Os
jogos infantis são impregnados de comportamentos
miméticos que não se limitam de modo algum à imitação
de
pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante
ou
professor, mas também de ser
moinho de vento e
trem.
A
questão importante, contudo, é saber qual a utilidade
para
a criança desse adestramento da atitude mimética.
No
senso comum está, muitas vezes, a ideia de que tanto jogos, brinquedos e
brincadeiras, como as etiquetas do antigo comportamento em geral eram muito melhores que os de hoje em
dia, seja esta ideia um modo melancólico de utopia nostálgica ou
mesmo um argumento para criticar e contrapor, em nossos dias, a
onipresença cotidiana de objetos eletrônicos e virtuais, videogames
e telemáticas de formatos e definições variadas, computadores,
celulares e seus similares. A percepção do senso comum também confirma que
jogos e brinquedos formam uma parte importante da nossa
identidade na trajetória de nossas vidas individuais e coletivas, assim
como fazem e sempre fizeram parte de todas as culturas em todas as
épocas. Mas o que as maneiras de brincar dizem sobre uma sociedade?
A
questão foi objeto de investigação filosófica e histórica por pensadores e pesquisadores das mais diversas áreas e nacionalidades, de Sigmund Freud e Ludwig Wittgenstein a Johan
Huizinga, de Jean Piaget e Roger Caillois a Umberto Eco, de Maria Montessori e Joffre Dumazedier a Ellen Key, de Lev Vygotsky e Melanie Klein a Roland Barthes, de Walter Benjamin a Paulo
Freire e Tizuko Kishimoto, entre outros. Na Antiguidade Clássica, Aristóteles
já destacava o valor do jogo por sua autossuficiência, nos livros
de sua “Arte Retórica” (publicados em texto integral no Brasil pela Editora Edipro), e interrogava sobre sua causa final em
variáveis como luta e disputa, derrota e vitória, para concluir que, em toda
circunstância, são as formas do prazer pelo próprio jogo o que
procuram aqueles que jogam. Sobre as reflexões pioneiras de Aristóteles talvez seja também importante lembrar que, em grego, há uma revelação etimológica sobre as relações que se estabelecem entre infância, jogos
e brincadeiras: todos os vocábulos referentes às atividades lúdicas
estão ligados à palavra criança (“pais”, “paidí”, “paidós”) e o verbo “paizeim”,
que se traduz por “brincar”, também pode ser traduzido literalmente por “hora de brincar” ou “agir como criança”.
O brinquedo nazista: no alto, boneca produzida
pela
tradicional
empresa
Käthe
Kruse,
que adotou
na
década de 1930
uniformes
militares nazistas
ou
da Juventude Hitlerista para sua extensa linha
de
bonecas e bonecos. Acima,
a capa do livro de
André
Postert
e a reconstituição pelo autor de um quarto
de criança
de classe média na Alemanha da
década de 1930. Abaixo, as peças originais do jogo de
tabuleiro
A
Corrida da Vitória da Suástica
(Der
siegeslauf des hakenkreuzes), lançado
quando
Hitler tomou o poder em
1934.
Todas as imagens desta página fazem parte
do acervo reunido por André Postert |
No
último século, Walter Benjamin, vivendo na Alemanha em tempos
sombrios que testemunhavam o avanço rumo ao poder e à destruição
do nazismo, também deixou pesquisas e escritos reveladores sobre a prática de
jogos como repetição e sobre as formas alegóricas de brincar. No
ensaio “Brinquedos e jogos”, publicado em 1928 com o subtítulo “Observações marginais sobre uma obra monumental” (publicado no Brasil em “Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a
educação”, livro da Editora 34), Benjamin ressalta a polissemia
da palavra “jogos” – na língua alemã, “spiel” (no singular) ou “spiele” (no plural) é um substantivo que pode ser traduzido tanto por “jogos” como por
“brincadeiras”. “Spieler” se traduz por jogador; “spielerisch”, por brincalhão; assim como “spielen”, o verbo relacionado ao termo, tem, entre outros significados, “brincar”, “jogar”
ou “representar”.
Ideologia
bélica e macabra
No
duplo sentido, em alemão, da palavra “spiele” e da prática de
jogos e brincadeiras, Benjamin faz referências sobre as maneiras de
brincar e sobre as fantasias e percepções construídas na
brincadeira, nas lutas e na destruição dos brinquedos, nos objetos
e na imaginação que marcam a vida cotidiana estampada no singular e
no plural. “A essência do brincar não é um ‘fazer como se’,
mas um ‘fazer sempre de novo’, transformar a experiência mais
comovente em hábito”, alerta Benjamin, para concluir que “o
hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo que em formas
mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho da brincadeira”.
Se é verdade, como questiona Benjamin, que para cada um existe uma
imagem em cuja contemplação o mundo inteiro submerge, para quantas
pessoas essa imagem não se levanta de uma velha caixa de brinquedos?
.
O
brinquedo nazista:
no alto, fotografia de
álbum
de família na Alemanha da década de 1930.
Acima,
bonecos produzidos pela Käthe
Kruse:
à
esquerda, folheto com anúncio do lançamento
Friedebald
Puppe, boneco com mecanismo para
erguer o braço para a saudação a Hitler e que
esgotou rapidamente no mercado pela demanda
de exportações no começo da Segunda Guerra;
à direita, soldadinho de feltro, também
erguer o braço para a saudação a Hitler e que
esgotou rapidamente no mercado pela demanda
de exportações no começo da Segunda Guerra;
à direita, soldadinho de feltro, também
produzido pela Käthe Kruse, com enchimento
de algodão e uniforme militar completo.
Abaixo, bonecos em metal para a
coleção Mini-Nazis, que eram vendidos
separadamente; e fotografia
de álbum de
família
com meninos em 1938 estreando os presentes
de jogos de guerra sob a árvore de Natal
com meninos em 1938 estreando os presentes
de jogos de guerra sob a árvore de Natal
O
questionamento filosófico e nostálgico identificado por Walter Benjamin em 1928
parece ter sido tomado literalmente como fio condutor pelo
historiador André Postert, que desde 2014 atua como pesquisador
associado do Instituto Hannah Arendt na cidade alemã de Dresden. Postert
investigou durante anos, em arquivos e bibliotecas da Alemanha, os
registros mais variados sobre os jogos infantis e as velhas caixas de
brinquedos. Os resultados das pesquisas agora estão reunidos no
livro “Kinderspiel, Glücksspiel,
Kriegsspiel: Große Geschichte in kleinen Dingen 1900-1945” (em
tradução livre, “Jogo infantil, jogo de sorte, jogo de guerra,
Grande História em pequenas coisas 1900-1945”), lançamento da
Editora DTV em alemão e outras línguas (veja o link para leitura
dos primeiros capítulos no final deste artigo).
Limitando
sua investigação à primeira metade do século 20, Postert descreve
práticas e objetos muitas vezes macabros que foram extremamente populares: de bonecas e
bonecos em seus uniformes militares a carrinhos e miniaturas de aviões, tanques e submarinos, réplicas de armas, jogos
de tabuleiro, cartas de baralhos, cartelas de sorteios, dados, livros infantis e fichas impressas e ilustradas, brinquedos com algum teor erótico, peças de xadrez ou uma variedade de peças para montar. Os
itens do inventário que Postert organizou surpreendem porque comprovam os
indicativos explícitos de uma profunda e
intensa propaganda para a ideologia bélica, violenta e
antissemita. Como agravante, no perfil da grande maioria dos
brinquedos e dos jogos com estratégias de batalha, na
época das duas guerras
mundiais, todos com muitas estampas
de armas, suásticas, escudos e outros símbolos nazistas, os apelos para
crianças e adultos eram sempre anunciados em
destaque como “educativos”.
Suásticas
no tabuleiro
Na
apresentação a seu inventário, André Postert destaca que jogos e
brinquedos são reveladores sobre o comportamento de uma sociedade: eles representam o “zeitgest”, o “espírito da
época” ou o “sinal dos tempos”. Segundo Postert, jogos, brinquedos e
brincadeiras podem ser bons indicadores sobre o passado no tempo presente porque
retratam a história em todos os seus aspectos, incluindo aqueles que em sua época não foram compreendidos, ou porque foram ignorados ou porque foram mascarados com sérias intenções ideológicas: tanto aspectos referentes às questões de tecnologia e economia como as implicações sobre política, educação, comportamento, racismo, fanatismo, religião, injustiça,
crimes e guerras. “Alguns jogos
e brinquedos são apenas uma moda passageira”, aponta
Postert, “enquanto outros às vezes experimentam um
renascimento inesperado depois de décadas. Acredito que isso
acontece porque jogos e brinquedos não apenas escrevem a história,
mas também refletem a história”.
A
chegada de Adolf Hitler ao poder e à ditadura nazista na
Alemanha abrange o período que vai de 1933 até o fim da
Segunda Guerra, 1945, mas desde o começo do século 20 os jogos
e brinquedos com orientação bélica e racista já ocupavam o
mercado e as linhas de produção da poderosa indústria alemã. O
auge para tal indústria antecede a Segunda Guerra e termina por
alcançar os índices recordes de maior produção global para a Alemanha nas décadas
de 1920 e 1930. Sob o controle de Hitler e do Partido Nazista
(NSDAP), a Alemanha foi transformada em um estado totalitário
fascista em que a vontade do Führer (líder) estava acima das leis e
controlava todos os aspectos da vida dos cidadãos. Na Alemanha
Nazista, também chamada de Terceiro Reich, a indústria de
brinquedos foi transformada em mais uma engrenagem de sua gigantesca
máquina de propaganda.
Enquanto os grandes fabricantes de brinquedos abraçavam as bandeiras do
Terceiro Reich, em suas causas bélicas e racistas de perseguição e
assassinato de judeus e outros grupos considerados indesejáveis, Joseph Goebbels, o todo poderoso ministro da Propaganda, atuava
para lançar mão de todos os recursos para controle da
opinião pública alemã, censurando e também assassinando
qualquer oposição na cena política, nas escolas e na cultura em
geral, promovendo determinadas formas de expressão artística favoráveis aos planos nazistas e fascistas e proibindo qualquer questionamento. Postert destaca que a indústria de
brinquedos aceitou todas as formas de controle sem nenhuma
resistência e que o próprio Hitler, assim como Goebbels, ia
publicamente a mercados, a empresas e a grandes lojas de departamentos no
Natal e em datas cívicas para promover, em ações direcionadas de publicidade, certos jogos e brinquedos,
distribuindo presentes na presença da imprensa e de grandes plateias em situações planejadas nos mínimos
detalhes. A mensagem era direta: “nós amamos as crianças e as
crianças nos amam”.
A
propaganda explícita
Entre
as grandes empresas que comandavam a produção industrial, listadas
no inventário de Postert, há muitos casos que impressionam pelo
conteúdo bélico e racista dos jogos e brinquedos, de propaganda do
estado totalitário, e pelos altos volumes de vendas que tais itens
alcançaram. Entre eles está o marco representado pela empresa Käthe
Kruse, que adotou uniformes militares nazistas ou da Juventude
Hitlerista para sua extensa linha de bonecas e bonecos, ou o macabro
“Juden raus!” (Fora judeus!), lançado em 1936 pela Günther &
Co. com o rótulo de “um jogo para toda a família”. Na estratégia do “Juden raus!”, jogadores assumem nas peças do tabuleiro o papel de policiais e, ao ritmo de lances de dados, podem invadir propriedades, confiscar bens, prender famílias inteiras de judeus e fazer deportação de sequestrados para os campos de concentração. O
vencedor era o jogador que conseguisse “recolher” seis judeus
antes dos outros.
A
iniciação macabra aos rituais, à ideologia e às instituições do
Terceiro Reich prossegue em muitos outros jogos e brinquedos
investigados no livro de Postert. Havia também uma variedade de coleções de papéis de cartas, cartilhas didáticas e baralhos completos com retratos dos principais chefes do
regime nazista, de Hitler a Goebbels, Göring, Himmler e outros
comandantes militares, além de miniaturas de veículos reconstruídos em detalhes com bonecos
representando personagens reais em seus uniformes militares oficiais. Hitler, com seu
motorista e sua limusine preta, figuram como recordistas de vendas.
Outro
campeão de vendas “para toda a família” foi o jogo “A Corrida
da Vitória da Suástica” (Der siegeslauf des hakenkreuzes), uma
peça de propaganda explícita lançada quando Hitler tomou o poder,
em 1934. No jogo, as peças com suásticas eram movidas pelos
jogadores de um campo a outro do tabuleiro, cada campo indicando
momentos históricos do partido nazista desde sua fundação. O
jogador que, depois de vários lances, pudesse ultrapassar os obstáculos dos opositores para chegar ao campo
final, indicando 1934, vencia a batalha e destruía a democracia
alemã.
O extenso acervo de jogos de tabuleiro e de brinquedos reunidos por Postert
também representa um arsenal de doutrinação e de destruição, já que, na
prática dos jogos e brincadeiras, principalmente as crianças, mas também os jogadores de todas as idades, aprendiam,
reforçavam e espalhavam a ideologia fascista do regime com requintes
de propaganda racista, militar e política, incluindo a preparação social para a guerra e seus
crimes em massa, seus genocídios. Entre os documentos que impressionam pelas formas explícitas de violência que propagam, Postert reproduz trechos de um comunicado público de 1933 da Associação de Fabricantes Alemães de Estanho
que é revelador pelos termos que comemora: “Acabou-se com a corrida
pacifista estúpida das sociedades da paz e das ligas femininas
contra todos os brinquedos militares”.
A
banalidade do mal
Macabro
e fúnebre, o saldo criminoso e assustador do genocídio nazista gerou um cenário
traumático que levou, no pós-guerra, pensadores como Hannah Arendt
a chamar atenção para o que seria a “banalidade do mal”. Em
1961, depois de 15 anos do final da Segunda Guerra Mundial, Arendt,
filósofa alemã de origem judaica que embarcou para os Estados
Unidos fugindo do nazismo, é enviada pela revista “The New Yorker”
para acompanhar o julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann,
tenente-coronel da Alemanha Nazista e um dos principais mentores do
Holocausto, que havia sido localizado e preso em 1960 em Buenos Aires, Argentina. Com base nos relatos que escreveu para a revista norte-americana, Arendt
publica em 1963 o livro “Eichmann em Jerusalém”, que tem por
subtítulo “Um relato sobre a banalidade do mal” (editado no Brasil pela Companhia das Letras).
Arendt
ressalta, considerando as estratégias nazistas que resultaram no assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus e outras etnias durante a Segunda Guerra, que o acusado naquele julgamento não apresentava características de um
caráter distorcido ou doentio e que ele alegava ter feito o que fez
porque acreditava ser aquele o seu dever, cumprindo ordens superiores
sem questionar. Envolvido em polêmicas e muitas controvérsias, o
julgamento, que terminou com Eichmann condenado à morte por
enforcamento em 1962, fornece argumentos importantes para que Arendt
reconheça, na banalidade do mal, uma ameaça constante para todas as
sociedades democráticas, abordando o problema por uma perspectiva
política e não moral ou religiosa.
O mal, segundo Hannah Arendt, é um fenômeno político e histórico porque se manifesta apenas onde encontra espaço institucional – e sempre como resultado de uma escolha política: sua banalização corresponde ao vazio de pensamento que transforma a violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas burocráticos. Como a história comprova, a banalidade do mal sempre permanece à espreita, à procura da oportunidade para se instalar, e até mesmo objetos e práticas na aparência triviais e do senso comum, como jogos, brinquedos e brincadeiras, podem ser instrumentos para espalhar e multiplicar, de forma monstruosa, o perigo de sua contaminação de ódio e violência.
por José
Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. O brinquedo nazista. In: _____. Blog Semióticas, 12 de maio de 2019. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2019/05/o-brinquedo-nazista.html (acessado em .../.../...).
Para ler os primeiros capítulos do livro de André Postert, clique aqui.