Andávamos sem nos procurar, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar. –– "Rayuela" (1963), Julio Cortázar. |
Um
dos autores mais inovadores e originais de nossa época, Julio
Cortázar (1914-1984) completa 100 anos lembrado como mestre do conto
e da prosa poética. Militante incansável dos Direitos Humanos, das
causas políticas e sociais, Cortázar criou um universo literário
especialíssimo, pontuado de revelações insólitas e imprevistas que fizeram dele um expoente do fantástico, destacado, por muitos, como comparável a Jorge Luis Borges, Franz Kafka e Edgar
Allan Poe. Seus textos, em prosa, poesia e ensaios, lançaram o
chamado “boom” do realismo mágico da literatura latino-americana
e romperam com os modelos clássicos da narração e da linearidade
temporal (veja também o artigo Semióticas:
Bodas do "boom").
Cortázar
e seus livros mais conhecidos, especialmente “Rayuela – O Jogo da
Amarelinha”, publicado em 1963, inauguram um novo formato que
permite várias leituras, orientadas pelo autor, e inspiram há mais
de meio século um grande número de leitores, escritores, músicos,
cineastas e artistas em geral. Há também os vários filmes baseados
em sua literatura, entre os quais dois, pelo menos, se destacam como
clássicos do cinema – os dois, por coincidência, lançados em
1967: “Blow-Up”, de Michelangelo Antonioni, baseado em “Las
babas del diablo”, um dos contos de “Las armas secretas”, publicado em 1959; e “Week End à Francesa”, de Jean-Luc Godard, adaptação
de “La Autopista del Sur”, publicado em “Todos los Fuegos el Fuego” (1966).
Abaixo
reproduzo alguns trechos das minhas entrevistas preferidas de
Cortázar, nas quais ele fala da infância, da política, da
literatura. Como em toda entrevista, a complexidade surge por via indireta, condensada, às vezes em metáforas, mas a voz de Cortázar guarda sempre a qualidade de revelar o coletivo no autobiográfico, destacando aspectos fundamentais em sua mitologia autoral
que sempre têm aquela estranha habilidade de transformar as experiências mais cotidianas e rotineiras em algo a que temos por hábito chamar de Arte – por vezes insólita, incômoda, extraordinária, mas sempre bela, incomum, surpreendente.
1. Infância
Sou
filho de argentinos, mas nascido na embaixada da Argentina em
Ixelles, uma vila em Bruxelas, na Bélgica, conhecida por reunir
muitos estudantes, artistas e intelectuais. Voltei com meus pais para
a Argentina aos quatro anos de idade. Meus pais se separaram naquela
época e fui criado por minha mãe, uma tia e uma avó. Passei
minha infância em uma névoa de duendes, elfos e fadas, com uma
sensação de espaço e tempo diferente dos outros.
Um
dia, meu pai desapareceu misteriosamente de casa e nunca mais foi
visto. Anos mais tarde, tivemos notícias dele: havia morrido no
interior do país. Maior foi a surpresa quando soubemos que ele havia
deixado fazendas e uma confortável pensão, tudo em nome de minha
mãe. Meu pai também se chamava Julio – Julio Cortázar.
– Extraído da entrevista a Elena Poniatowska publicada na “Revista Plural”, n° 44 (México, maio de 1975).
2.
Política
Claro
que me incomoda ser mais requerido para dar opiniões políticas que
literárias, porque sou um homem literário. Assim como os franceses
costumam referir-se ao homem como um animal pensante ou um animal
filosófico, eu sou um animal literário. Nasci para a literatura e
se fui assumindo lentamente este compromisso ideológico que eu tenho
e vocês conhecem, isso foi ao término de um processo muito lento,
muito complicado e às vezes muito penoso.
No
meu coração, a América Latina existe como uma unidade. Sou
argentino, claro (e sinto-me contente com isso), mas estou em casa em qualquer país da América Latina.
Sinto as diferenças locais, mas são diferenças dentro da unidade.
No plano geopolítico, está a nefasta política de dividir para
reinar, que os norte-americanos impõem desde há muito tempo,
fomentando os nacionalismos, as rivalidades entre os países para
dominá-los melhor, destruindo o sonho de Bolívar dos “Estados
Unidos da América do Sul” e criando diferentes países orgulhosos,
dispostos a fazer a guerra por questões que não resistem a uma
análise profunda. Isso é uma realidade.
– Extraído da entrevista
a Viviana Marcela Iriart publicada na “Revista Semana”
(Venezuela, setembro de 1979).
. . |
3. Literatura
A
literatura que escrevo sempre recebeu muitas críticas das mais
violentas. De um lado, por parte dos aficionados da literatura da
direita liberal ilustrada; e de outro, por parte dos meus próprios
companheiros de estrada da esquerda. É claro que os mal-entendidos
da esquerda me doem. Os da direita, não levo a sério. Até porque
teria sido estranho se a direita não tivesse ficado zangada com o
que escrevo.
Creio
que a literatura serve como uma das muitas possibilidades do homem de
realizar-se como "homo ludens". E, em última instância,
como homem feliz. A literatura é uma das possibilidades da
felicidade humana. Fazer e ler literatura. Sou feliz quando escrevo e
penso que posso dar um pouco de felicidade aos leitores. E quando
digo felicidade, não estou me referindo a uma felicidade beata:
felicidade pode ser exaltação, amor, cólera... Digamos,
potencialização.
Na verdade meus amigos acreditam que sou um vampiro porque tenho uma alergia muito forte ao alho. Desde os 30 anos não posso comer a mais insignificante quantidade de alho que tenho enxaquecas incríveis. E os vampiros são alérgicos a alho. Até hoje os camponeses húngaros e romenos têm em suas cabanas réstias de alho, pois sabem que os vampiros são afugentados por duas coisas: alho e crucifixo, porque são criaturas do Diabo. Salvo que aconteça como na paródia de Polanski, na qual, ao se ver diante um crucifixo, um vampiro diz: “Não ligo para isso. Sou judeu”.
– Extraído da entrevista
a Ernesto González Bermejo realizada no México, em 1978, e publicada em “Conversas com Cortázar”
(Editora Jorge Zahar, 2002).
por José Antônio
Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Cortázar faz 100 anos. In: Blog
Semióticas,
26 de agosto de 2014. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2014/08/cortazar-faz-100-anos.html
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Exposição em homenagem ao centenário de Julio Cortázar em Paris, na sede do Ministério da Cultura e da Comunicação, aberta de março a setembro de 2014 |