O que a noite tem a ver com o sono?
(What hath night to do with sleep?)
–– John Milton (1608-1674). |
O norte-americano Michael Wadleigh tinha 27 anos quando decidiu filmar os shows do lendário Festival de Woodstock em 1969. Foi o único a registrar o evento na íntegra. No ano seguinte, o cineasta então desconhecido tornou-se celebridade internacional ao lançar nos cinemas "Woodstock - Onde Tudo Começou". Filmado por cinco câmeras sob o comando de Wadleigh – que chegou a ser chutado para fora do palco durante o show do The Who – o documentário teve o desconhecido Martin Scorsese como assistente de direção e propagou imagens que fariam história pelo mundo afora.
Intercalando celebrações e delírios da plateia de meio milhão de pessoas às performances definitivas de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Joe Cocker e uma galeria de nomes e bandas mitológicas, naquele chuvoso fim de semana de agosto de 1969, o filme de Wadleigh venceu o Oscar em 1971 como Melhor Documentário e marcou época. Em 1994, o mesmo Wadleigh foi o centro das atenções quando, nos 25 anos do festival, lançou nova versão de seu documentário com preciosos 40 minutos que não estavam na versão exibida nos cinemas – que tinha 154 minutos e foi lançada em VHS nos anos 1980. Recentemente, ele apresentou uma nova versão da íntegra do festival, com muitas cenas inéditas, e causou comoção entre os roqueiros, fãs e pesquisadores.
Meio século depois do lançamento do primeiro filme, Michael Wadleigh surge com uma nova "versão do diretor" para o documentário que já parecia completo na versão original. "Woodstock - 3 Dias de Paz, Amor e Música" (Warner) chegou às lojas em quatro DVDs e em Blu-Ray. O novo filme traz as 32 bandas e suas 250 canções em mais de quatro horas – com acréscimo de duas horas de cenas nunca vistas, incluindo um documentário sobre a década de 1960, novas performances no palco e na plateia, entrevistas saborosas e depoimentos emocionados, tudo filmado e gravado no calor da hora do festival.
Wadleigh selecionou o que havia de melhor em seu arquivo para editar a nova versão. São cenas surpreendentes, para deleite dos apaixonados pelo melhor do rock'n'roll: das festas da plateia às sequências inéditas de alguns dos maiores mitos da música em seus melhores momentos – entre eles, a íntegra de atuações nunca exibidas de 13 bandas e artistas como Janis, Hendrix, Joan Baez, Santana, The Who, Grateful Dead e muitas outras performances inspiradas.
A "versão do diretor" traz ainda comentários de Wadleigh, que lança luzes sobre os bastidores de produção do festival que mudou a história do rock – revelando que os organizadores pensaram em desistir de tudo, na última hora, por causa do desconforto das chuvas e dos congestionamentos gigantescos que os milhares de sortudos e corajosos enfrentaram para chegar à fazenda que seria sede do evento mais mítico da era da contracultura.
Nos extras da nova versão do documentário, Wadleigh comenta seu próprio trabalho diante do que define como o melhor show da história. "O certo é que todas essas pessoas estavam lá por algo mais que uma música maravilhosa e foi isso o que retratamos", explica Wadleigh, que manteve os irreverentes cabelos longos que usava nos anos 1960, quando embarcou em uma história que, segundo ele próprio comenta, soava a "ecologia, comunismo e cultura".
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Woodstock, lembra o diretor Michael Wadleigh, é uma unanimidade como mais importante evento de música da história e um marco em nossa civilização: é quando o rock'n'roll, que surgiu na década anterior, chega ao poder. Pelas imagens flagradas por Wadleigh, é possível acompanhar a felicidade da multidão que viveu "três dias de paz, amor e música" – palavras que ganharam corações e mentes por traduzir a juventude em uma época marcada por grandes transformações, por grandes utopias e também por desilusões.
O tom de fim da utopia transparece no show que encerra o festival, com Jimi Hendrix tirando sons torturados da guitarra e improvisando na microfonia "Star Spangled Banner", o hino nacional norte-americano. Enquanto no Brasil surgia o movimento tropicalista e a ditadura militar atingia seu momento mais repressor, com o Ato Institucional Nº 5 cassando as liberdades individuais, a juventude de outros países também vivia momentos sombrios, ainda que instigantes – com lutas históricas pela liberdade e pelos direitos civis.
Nos Estados Unidos, Luther King e Robert Kennedy são assassinados em 1968, enquanto explodia a guerra do Vietnã, o mais longo conflito armado desde a Segunda Guerra. Nos cenários de Woodstock, porém, como define no novo filme de Wadleigh um dos organizadores do festival, tudo alcançaria a dimensão de paraíso – apesar das filas gigantes para tudo, da chuva que não parava e do barro acumulado. Foi o auge da liberação e do "paz e amor" – como indica o gesto de indicar dois dedos em riste, imagem que se tornaria o símbolo de uma época e síntese poética dos novos tempos no mundo inteiro.
O lendário encontro de tribos que colocou Woodstock no centro e na vanguarda da consciência de cidadãos do mundo todo, quatro décadas depois ganharia outros tributos, além da nova versão do documentário de Michael Wadleigh. De todos os tributos ao festival, alguns merecem atenção especial, entre eles os livros “Woodstock” (editora Agir), de Pete Fornatale, e “Aconteceu em Woodstock” (editora Best Seller), de Elliot Tiber, que foi a base do roteiro do filme "Aconteceu em Woodstock” (“Taking Woodstock”, 2009), de Ang Lee. Há, ainda, o registro do show quase inacreditável de Hendrix no encerramento do festival, lançado em DVD duplo.
“Jimi
Hendrix – Live in Woodstock” (Sony Music), que havia sido lançado nos
cinemas nos anos 1970, em versão reduzida de 80 minutos, agora
recebeu nova edição, com câmeras alternativas e uma versão
inédita da íntegra do show, filmado em sua sequência original, sem
cortes, com cada gesto e acorde do maior guitarrista de todos os
tempos entoando “Foxey Lady”, “Message To Love”, “Hey Joe”,
“Spanish Castle Magic” e “Lover Man”, entre outros clássicos
da era do rock.
O
documentário de Hendrix em Woodstock também inclui material bônus
exclusivo como as coletivas de imprensa com o guitarrista falando a
respeito do festival, entrevistas com os organizadores e muitas e
muitas cenas de bastidores. Numa das entrevistas, Hendrix faz
breves comentários sobre a infância e sobre sua avó materna,
descendente de índios Cherokee, que incutiu no jovem Jimi um forte
sentido de orgulho por seus ancestrais. Também recorda em poucas
palavras que descobriu a música aos 16 anos, quando ganhou de
presente um ukelele.
Aos
19 anos, no início de 1962, Hendrix alistou-se no Exército, em Fort
Campbell, Tennesse, e foi convocado para uma brigada de
paraquedistas. No exército ele descobriria a guitarra e receberia
dispensa médica pouco tempo depois do início do treinamento, após
fraturar o tornozelo em um salto. Nos bastidores, Hendrix recorda
suas primeiras experiências com a música e comenta que o som do ar
assobiando no pára-quedas, durante sua temporada em Fort Campbell,
foi uma das fontes de inspiração para seus solos na guitarra.
Aconteceu
em Woodstock
No
Festival de Cannes, em 2010, quando seu filme concorreu à Palma de
Ouro, Ang Lee explicou que sua proposta não foi reconstituir as
cenas históricas de Woodstock. "Este filme não é sobre rock.
É sobre o rito de passagem de um garoto que faz descobertas
importantes sobre sua família e sua sexualidade. Seria impossível
reconstituir a magia daquele palco. Para isso já existe o
documentário de Michael Wadleigh”, alertou Ang Lee, cineasta
taiwanês que ganhou notoriedade depois de "O Segredo de
Brokeback Mountain", de 2005. Em “Aconteceu em Woodstock”,
os lendários 32 concertos de rock nunca aparecem na tela. Em uma das
cenas, a multidão de mais de 500 mil pessoas que lotou os campos é
vista, mas somente à distância.
Aconteceu
em Woodstock: imagens
registradas
pelo fotógrafo Henry Diltz
foram
reproduzidas no álbum duplo
em
vinil duplo com uma seleção das
performances
do festival. Também
acima e abaixo, nas imagens em
preto e branco, três fotografias de
Baron Wolman; e cenas de banho
coletivo no lago da
fazenda de
Max Yasgur em cinco flagrantes
registrados por John Dominis,
Bill Eppridge e Barry Z. Levine
Enquanto Pete Fornatale, que era locutor de rádio na época do festival, reúne em seu livro dezenas de depoimentos de artistas e anônimos que viveram aqueles três dias de rock, no outro livro – que inspirou o filme de Ang Lee – Elliot Tiber, o inventor do Festival de Woodstock, revela os bastidores do evento que marcou uma geração. Até a realização do festival, Tiber lutava para evitar a falência do decadente hotel da família na pequena cidade de Bethel, no estado de Nova York.
Parecia uma missão impossível, pois a clientela que antes frequentava o local durante as férias havia descoberto a Flórida, os parques temáticos da Disney, e a indústria do turismo na região estava praticamente falida. O Festival de Woodstock, segundo Elliot Tiber, aconteceu quase por acaso. Para salvar o hotel dos pais da falência, ele concordou em oferecer o terreno para promover um show de bandas de rock e arrecadar algum dinheiro.
O festival mais lendário de todos os tempos foi realizado por insistência de quatro jovens que não tinham nenhuma experiência com nada parecido. Eram eles John Roberts, Joel Rosenman, Artie Kornfeld e Michael Lang. Roberts, o mais velho, tinha 26 anos e era herdeiro de uma farmácia e de uma pequena fábrica de pasta de dentes. Quando embarcou na ideia original dos quatro aventureiros de Nova York para realizarem um festival que misturasse exposição e venda de trabalhos manuais e música ao vivo, Elliot Tiber nem sequer imaginava as proporções gigantescas, sociais e históricas, que o Festival de Woodstock iria alcançar.
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. A viagem de Woodstock. In: Blog
Semióticas,
8 de dezembro de 2011. Disponível no link
https://semioticas1.blogspot.com/2011/12/viagem-de-woodstock.html
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