A
história de todas as sociedades que existiram até
os
nossos dias tem sido a história das lutas de classes.
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A
complexidade das questões que envolvem cotidianamente a corrupção
e os corruptores está em discussão em dois livros surpreendentes e
muito diferentes entre si. Um deles é “A Banalidade da
Corrupção – Uma forma de governar o Brasil”, escrito pela
professora Céli Regina Jardim Pinto, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. O outro foi publicado por um conhecido
fotógrafo de moda e publicidade que é sempre lembrado por seus
antológicos retratos de nudez das beldades da hora, há décadas, para a
revista "Playboy", para editoriais de moda e para campanhas publicitárias: Bob Wolfenson, um artista da fotografia
que sempre surpreende com investigações sobre novas possibilidades
da imagem, considerado e aclamado por muitos como um dos principais fotógrafos da América Latina.
O trabalho mais recente de Bob Wolfenson reúne um acervo de
20 fotografias que impressionam, tão belas quanto incômodas. No
livro "Apreensões" (editora Cosac Naify) o fotógrafo
paulistano reúne novos ângulos de enquadramento para realidades
tristíssimas e muito comuns aos olhos dos brasileiros. Os
novos "modelos" de Wolfenson são animais e conjuntos de objetos confiscados
pela polícia. Amontoados de metralhadoras e arsenais de munições
do Rio de Janeiro e de São Paulo, gaiolas em quantidade e pássaros
silvestres engaiolados, peles de onças e de répteis gigantescos do
interior do Mato Grosso, macacos de espécies em extinção em jaulas
minúsculas, centenas de máquinas caça-níqueis em um galpão de
Belo Horizonte, serras elétricas e profusões de telefones celulares
e aparelhos eletrônicos contrabandeados figuram nas fotografias que
misturam denúncia e arte.
São
imagens que lembram as naturezas-mortas da composição secular dos
grandes mestres das artes plásticas, mas que trazem em sua
composição elementos que provocam surpresa, revolta, impacto: são
imagens contundentes, nas quais o fotógrafo paulistano, que nasceu
em 1954 e começou na carreira aos 16 anos na Editora Abril, deixa
claro um fundamento central na arte de capturar imagens. Um
fundamento que fez seu trabalho ser reconhecido internacionalmente,
aclamado como um retratista de raro talento e um profissional destacado em vários gêneros da fotografia.
Como
lembra o deputado e publicitário Carlos Nader, na apresentação ao
livro, ao fotografar objetos e animais apreendidos pela polícia, Bob Wolfenson escancara um fundamento central da arte de capturar
imagens. "Ele nos lembra que a própria fotografia é, em sua
essência, também uma apreensão, uma captura. E quando nos coloca
como espectadores, diante de uma dessas apreensões duplicadas, abre
um estimulante jogo metalinguístico de reflexos. Apreendemos aquilo
que ele apreendeu do que foi apreendido. Apreendemos
exponencialmente", destaca Carlos Nader.
Nas palavras do próprio fotógrafo, o universo envolvido nessas imagens diz respeito a todos nós. "Mas elas não pretendem dar respostas, a não ser dividir uma certa apreensão", alerta Bob Wolfenson, em breve entrevista pelo telefone. O caminho percorrido para realizar essa espécie de inventário de uma certa tragédia brasileira foi longo e de difícil acesso – explica o fotógrafo, revelando que a ideia do trabalho surgiu em decorrência da infinidade e da frequência das apreensões policiais exibidas na imprensa.
Interdições de toda ordem
"Seria
impossível ficar indiferente à presença acachapante desses fatos
na vida de todos nós", destaca o fotógrafo. "No entanto,
essas notícias acabam por se naturalizar, ficam banais, repetidas, e
não nos chocam mais. O paradoxo do excesso de informação é
exatamente este: quanto mais vemos, menos enxergamos. Tornamo-nos
cegos de tanto vê-las".
Aula e demonstração de domínio técnico e composição para fotógrafos e profissionais das artes gráficas, as 48 páginas coloridas em papel duplo de "Apreensões", para além da aspereza do assunto, ainda reservam foco para aquilo que o pensador francês Roland Barthes classificou como "Punctum" – aquele emaranhado de impressões fortes, instantâneas e imprecisas que apenas as boas fotografias conseguem guardar e reproduzir.
As
dificuldades definiram a forma de cada uma das imagens, explica Bob
Wolfenson. "Tarefa paralela foi negociar com as autoridades. No
caminho deparei com juízes, policiais, fiscais e secretários de
Estado que se mostraram muito colaborativos. Obviamente encontrei
também interdições de toda ordem, justificáveis em face da
gravidade do assunto. Lidar com os meandros desses salvos-condutos
para chegar aos materiais apreendidos, na tentativa de que as imagens
fossem vistas não como prova de algo, nem muito menos como denúncias
veladas à inoperância ou elogios à eficácia do Estado, tudo isso
foi outra aventura”.
Reconhecido
como um dos principais fotógrafos em atividade no Brasil, Wolfenson
também confessa seu aprendizado durante a produção e captura das
imagens reunidas no livro “Apreensões”. “Durante o processo
tive várias surpresas: a grande diversidade de formato das
ampliações, por exemplo, não estava inicialmente prevista, mas
acabou sendo constituinte do trabalho, além de pessoas e situações
verdadeiramente incomuns. Ao ressignificar as apreensões através de
fotografias de materiais apreendidos e ampliá-las em formatos e
tamanhos pouco usuais para este assunto, acredito iluminar os
aspectos mais obscuros e menos visíveis destes eventos",
completa, com sabedoria.
Corrupção não é exclusividade do Brasil
Os
aspectos mais obscuros e menos visíveis da tão famigerada corrupção
também movem as reflexões em outro livro digno de nota. "A
corrupção não é exclusivamente um fenômeno brasileiro",
aponta Céli Regina Jardim Pinto, autora de “A Banalidade da
Corrupção – Uma forma de governar o Brasil”. No livro,
publicado pela Editora UFMG, a professora aborda a complexidade de
alguns gargalos da história recente que têm criado um território
vasto para a emergência de atos ilícitos na vida pública e em
significativas parcelas da elite brasileira.
Doutora
em Ciência Política e professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Céli Pinto aponta algumas das condições que
propiciam a corrupção no Brasil e porque, em determinados
contextos, a corrupção se tornou quase uma das formas de governar.
“A corrupção é um fenômeno complexo, que existe em todas as
sociedades: capitalistas, desenvolvidas, subdesenvolvidas,
socialistas, democráticas, autoritárias, totalitárias. Portanto, a
primeira observação importante que deve ser feita é que o problema
da corrupção não é uma exclusividade da política brasileira”,
alerta.
Confira,
a seguir, alguns trechos da entrevista que fiz por telefone com a professora Céli
Pinto e que foi publicada pelo jornal “Hoje em Dia” de Belo
Horizonte.
Existe
no Brasil uma cultura da corrupção?
Céli
Pinto – A corrupção manifesta-se com formas e
intensidade diferentes em cada sociedade. No caso do Brasil, vejo
como uma das características centrais da corrupção a
desvalorização da cidadania. Este foi um país em que as elites
dominantes por longos períodos da história não precisaram
construir o sentido de cidadania, não precisaram de um sentido de
igualdade cidadã para governar. Daí que se criou no país uma
cultura anti-cidadã, ou seja, uma busca pela diferença que permita
a todos que têm algum tipo de poder (e não precisa ser muito) ter
privilégios especiais e, o que é mais definidor, não cumprir a
lei. Digo no livro que este é um objeto de desejo no país, não
cumprir a lei, não ser pego e se achar importante por isto. Na minha
opinião, esta é a questão central e a mais complicada de ser
superada.
O
que mais agrava a corrupção? A disputa de poder entre os partidos,
os poderes político e econômico concentrados, as profundas
desigualdades sociais ou a pouca ou nenhuma noção de seus direitos pela
maioria da população brasileira?
Há
dois tipos de corrupção. Primeiro, tem aquela que acontece dentro
do Estado, e tem também aquela que acontece entre o setor privado da
economia e o Estado. A primeira tem sempre lugar na mídia. Já a
segunda, certamente a que envolve as maiores somas de recursos e
grandes negócios, não tem, para a mídia, o charme da primeira. Em
qualquer um destes tipos de corrupção a grande maioria da população
brasileira fica de fora.
Mas
em qualquer um dos casos, não é a forma como se faz política no
Brasil que tem grande responsabilidade na promoção de atos de
corrupção?
Sem
dúvida nenhuma. As eleições são caríssimas e precisam ser
financiadas com recursos privados ou com desvio de recursos públicos.
Por outro lado, o capitalismo no Brasil teve um grande arranque
durante o regime militar, quando se formaram grandes grupos
econômicos que passaram a monopolizar importantes áreas da economia
brasileira. Muitos destes grupos são atores influentes na economia,
ainda hoje, e agem dentro de uma lógica muito longe do que se
poderia chamar de lógica democrática.
Tem
sido um lugar comum o comentário de certos analistas da política
apontando que o Brasil nunca foi tão corrupto quanto é hoje. A
senhora considera que isto é um fato ou aumentaram as instâncias de
investigação?
É
muito difícil afirmar com alguma segurança se a corrupção é
maior hoje do que foi em governos anteriores. Houve muita corrupção
durante o governo militar, por exemplo, mas naquela época era
proibido denunciar ou admitir que ela existisse. E a imprensa não
podia e nem queria, na maioria das vezes, denunciar. Atualmente, a
Polícia Federal, o Ministério Público, entre outras instâncias,
têm se comportado como agentes do Estado e não do governo de
ocasião e isto tem sido fundamental e muito positivo.
Há
quem avalie que há também a intenção explícita de denunciar o
malfeito através de setores majoritários da imprensa...
A
imprensa quando investiga está fazendo seu papel. Mas quando a
imprensa parte para o denuncismo irresponsável e faz das denúncias um espetáculo, sem fundamento, está fazendo um triste papel.
No
livro “A Banalidade da Corrupção”, a senhora compara a
corrupção nos vários níveis de governo (federal, estadual e
municipal) com o tráfico de drogas, na medida em que não se pode
avaliar o montante do tráfico, pois só temos conhecimento das
negociatas que falharam. No entanto, o número de casos descobertos,
investigados, julgados e condenados não deveria extirpar o quase
“direito a ser corrupto”?
Acho
que não... Não acredito que a corrupção acabará no Brasil
colocando todos os corruptos na cadeia. Isto é uma ilusão. É como
dizer que não sabemos votar, que se escolhermos pessoas de bem para
os cargos de governo não haverá corrupção. Não existe nada de
genético na corrupção. O corrupto não nasce corrupto, ele se
torna corrupto. Portanto, temos de acabar com as condições de
emergência da corrupção. Evidentemente que o efeito demonstração
é fundamental. Quanto maior for o número de condenados pela
corrupção, quanto menos impunidade houver, maior será a
possibilidade da corrupção diminuir.
Há
uma luz no fim do túnel para enfrentar o problema da corrupção no
Brasil?
Certamente
há luz no fim do túnel, sou muito otimista em relação ao Brasil.
O país já tem uma formidável história de regime democrático de
mais de 20 anos. Temos de aprimorar a democracia, mais do que
aprimorar diria radicalizar a democracia. Estamos diminuindo as
desigualdades sociais, temos que paralelamente diminuir a
desigualdade de poder que há nesta sociedade. Quanto mais cidadãs e
cidadãos participarem da política em todos os níveis, quanto mais
abrangentes forem os temas discutidos publicamente, quanto mais a
agenda pública for decidida a partir de discussões também
públicas, quanto mais os partidos políticos deixarem de ser
dirigidos por oligarquias, quanto mais democrática for a sociedade
no sentido profundo da democratização da tomada de decisão, menos
poderes terão as elites que dominam o país.
Mas
conseguir isto no Brasil não parece ser uma tarefa fácil...
Não, não é mesmo. Você tem toda razão nessa ressalva, porque não é uma tarefa fácil de maneira nenhuma. Mas é possível e pode ser realizado muito mais
rapidamente do que o atual quadro deixa transparecer. E me parece que
este é o único caminho para enfrentar seriamente o problema da
corrupção no Brasil, sem espetacularização, sem indignados de
tarde de domingo.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Banalidade da corrupção. In: Blog
Semióticas,
27 de janeiro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/banalidade-da-corrupcao.html
(acessado
em .../.../…).
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