, ao se ver diante um crucifixo, um vampiro diz: “Não ligo para isso. Sou judeu”.


–  Extraído da entrevista a Ernesto González Bermejo realizada no México, em 1978, e publicada em “Conversas com Cortázar” (Editora Jorge Zahar, 2002).



por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Cortázar faz 100 anos. In: Blog Semióticas, 26 de agosto de 2014. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2014/08/cortazar-faz-100-anos.html (acessado em .../.../...).







Memórias de Cortázar: acima, em Trinidad, Cuba, em 1967.
Abaixo, dois flagrantes em Paris, 1967, por Sara Facio;
Cortázar e seu trompete, fotografado por Alberto Jonquières;
e o túmulo do escritor no cemitério de Montparnasse, Paris


































Exposição em homenagem ao centenário
de Julio Cortázar em Paris, na sede do
Ministério da Cultura e da Comunicação,
aberta de março a setembro de 2014


 

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