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24 de janeiro de 2024

Picasso na fotografia





A arte não tem passado nem futuro.

Tudo o que eu já fiz foi para o presente.

Pablo Picasso (1881-1973).  

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Pablo Picasso é homenageado em um dos mais importantes eventos mundiais de fotografia, o PhotoEspanha, festival anual com sede em Madri. A exposição de abertura do festival, instalada nas galerias do Fernán Gómez Centro Cultural de La Villa, reuniu um grande acervo de retratos de Picasso – talvez o nome mais importante e mais prestigiado da arte no último século, o artista que atravessou todos os estilos e todos os movimentos da Arte Moderna e se mantém como referência e influência marcante da Arte Contemporânea.

A homenagem, nomeada “Picasso na foto”, marca os 50 anos da morte do artista e traz uma seleção de imagens de suas últimas décadas de vida. Os retratos em exposição, que vêm dos arquivos do Museu Picasso de Barcelona e de coleções particulares, abordam os processos criativos e o tempo de lazer do artista – com os dois aspectos constantemente sobrepostos. São imagens que, em sua maioria, foram registradas por nomes que têm um peso incomparável na história da fotografia e do fotojornalismo, compartilhando as galerias da exposição com retratos do artista feitos por amigos e em família.

Entre os fotojornalistas que fizeram retratos de Picasso estão os maiorais do primeiro time como David Douglas Duncan, Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau, Brassai, Man Ray, David Seymour, Lucien Clergue, Willy Rizzo e Cecil Beaton, entre muitos outros. A exposição, que também inclui uma seleção de fotografias que Brigitte Baer reuniu no Catálogo Raisonné de gravuras e litografias de Picasso, depois da temporada no PhotoEspanha segue uma agenda itinerante por outros museus e galerias de diversos países, com curadoria de Emmanuel Guigon, que desde 2016 assumiu o cargo de diretor do Museu Picasso de Barcelona.






      



Exposição Picasso na Fotografia: no alto, Picasso

em foto de sua esposa Jacqueline. Acima, intervenção

de Picasso em foto do álbum de família em que ele

está à mesa com Édouard Pignon, Anna Maria Torra

e Madeleine Lacourière em outubro de 1958.


Também acima, Emmanuel Guigon, diretor do Museu

Picasso de Barcelona e curador da exposição aberta

no Festival PhotoEspanha, diante de um dos célebres

retratos de Picasso, feito por Robert Doisneau em 1952.

Abaixo, com o amigo Gustau Gili Esteve no ateliê de

Notre-Dame-de-Vie, em abril de 1969; e no encontro

com outro mestre,
Joan Miró, fotografados por

Jacqueline Picasso no ateliê em Mougins, em 1967





              




Um diário fotográfico


O acervo de retratos de Picasso no PhotoEspanha destaca especialmente os períodos de convívio do artista com três grandes fotógrafos que fizeram inúmeras visitas à intimidade de Picasso com a família e trabalhando no ateliê em Mougins, na Côte d’Azur, Sul da França, às margens do Mar Mediterrâneo. São eles o francês Lucien Clergue (1934-2014), que fez um diário fotográfico dos dias compartilhados com Picasso ao longo dos anos; o norte-americano David Douglas Duncan (1916-2018), que travou amizade com Picasso desde que se conheceram em 1956, no convívio muito próximo que se estendeu até 1962, quando Duncan publicou um célebre fotolivro sobre a intimidade do artista e seus processos criativos; e Robert Capa (1913-1954), que representa um capítulo à parte na trajetória de Picasso.

Não há como negar que os grandes fotógrafos têm papel importante na criação do mito de Picasso, mas o papel de Robert Capa foi decisivo. Os primeiros contatos entre o artista mais lendário da Arte Moderna e o mais importante fotógrafo de guerras aconteceram na década de 1930, quando Capa e sua companheira, a alemã Gerda Taro, registravam os combates da Guerra Civil Espanhola e os movimentos de resistência contra a repressão imposta pelo general Francisco Franco. Capa, que fundaria a célebre Agência Magnum em 1947, junto com Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, fez os contatos para a promoção de uma das obras mais importantes de Picasso, “Guernica”: foi por interferência de Capa que David Seymour fotografou Picasso em 1937 diante de sua obra monumental, assim que ela foi pintada, logo após o bombardeio genocida das tropas e aviões franquistas contra a vila espanhola.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

entre amigos, em foto de 1959 de Lucien Clergue,

ensaiando músicas com Paco Muñoz e o antiquário

Affrentranger em sua loja em Arles, na França;

e proseando com um motorista de táxi no

aeroporto de Nice, em foto de Lucien Clergue.


Abaixo, um visitante da exposição observa

um retrato de Picasso feito na casa do

artista em Vallouris, França, em 1952, por

Robert Doisneau; e Picasso e Jacqueline

dançando no ateliê da casa em que

viviam em Cannes, no verão de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan













Contador de histórias


Robert Capa e Cartier-Bresson também fotografaram por diversas vezes Picasso em seu quarto, no apartamento em que morava em Paris, na Rue des Grands-Augustins, e a todo vapor no ambiente de trabalho, durante a Segunda Guerra, e todos os biógrafos são unânimes em reconhecer que Capa, Cartier-Bresson e outros grandes fotógrafos ajudaram a disseminar imagens que popularizaram Pablo Picasso como um artista contador de histórias épicas, politizado e irreverente, viril, sedutor e bem-humorado, brincalhão, fumante de charuto, de bem com a vida e dândi, rudemente bonito, que se casou diversas vezes, teve quatro filhos com três mulheres e conquistou incontáveis e belas amantes – tudo contribuindo para a construção da narrativa histórica que levaria Picasso à prosperidade que outros artistas da época nunca alcançaram.

Durante e depois da Segunda Guerra, Capa compartilhava a intimidade de Picasso, e em 1948 passou uma temporada de férias no Mediterrâneo com Picasso e sua esposa da época, Françoise Gilot. Na temporada na praia com Picasso em família, Capa fazia testes com fotografias em filmes coloridos, uma novidade que ainda não estava disponível no mercado, e registrou retratos que estão entre os mais memoráveis na trajetória de Picasso, como o passeio de sombrinha na praia, com o artista descalço acompanhando sua musa (veja mais em Semióticas –Robert Capa em cores).









Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

no ateliê da casa em Cannes, em julho de 1957,

em fotografia de David Douglas Duncan;

e o criador diante da criatura, Guernica,

em fotografia de 1937 de David Seymour.

Abaixo, Picasso na intimidade de seu

apartamento na Rue des Grands-Augustins,

em Paris, em fotografia de 1944 de

Henri Cartier-Bresson;
e Picasso no

Hotel Vaste Horizon
em Mougins,
Côte d’Azur,

em fotografia de 1937 de sua musa Dora Maar











As musas do artista


As relações de Picasso com as mulheres sempre transparecem em sua obra: todas as musas, sejam amantes, namoradas ou esposas, foram registradas em pinturas, desenhos, esculturas (veja também Semióticas – Picasso em preto e branco). É como se cada uma delas houvesse inspirado uma certa obra-prima, algumas celebrizadas em obras radicais, outras com diversas variantes para o mesmo perfil. Entre todas, talvez nenhuma tenha a importância de sua mais famosa amante, Henriette Theodora Markovitch (1907–1997), mais conhecida pelo pseudônimo de Dora Maar. Intelectual, fotógrafa, poeta e pintora, Dora Maar era francesa descendente de croatas e viveu a infância e a juventude na Argentina. Sua influência foi tão importante para Picasso que foi ela quem ajudou o artista a planejar e pintar “Guernica”, entre outras obras-primas.

Dora e Picasso ficaram juntos por 10 anos, no período em que ele oficialmente esteve casado com Olga Khoklova e depois com Marie-Thérèse Walter, que tinha 17 anos quando se conheceram. Depois do término com Picasso, Dora Maar continuou a pintar, fotografar, escrever, afastada dos amigos e trabalhando em uma rotina de reclusão, mas permaneceu sem reconhecimento até sua morte, em 1997, aos 89 anos. Em 1999, finalmente foi organizada a primeira grande retrospectiva de seu trabalho, em Paris, e sua obra, inédita e surpreendente, aos poucos começou a ser valorizada.

Do primeiro casamento de Picasso, em 1918, com Olga Khoklova, bailarina nascida na Ucrânia, nasceu, em 1921, Paulo Picasso, seu primeiro filho. Em 1927, Picasso conhece Marie-Thérèse Walter, com quem teve em 1935 outra filha, Maya Picasso. A lista de musas, namoradas e amantes continuou a ganhar acréscimos, mas teve uma pausa em 1943, quando começa seu relacionamento com Françoise Gilot, que seria mãe de seus filhos Claude, nascido em 1947, e Paloma, nascida em 1949. O último casamento viria em 1961, com Jacqueline Roque, com quem Picasso viveu durante duas décadas, no período em que experimentou novas técnicas, novos materiais e novos suportes para sua arte, de 1953 até sua morte, em 8 de abril de 1973, aos 91 anos.







  


Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com sua primeira esposa, Olga Khoklova, no ano

em que se casaram, 1918. Abaixo, um desenho de

Picasso para registrar um encontro na intimidade

entre amigos em Paris, 1919: a partir da esquerda,

Jean Cocteau, Olga, Eric Satie e Clive Bell.


Abaixo, Picasso com mulheres importantes

em sua trajetória: com Marie-Thérèse Walter;

com os retratos de Dora Maar (em fotografia

de Brassaï em 1939); com Dora Maar e amigos

no ateliê em Mougins (a partir da esquerda,

Ady, Marie e Paul Cuttoli, Man Ray, Picasso

e Dora Maar), fotografados por Man Ray;

Dora Maar e Picasso
na Côte d’Azur, em 1937,

fotografados por Eileen Agar; e Picasso

com Françoise Gilot e Javier Vilato, seu

sobrinho, em foto de 1948 de Robert Capa













  




As formas apaixonadas


A lista extensa de musas e amantes de Picasso também inclui, entre as mais conhecidas, Fernande Olivier (com quem ele viveu de 1904 a 1912), Marcele Humbert (de 1912 a 1917), Lee Miller (de 1943 a 1945), Geneviéve Laporte (de 1944 a 1953) e Sylvette David (de 1954 a 1955), entre outras. O artista despertava a paixão de suas musas, e cada rompimento foi doloroso, porque ao que se sabe nenhuma delas nunca aceitou o fim do relacionamento. Os amores de Picasso e sua relação intensa com tantas musas e amantes não provocou grandes escândalos na época, mas têm gerado alguma polêmica nos últimos anos. A mais recente aconteceu em 2021, no embalo da publicidade internacional do movimento “Me Too”, contra o assédio sexual, quando professoras de história da arte e seus alunos fizeram um protesto no Museu Pablo Picasso de Barcelona, com a intenção de denunciar os relacionamentos abusivos do artista, mas sem grande repercussão.

Outras denúncias sobre comportamento abusivo na trajetória do artista e sua dominação “animalesca” sobre as mulheres com quem se relacionava são descritos por sua neta, Marina Picasso (filha de Paulo e neta de Olga Khoklova), no livro “Meu Avô, Pablo Picasso”, que desde o lançamento em 2001 foi um best-seller internacional. Marina, uma das privilegiadas herdeiras de Picasso, nasceu em 1950, em Cannes, e teve um irmão, Pablo, que cometeu suicídio aos 24 anos – segundo ela, por culpa e negligência do avô, que nunca quis dividir sua herança bilionária em vida e nunca se preocupou em dedicar sua atenção para os filhos e os netos.








Exposição Picasso na Fotografia: acima, Picasso

com os filhos Claude e Paloma, no verão de 1951,

em foto de Edward Quinn.; e Picasso com Claude

em 1954, assistindo a uma tourada em Vallouris,

França, em fotografia de Jean Meunier.

Claude Picasso morreu em 2023, aos 76 anos.


Abaixo, Picasso na praia, em Cannes, 1965,

em fotografia de Lucien Clergue; e no ateliê,

em 1955, fotografado por Edward Quinn. No final

da página, a capa do livro de Marina Picasso,

que foi lançado em 2001, e dois retratos de

Picasso por Robert Capa: na praia, em 1948,

e fumando, na casa de Vallauris, em 1949




                 



      



Contradições bilionárias


No livro, Marina Picasso relata: “Minha avó Olga, humilhada, manchada, degradada por tantas traições, acabou sua vida paralisada, sem que meu avô fosse uma única vez vê-la no seu leito de angústia e de desolação. No entanto, ela tinha abandonado tudo por ele: o seu país, a carreira, os sonhos, o seu orgulho”. Olga nunca aceitou o divórcio de Picasso e, oficialmente, permaneceu casada com ele até morrer, em 1955. Criador de uma obra extensa e das mais valiosas entre todos os acervos do mundo da arte, Picasso morreu sem deixar testamento. Seus bens e obras foram divididos entre os quatro filhos em 1974, por um acordo judicial.

Em todos os sentidos, a nova exposição confirma que Picasso é um caso único. Ele trabalhou intensamente na arte, da infância à velhice, e deixou uma quantidade impressionante de obras surpreendentes, mas a amostragem das fotos que registra sua trajetória revela algo mais do que o artista em ação, em seu ateliê ou nas pausas em momentos de lazer: são imagens que traduzem a vida e as contradições de Picasso em pequenos fragmentos. Sua importância para a arte e a cultura do século 20 é inquestionável, assim como sua interminável paixão pela criação. Apesar disso, Picasso é um artista que divide opiniões e sua reputação muitas vezes precede a sua arte. Talvez por estes detalhes a exposição de sua presença marcante em décadas da história da fotografia traz mais perguntas do que respostas, mas não há como negar que sua relação com a câmera foi, antes de tudo, um veículo – uma estratégia para perpetuar sua própria autoimagem cuidadosamente construída, tão grandiosa quanto mítica.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Picasso na fotografia. In: Blog Semióticas, 24 de janeiro de 2024. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2024/01/picasso-na-fotografia.html (acessado em .../.../…).


 
Para uma visita à exposição Picasso na PhotoEspanha, clique aqui.


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1 de fevereiro de 2022

Arte negra nas Américas






A história da escravidão africana na América é um abismo

brutal de degradação e miséria que não se pode sondar....

–– Joaquim Nabuco (1849-1910).  
   


Resumindo: é um evento que não tem a pretensão de constituir um inventário completo sobre a abrangência do assunto nem de propor uma história da arte revisada com foco na obra de afro-americanos. Mas é uma novidade em sintonia com os novos tempos. Trata-se de uma exposição inédita apresentada na Universidade Pepperdine em Malibu, na Califórnia, reunindo obras e documentos que narram conquistas e contribuições de artistas afro-americanos nos últimos seis séculos – tanto nos Estados Unidos como em alguns países de América Latina. A exposição “The Cultivators: Highlights from the Kinsey African American Art & History Collection” (Os cultivadores: destaques da coleção de arte e história afro-americana de Kinsey), com curadoria de Khalil Kinsey e Larry Earl, está aberta no espaço mais nobre da universidade, o Frederick R. Weisman Museum of Art, e prossegue até 27 de março, quando terá agenda itinerante por instituições nos Estados Unidos e outros países.

Na interseção da arte e da história, a exposição cobre a vida, a produção cultural e as realizações de um grupo representativo de afro-americanos desde o século 16 até os tempos recentes, incluindo obras e ações relacionadas à Proclamação da Emancipação dos cidadãos mantidos em escravidão, assinada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln (a escravidão tornou-se ilegal nos Estados Unidos através da aprovação da 13ª Emenda Constitucional em 1865); às mobilizações contra o racismo e contra o linchamento de negros no decorrer do século 20; às mobilizações pela igualdade com o Movimento dos Direitos Civis na década de 1960; e aos recentíssimos eventos do Black Lives Matter (Vidas negras importam) iniciados nos Estados Unidos desde 2013 com multidões em protestos contra a violência direcionada às pessoas negras. Em uma iniciativa que permanecia inédita no circuito de museus e galerias de arte, a exposição na Universidade Pepperdine celebra somente artistas afro-americanos, oferecendo uma contra-narrativa crucial ao colocá-los no centro, e não nas margens, da história norte-americana.












Arte negra nas Américas: no alto, Untitled, pintura
em óleo sobre tela de 1951 de Hughie Lee-Smith.
Acima, fotografia de Earnest Whiters de 1968 faz
um registro histórico da marcha em homenagem ao
pastor batista Martin Luther King Jr., liderança política
e ativista dos Direitos Civis que foi assassinado em abril
de 1968 em Memphis, Tennessee. Também acima,
"Primeiro voto", aquarela em policromia de
Gayle Hubbard na primeira página do jornal
"Harper's Weekly", de Nova York, na edição histórica
de 16 de novembro de 1867, que registrou a primeira
eleição nos EUA com pessoas negras na condição
de eleitores; e uma fotografia de Bernard Kinsey
em seu escritório de trabalho.

Abaixo, a família Kinsey: Bernard, Shirley e o filho do
casal, Khalil, atual curador e diretor da Fundação Kinsey;
e The Cultivators, pintura em óleo sobre tela de 2000
de Samuel Dunson que faz homenagem ao trabalho
dos Kinsey e que dá título à exposição aberta na
Universidade Pepperdine. Todas as imagens desta
postagem fazem parte do catálogo da exposição









A história da arte negra na América do Norte, assim como em toda a América Latina, e também em outros continentes, surge como uma história de resistência contra a violência, contra a opressão e contra o sofrimento das populações capturadas e negociadas no continente africano e levadas à força para o trabalho escravo do outro lado do oceano Atlântico. No informe sobre a exposição, a curadoria destaca a expressão “mito da ausência”, usada pelo historiador Lerone Bennett Jr. (1928-2018), que se dedicou a pesquisas sobre as relações raciais nos Estados Unidos, para se referir aos capítulos da história que tiveram afro-americanos como protagonistas e que foram por muito tempo ignorados.

A expressão "mito da ausência" é aplicada cada vez com mais frequência nos estudos acadêmicos, na educação e nas ciências sociais, como referência ao mascaramento do preconceito racial, pois tal mascaramento também configura uma prática racista de exclusão pelo "apagamento". O mito da ausência tornou invisível a trajetória de muitas gerações de artistas – que permaneceram anônimos em sua época e surgem agora, anos depois, ou décadas e séculos, em muitos casos, com obras que provocam impacto e impressionam. Pode-se reconhecer que foram silenciados, perdidos, roubados, humilhados, ignorados, deixados para trás, mas não esquecidos. Entre os artistas selecionados estão, entre outros, Ernie Barnes, John Biggers, Bisa Butler, Elizabeth Catlett, Robert Duncanson, Sam Gilliam, Jacob Lawrence, Norman Lewis, Augusta Savage, Laura Wheeler Waring, Lois Mailou Jones, Henry Ossawa Tanner, Alma Thomas, Hughie Lee-Smith, Romare Bearden e Charles White.











Arte negra nas Américas: no alto, Mulher vestindo
lenço laranja
, pintura 
em óleo sobre tela de 1940
de Laura Wheeler Waring. Acima, Duas mulheres
africanas
, desenho em técnica mista sobre pergaminho de
1942 de autoria de Eldzier Corter. Abaixo, Gamin Gamin,
escultura em bronze de 1930 de Augusta Savage;
e um retrato do escritor James Baldwin desenhado
por Romare Bearden em Paris, por volta de 1950,
quando Bearden foi um dos primeiros negros dos
Estados Unidos a frequentar como aluno os ateliers
de mestres como Brancusi, Giacometti e Matisse










Arte e resistência


A maioria dos artistas reunidos no acervo em exposição têm, pela primeira vez, destaque por sua produção artística, e poucos estão registrados nos livros didáticos de história e nos compêndios de história da arte. Vale lembrar que somente na década de 1980 um primeiro negro conquistou pleno reconhecimento nas artes plásticas nos Estados Unidos – ele foi Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nascido em Nova York com ascendência porto-riquenha por parte de mãe e haitiana por parte de pai. Quatro décadas depois da revelação que foi Basquiat, o acervo de peças originais agora reunido, com pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, estamparias e obras em suportes variados de madeira, papel, tecido e pedrarias, é celebrado e contextualizado por meio de documentos históricos, cartas e manuscritos garimpados em diversas instituições, livros raros e fotografias que contam a história das lutas, da resistência e da perseverança afro-americanas.

A extensa e variada seleção de obras de arte negra, na verdade, é uma monumental coleção particular: a coleção de arte da família Kinsey, iniciada na década de 1960, e que só agora ganha sua primeira grande retrospectiva. Todo o acervo também está reunido em um catálogo ilustrado da coleção e da exposição na Universidade Pepperdine. Quando o empresário Bernard Kinsey e Shirley Kinsey se casaram em 1967, depois de se conhecerem como estudantes na Universidade da Flórida, o casal estabeleceu a meta de visitar 100 países diferentes durante sua vida juntos. Enquanto viajavam e exploravam outros países e culturas, começaram a colecionar arte, documentos e artefatos de história da América como lembranças preciosas das experiências de viagem. À medida que a coleção crescia, eles perceberam que havia tantos aspectos sobre sua própria herança cultural que nem eles nem outros pesquisadores conheciam e que as peças reunidas tinham um grande valor não apenas como raridades, mas também como uma expressão legítima da presença e da importância dos afro-americanos na arte e na cultura.











Arte negra nas Américas: acima, Charleston,
South Carolina, aquarela
 datada de 1936 de
Ellis Wilson; e Brincadeira de criança,
aquarela com data de 1950 de Aaron Douglass.

Abaixo, Mt. Tacoma from Lake Washington,
pintura em óleo sobre tela com data de 1885 de
Grafton Tyler Brown; e uma gravura publicada
em 1863 pelo Harper's Weekly com o título
"Os efeitos da proclamação: negros libertos
entrando em nossa jurisdição em
Newbern, North Carolina"


 
 


           


            



Conquistas históricas


A paixão do casal Kinsey pela história, pela cultura e pelos até então desconhecidos artistas negros das Américas os levaria a criar a Bernard and Shirley Kinsey Foundation for Arts and Education, com foco em iniciativas para o desenvolvimento da história e da cultura afro-americana, incluindo arquivos, programas de pesquisa, bolsas de estudo, edição de livros, eventos e apoio a várias instituições, entre elas a Rosa Parks Foundation. A valiosa e incomparável coleção de arte e história afro-americana do casal Kinsey, agora gerenciada por seu filho Khalil Kinsey, curador da fundação e da exposição, celebra as conquistas e contribuições dos negros americanos desde antes da formação dos Estados Unidos até os tempos atuais.

Se você quer mudar uma pessoa”, anuncia uma frase do patriarca Bernard Kinsey destacada no informe sobre a exposição, “a primeira coisa que você deve fazer é mudar sua consciência de si mesma, começa com sua consciência. A Coleção Kinsey se esforça para dar voz, nome e personalidade aos nossos ancestrais, permitindo que o espectador entenda os desafios, obstáculos, triunfos e sacrifícios extraordinários dos afro-americanos.” Khalil Kinsey acrescenta: “Esta é uma história de família, ilustrando o que uma família fez para contar sua história. Mas também é sobre a América. Porque a maioria das pessoas só conhece metade da história.”







Arte negra nas Américas: acima, gravura em
litografia de 1863 retrata um regimento voluntário

de soldados negros em Camp William Penn, na
Pensilvânia, em treinamento para combater as
tropas de confederados dos estados escravagistas
do sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil
ou Guerra de Secessão. Abaixo, litografia de 1872
registra os integrantes da primeira bancada de políticos
de ascendência afro-americana no Congresso dos
Estados Unidos, todos eles nascidos na escravidão.
Também abaixo, Hiram Rhoades Revels, o primeiro
cidadão negro a ser eleito para o Senado dos EUA,
em fotografia de 1870 feita por Mathew Brady;
e uma família de mulheres afro-americanas em
um daguerreótipo anônimo datado de 1855




      


 





Quebrando estereótipos


Além dos artistas que surgem com suas obras-primas na condição de obras inéditas para a maioria dos estudiosos e do público, contribuindo para dissipar mitos e quebrar preconceitos e estereótipos, há também na exposição documentos que registram momentos emblemáticos da história. Os destaques incluem documentos bizarros para os padrões atuais, como notas de venda, anúncios, cartas e certidões em manuscritos para o comércio de escravos. Há também raridades que são marcos da história da literatura e da imprensa, como livros e revistas originais com letras coloridas à mão da época da Guerra Civil; exemplares poucos conhecidos da arte, da música e da literatura do Harlem Renaissance, quando o bairro ao norte de Manhattan teve seu apogeu para a cultura negra (do começo do século 20 até o final da década de 1930); e itens que destacam personalidades e momentos-chave no Movimento dos Direitos Civis, a partir da década de 1960, incluindo panfletos originais, documentos e muitas fotografias que permaneciam inéditas.













     
   


Arte negra nas Américas: no alto, Quatro vacas
no campo, pintura em óleo sobre tela de 1893 de
Edward Mitchell Bannister. Acima, uma Paisagem
em pintura em óleo sobre tela de 1865 de
Robert S. Duncanson; e Porto, pintura de 1940 de
Allan Randall Freelon. Abaixo, litografia em base de
madeira de 1953 de Charles White com o título de
Cantor popular (Folk singer). Também abaixo,
Faces do meu povo, xilogravura de 1990 de
Marlon Burrows, seguida de Mãos do campo,
pintura em óleo de 1988 de Johnathan Green;
e Corredor na praia, pintura em tinta acrílica
de 1997 de Ernie Barnes






Além da beleza comovente de pinturas, gravuras, esculturas e desenhos de autores que estavam, em sua maioria, há muito tempo no anonimato, entre as raridades da coleção Kinsey, apresentadas no extenso acervo em exposição, também estão cartas e manuscritos pela primeira vez divulgados de lideranças políticas e personalidades como Martin Luther King Jr., James Baldwin, Malcolm X e Alex Haley, entre outros. Há ainda os registros cartoriais mais antigos de que se tem notícia sobre a presença e a atuação de afro-americanos nos Estados Unidos, incluindo uma certidão de batismo de uma criança negra e uma certidão de casamento civil de um casal negro, ambas do século 18.

Entre as raridades sobre literatura estão documentos em suas versões originais, com destaque para um exemplar recentemente descoberto da primeira edição de 1773 de poemas de Phillis Wheatley, primeira pessoa afro-americana a ter um livro publicado; e a primeira edição de 1853, completa e encadernada, de “12 Anos de Escravidão”, do autor Solomon Northrup, livro que em 2013 foi transformado no filme de mesmo título. Northrup, nascido livre em Nova York, em 1808, vivia com sua esposa e filhos quando foi sequestrado e acorrentado em 1841 por mercadores de escravos e vendido para fazendeiros da Louisiana, onde ficou cativo para trabalhos forçados em fazendas de cultivo de algodão e cana de açúcar. Em 1853, quando finalmente foi libertado, Solomon Northrup retornou para a família em Nova York e publicou seu relato dramático em livro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Arte negra nas Américas. In: Blog Semióticas, 1º de fevereiro de 2022. Disponível em https://semioticas1.blogspot.com/2022/02/arte-negra-nas-americas.html (acessado em .../.../…).


Para uma visita virtual à exposição na Universidade Pepperdine,  clique aqui.








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