Não
são poucos os historiadores que relacionam a criação da Coca-Cola
com o início da Belle Époque. A bebida nasceu com a chegada da
Revolução Industrial em Atlanta, Estados Unidos, inventada logo
depois da Guerra de Secessão, na mesma época em que tem início a
Belle Époque em Paris, França, até então considerada centro
cultural do mundo. Em 1884, o farmacêutico John Pemberton
(1831–1888) lançou a mistura alcoólica “Pemberton's French Wine
Coca”, anunciada como bebida intelectual, vigorante do cérebro e
tônica para os nervos, feita da mistura de folhas de coca, grãos de
noz-de-cola e álcool.
O
puritanismo religioso foi um impedimento ao sucesso comercial da
primeira versão da bebida, mas Pemberton não desistiu: retirou o
álcool da fórmula e passou meses no porão de sua casa em Atlanta
adicionando ingredientes à água carbonada para chegar a um outro
xarope. Em maio de 1886, a nova bebida começa a ser vendida e seu
primeiro anúncio publicitário é publicado como Coca-Cola, nome
dado por Frank Robinson, que utilizou a sua própria caligrafia para
fazer o logotipo que sobrevive ainda hoje.
Nos bares, o xarope do farmacêutico John Pemberton
era apresentado em copos de vidro e misturado na hora de servir.
Curioso é que os primeiros cartazes publicitários coloridos que anunciavam
o produto faziam mais sucesso que a bebida e por isso passaram a ser
distribuídos como brinde aos clientes que compravam o produto
engarrafado para levar para casa ou seguir viagem. As primeiras
garrafas vinham com tampas de rolha, mas a partir de 1900, foi
adotada a novidade da “tampa coroa”.
Enquanto
a Coca-Cola ganhava o mundo, florescia a partir da França a Belle
Époque – com sua pluralidade de tendências filosóficas,
científicas e sociais, incluindo o aparecimento das vanguardas nas
artes, na literatura, na música e na arquitetura, reforçada com as
reformas urbanas em Paris e nas capitais da Europa, irradiando seus
reflexos nas cidades de outros continentes. Favorecida por um longo
período de paz internacional que só seria interrompido em 1914,
quando explodiria a Primeira Guerra Mundial, é a época das
ostentações e das grandes invenções: eletricidade, telégrafo,
telefone, cinema, estradas de ferro, automóveis, aviões. A história da arte também classifica este período, do final do século 19 até o final dos anos 1920, como época da Art Nouveau, com obras de arte e objetos industriais criados para destacar uma exuberância decorativa de curvas assimétricas, formas botânicas e motivos florais.
Paris
no final do século 19: no alto, cartaz
original criado por Alphonse
Mucha, o
maior nome da Art Nouveau,
para a peça “A Dama
das Camélias",
de Alexandre Dumas, estrelada por Sarah Bernhardt, em litografia
colorida de 1896. Também acima, pintura anônima que
retrata
o Port
St. Denis; e duas fotografias anônimas, a primeira com data de 1880, mostrando a Avenue des Champs-Élysées, e a segunda de 1900, mostrando a clientela do Café de La Paix. Abaixo, Robert De Niro com Dominique Sanda fotografados por Eva Sereny nas filmagens de "Novecento", filme de 1976 de Bernardo Bertolucci que apresenta uma retrospectiva da história desde a Belle Époque na Itália, em 1900, até a Segunda Guerra. Também abaixo, o momento histórico em que o brasileiro Alberto Santos Dumont voa sobre Paris na
manhã do dia 19 de outubro de 1901 e provoca uma
grande comoção na multidão que vai às ruas |
Coca-Cola
nos grotões
No
Brasil, é comum situar a Belle Époque entre 1889, com o fim do
Império e a Proclamação da República, e 1922, ano de realização
da Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas há pesquisadores que
defendem a extensão do período até a Revolução de 1930, que por
sua vez encerra a primeira fase da República. Por aqui, entretanto,
a associação entre a Belle Époque e a popularização da Coca-Cola
sempre gerou controvérsias, visto que o início da comercialização
da bebida importada dos EUA só acontece a partir dos anos 1930,
ainda assim restrita ao público de maior poder aquisitivo.
Somente mais tarde, no contexto da Segunda Guerra, sob pressão do governo do presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, e com a instalação das primeiras bases militares norte-americanas no Norte e no Nordeste do Brasil, é que o comércio de Coca-Cola passou a ser cada vez mais frequente. Em 1941, Getúlio Vargas autoriza a inauguração da primeira fábrica de Coca-Cola em solo brasileiro, no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, iria ao ar, pela Rádio Nacional, “Um Milhão de Melodias”, o primeiro programa a ser patrocinado pela Coca-Cola no Brasil.
Cenas da Belle Époque no Brasil:
Getúlio Vargas em 1911, anos antes de chegar à Presidência da República, ao lado de sua esposa, dona Darci. Também acima, Getúlio Vargas ao centro, com seus fieis seguidores, durante a curta estadia em Itararé (SP) em seu caminho para a tomada do poder no Rio de Janeiro, depois do êxito das tropas militares na linha de frente. Abaixo, o encontro entre os presidentes Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt na base aérea norte-americana instalada em Natal (RN), em 28 de janeiro de 1943 |
Cinco décadas antes disso, quando a industrialização do produto mais identificado com a invasão norte-americana em todo o mundo ainda dava seus primeiros passos, com as investidas do farmacêutico John Pemberton em Atlanta, as instituições brasileiras explodiam em reviravoltas provocadas por dois eventos de impacto. São divisores de águas no Brasil, na segunda metade do século 19, a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que extinguiu a escravidão (assinada por Dona Isabel, princesa imperial, que estava na regência, durante viagem do imperador Dom Pedro 2° ao exterior), e o levante militar em 15 de novembro de 1989, que pôs fim à soberania do imperador e proclamou a República.
O período identificado como Belle Époque, no
Brasil, vai coincidir com
um movimento demográfico de grandes proporções, com a chegada das
grandes levas de imigrantes ao território nacional. É também a
época em que a imensa população de escravos recém-libertados e seus descendentes passam a ocupar as
periferias das cidades, enquanto as classes mais abastadas se
estabelecem nos centros urbanos. São os antigos senhores de escravos
que também vão firmar a novidade do consumo de produtos
industrializados, a grande maioria importada das capitais da Europa.
Gostos
da Belle Époque:
acima, Dom Pedro 2°
fotografado
por Marc Ferrez em
1885, no Paço
de São
Cristóvão, Rio de Janeiro. No alto,
a Família
Imperial no exílio, reunida no
Castelo
d’Eu, Normandia, França, em 1918,
fotografada
por P.
Gavelle.
Em primeiro plano, a partir
da esquerda: Dona Maria Francisca (em pé) e
Dona Elisabeth Dobrzenky de Dobrzenicz (sentada),
tendo ao colo Dom João Maria; a seu lado,
Dona Isabel, futura Condessa de Paris, e
Dom Pedro Gastão, ambos em pé.
Sentados,
Conde d’Eu e
Princesa Isabel,
seguidos
de Dona Pia Maria, em pé, Dom Luís,
sentado,
Dom Luís Gastão e Dom Pedro Henrique,
Príncipe
do Grão-Pará, ambos em pé. No
segundo
plano, da esquerda para a direita,
em
pé, Dom Pedro de Alcântara, Dom Antônio
e
Dona Maria Pia. Na segunda imagem,
Princesa
Isabel e Conde d’Eu fotografados
por P.
Gavelle em 1919. Abaixo,
imagem rara dos
arquivos do Museu Imperial de Petrópolis
apresenta
um desfile de carruagens e uma
batalha
de flores na avenida principal, no
Carnaval, em fevereiro de 1888. Também abaixo, fotografia de Augusto Malta que registra a Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, por volta de 1900; e a recém-inaugurada Avenida Central, em 1909, no centro do Rio de Janeiro, em fotografia de Marc Ferrez mostrando à esquerda a Praça Floriano Peixoto e o Teatro Municipal, e à direita, a Escola Nacional de Belas Artes
|
Marcada pelas grandes invenções, capitaneadas pela proliferação de imagens da fotografia, do cinema, de jornais e revistas e muitos anúncios publicitários, a Belle Époque, também no Brasil, vai testemunhar um “embelezamento” dos hábitos da vida cotidiana, com a entrada do design sofisticado nos objetos utilitários, nas vestimentas e nos detalhes rebuscados na arquitetura e na fachada das casas. A República, recém-instalada, almejava inaugurar uma nova era no país e, por conta disso, tentou minimizar tudo o que lembrava o Império e o passado da colonização portuguesa.
Arquitetura e 'embranquecimento'
Dentre estas novas metas, alardeadas como progresso pelos republicanos que chegaram ao poder, se destaca a legislação que oficialmente procurava o “embranquecimento” do povo brasileiro, marginalizando os negros recém-libertados e incentivando a recepção de povos imigrantes, nomeados nos documentos com as características de “brancos e letrados”. A vida cultural nas capitais também buscava novo rumo, com a tentativa de importar novos hábitos de consumo na ilusão de ganhar alguma aproximação das culturas francesa e italiana.
Com a chegada das populações de imigrantes, a maioria vinda dos países europeus, a arquitetura e o urbanismo têm um salto qualitativo considerável nos primeiros tempos da República, especialmente no final do século 19 e na primeira década do século 20: é dessa época a popularização de novidades como os automóveis que passam a ocupar as paisagens urbanas e também a fundação de Belo Horizonte, primeira cidade planejada no Brasil, com os amplos espaços livres das praças e dos largos das igrejas e da Estação Ferroviária, suas amplas e extensas avenidas em traçado geométrico e prédios suntuosos que abrigavam a administração pública e a modernidade dos teatros e dos cinemas.
Gostos da Belle Époque: acima, cenas de Belo Horizonte no início do século 20, a primeira cidade planejada do Brasil com suas amplas avenidas em traçado geométrico e prédios suntuosos que abrigavam a modernidade dos cinemas. Abaixo, registros em fotografias anônimas sobre as reformas urbanísticas no Rio de Janeiro, com a demolição dos cortiços e a abertura de amplas praças e avenidas, seguindo o modelo francês de arquitetura e urbanismo
|
Outro marco arquitetônico na Belle Époque brasileira foi a grande
reforma urbanística no Rio de Janeiro, então Capital Federal, com a
demolição dos cortiços e antigos casarios no centro da cidade e a abertura das amplas avenidas, empreendidas pelos projetos de Pereira
Passos e Rodrigues Alves. As reformas e as novas construções
fundadas no estilo em voga na França e em outros países da Europa também chegaram a São Paulo,
como apontam dois estudos inspirados sobre a arquitetura e a
iconografia da Belle Époque paulistana, há décadas considerados itens de colecionares, que retornaram às livrarias em
lançamentos da Companhia Editora Nacional.
Cenários
de 1900
Em
“São Paulo: Belle Époque” e “Memória e Tempo das Igrejas de
São Paulo”, os belos traços da artista plástica Diana Dorothéa
Danon transformam detalhes arquitetônicos e fachadas remanescentes de igrejas,
mosteiros, palacetes, estações e antigos casarões em desenhos,
aquarelas e poemas. O trabalho da artista encontra nas novas edições apoio em textos
referenciais de dois especialistas: o jornalista Leonardo Arroyo e o
arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo. Formada em pintura
pela Escola de Belas Artes de São Paulo, em 1959, Diana Danon, que
em 2012 completa 83 anos, está em boa companhia.
Leonardo Arroyo,
que foi colaborador dos jornais “A Notícia” e “Folha da
Manhã”, venceu o Prêmio Jabuti em 1985 com o livro “A Cultura
Popular em Grande Sertão: Veredas” – enquanto Benedito Lima de Toledo, professor
titular de História da Arquitetura na USP, publicou uma série de livros sobre urbanismo e arquitetura, entre eles “São Paulo:
Três Cidades em um Século” e “Álbum Iconográfico da Avenida
Paulista”. Nos ensaios que produziram para acompanhar as dezenas de
ilustrações e os fragmentos poéticos de Diana Danon, Arroyo e
Toledo abordam o contexto das construções do século 16 ao século
20, que têm como pano de fundo a riqueza oriunda do café.
Produzidos
a partir da década de 1960, imagens e poemas de Diana Danon resgatam
em detalhes a beleza de edificações que estavam espalhadas por
Higienópolis, Campos Elíseos, Santa Cecília e Bela Vista – mas
que não resistiram ao tempo e à especulação imobiliária. “A
cidade surpreendia seus próprios moradores”, destaca a artista na
breve apresentação aos livros, situando as transformações que a
riqueza fácil e desmedida vinda das fazendas e do comércio do
café provocava de forma ininterrupta nos belos cenários da cidade
antiga.
A
Belle Époque resgatada nos traços de Diana Danon: no alto, desenho que retrata a casa onde morou a Marquesa de Santos, seguido do
Monumento à
Independência, localizado no parque em São Paulo que também abriga o Museu do Ipiranga. Também acima, e abaixo, detalhes da fachada do Teatro Municipal da capital de São Paulo |
“Sem
saber que um monstro estava sendo gerado, com patética ingenuidade
galardoavam-na com o dístico: a cidade que mais cresce no mundo!
Quanto bonde não foi marcado com essa frase que o paulistano sempre
leu como uma lisonja e não como uma uma advertência... Quanto
prefeito, governador, quanto político não repetiu a frase com
inconsequência de novo-rico, deixando a cidade entregue ao seu
crescimento desordenado”, aponta Diana Danon.
Além
do lirismo dos versos e das imagens pesquisadas e retratadas por Diana Danon, os textos de Benedito Toledo e
Leonardo Arroyo situam o desenvolvimento desordenado da metrópole no final do
século 19 e começo do século 20. Nos ensaios historiográficos, o
que se coloca frente a frente é o antigo patrimônio da metrópole e
o crescimento tentacular fundado na riqueza descompromissada e na importação desvairada de modismos estrangeiros, sem nenhum
planejamento ou plano diretor sobre o urbanismo que pudesse conter os excessos dos interesses
predatórios, que surgem mascarados com o discurso otimista em nome do progresso.
Cenários
do passado paulistano: o Viaduto Santa Ifigênia, construído em 1913, auge da Belle Époque, na ilustração de Diana Danon datada de 1972; e a fachada principal do Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz, localizado na avenida Tiradentes e inaugurado em 1774. Abaixo, um antigo sobrado da Avenida Paulista e Diana Danon em ação, em 2011, aos 81 anos, desenhando um sobrado do bairro do Brás. Também abaixo, a fachada do Museu do Ipiranga e o conjunto hospitalar da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, com seus tijolinhos aparentes, construído no final do século 19 |
O
estilo afrancesado
Tanto
em “São Paulo: Belle Époque” como em “Memória e Tempo das
Igrejas de São Paulo”, as belas imagens, a maioria em preto e
branco, e os textos breves resgatam a pujança de uma época que
ficou no passado, deixando um mínimo de edificações para o tempo
presente. Entre detalhes da reconstituição iconográfica de Diana
Danon, que participou de mais de 50 mostras individuais e coletivas
de artes plásticas entre 1959 e 2008, o leitor encontra relatos de curiosidades e
estudos detalhados sobre traços arquitetônicos e construções
específicas.
Enquanto
os desenhos e as aquarelas primam pela qualidade em minúcias, os
textos de Toledo e Arroyo envolvem quiproquós sobre a população de
imigrantes e a prática disseminada pela burguesia paulistana em importar hábitos e modismos da Europa, a odisseia da subida da Serra do Mar, o ecletismo dos
novos bairros, o cotidiano dos trabalhadores estrangeiros e a
presença fundamental dos “capomastri”, os arquitetos aptos para
a execução e finalização de qualquer que fosse o projeto. Em meio
às questões de urbanismo e arquitetura, Diana Danon transforma a
pesquisa de campo em poesia:
A
igreja em reforma
estava
escura.
Atrás
de mim, a senhora
vendia
velas.
Algumas
num canto ardiam
silenciosas.
Enquanto
registra referências poéticas ao trabalho de desenho que investiu
nos cenários pesquisados, Diana Danon também estabelece juízos de
valor com rigor de avaliação científica, apontando que havia os
“bolos de noiva”, de ornamentação prolixa e de gosto duvidoso,
que por sua vez conviviam com outras construções. Pela
originalidade de concepção e execução, muitas delas, destaca
Diana Danon, poderiam figurar ao lado das melhores expressões
europeias das edificações na Belle Époque.
Os
ensaios de Toledo e Arroyo confirmam as intuições e as breves avaliações de
Diana Danon, destacando que em algumas regiões da maior cidade do
território nacional, como a Avenida Paulista, o ambiente era mais
propício ao “gosto francês”. “As imensas residências, cada
uma com um estilo diverso, constituíam impressionante documento de
ecletismo. Neoclássico, toscano, florentino, egípcio, neorromano, Art Nouveau, todos os estilos e pretensos estilos ali estavam
enfileirados”, aponta Toledo.
A
conclusão para os dois estudos não deixa de ser melancólica, ainda
que soe como um alerta para a importância do planejamento urbano e
da preservação do patrimônio cultural, estético, artístico,
documental, científico, social ou ecológico, como forma de não
repetir os erros irreversíveis cometidos num passado nem tão
distante. O patrimônio investigado, a partir da observação nostálgica dos traços
arquitetônicos da Belle Époque que restaram como monumentos isolados, também representa uma lição da
história para o presente e o futuro, a demonstrar que a
industrialização e as maquinarias, colocadas em movimento em nome de um pretenso progresso
a qualquer custo, nem sempre são garantia de avanços acertados ou de melhorias na
qualidade de vida.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
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Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Gostos da Belle Époque. In: Blog
Semióticas,
13 de junho de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/06/gostos-da-belle-epoque.html
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