A
Bíblia é um drama mundano e o mundo é uma parábola religiosa.
–– Marc
Chagall (1887-1985). ........... |
Arte e Religião sempre estiveram muito próximas –
desde o mais remoto da experiência humana. É desta constatação
que parte Walter Benjamin em seu ensaio fundamental “A obra de arte
na época de sua reprodutibilidade técnica”, publicado pela
primeira vez em 1936, para destacar que as mais antigas obras de arte
surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois
religioso. Benjamin, passo a passo com importantes historiadores e
filósofos dos últimos séculos, aponta que as relações entre Arte
e Religião conduziram a vida em sociedade em uma simbiose por vezes
implacável, fortalecida em momentos capitais como o Renascimento e,
posteriormente, com o Barroco.
Arte e Religião também se fundem nas obras-primas de
alguns dos grandes artistas no último século – com um
florescimento dos mais especiais na obra de Marc Chagall,
um dos artistas incomparáveis do século 20. Considerado por muitos o
maior de todos os mestres da cor na Arte Moderna, pintor, ceramista,
gravurista, artista gráfico, desenhista e com uma trajetória que
sempre buscou novos suportes e formatos para a arte, Chagall está
recebendo uma grande celebração na Espanha com a abertura de uma
mostra retrospectiva inédita sobre sua extensa obra com temática de inspiração
religiosa.
Intitulada “Chagall. Divino y Humano”, a exposição
está aberta ao público na Fundação Canal (veja link para uma
visita virtual no final deste artigo), em Madri, reunindo mais de uma
centena de obras originais em técnicas de litografia, xilogravura e
gravura, incluindo obras sobre papel, criadas entre as décadas de
1940 e 1980. Com curadoria a cargo de Ann-Katrin Hann, conservadora
chefe do museu Pablo Picasso de Münster, que tem sede na Alemanha e
de onde vêm muitas das obras reunidas na exposição, “Chagall.
Divino y Humano” lança luzes sobre esta que talvez seja a parte
mais evidente e também menos estudada sobre o grande mestre da cor.
Judeu da Bielorrússia
Sempre lembrado e homenageado por sua pintura de formas alegóricas e multicoloridas em óleo sobre tela, Marc Chagall
também merece lugar de destaque entre os principais artistas
gráficos do século 20 – como comprova o recorte temático sobre
suas obras-primas de inspiração religiosa reunidas em Madri. Com
frequência rotulado como “surrealista”, por conta de sua obra
difícil de classificar, só comparável a outros grandes mestres e
pontuada de referências oníricas, Chagall nasceu em Vitebsk, nordeste da Bielorrússia, no antigo Império da Rússia, em uma
família de fortes tradições judaicas – detalhe biográfico que
ilumina a interface religiosa tão presente em sua obra.
Na juventude, uma década antes da Revolução Russa de
1917, Marc Chagall era um aluno dedicado e promissor da tradicional
Academia de Arte de São Petersburgo quando uma bolsa de estudos para
duas semanas em Paris mudou radicalmente o destino. Na capital da
França, depois de entrar em contato com os artistas e escritores das
vanguardas, Chagall decidiu não retornar à Rússia no prazo
previsto. Encantado com as experiências radicais dos movimentos
modernistas e com a vida boêmia de Montmartre, permaneceu por anos
em Paris, onde tornou-se amigo de nomes como Picasso, Kandinsky,
Cendrars, Modigliani e, especialmente, Guillaume Apollinaire.
Nesta época surgem suas primeiras obras produzidas
sob a inspiração dos novos amigos de vanguarda – três pinturas
em óleo sobre tela de 1911 que foram batizadas por Blaise Cendrars:
“Moi et le Village” (Eu e a Vila), “Le soldat boit” (O
soldado bebe) e “La Pluie” (A Chuva). Depois de Cendrars, foi Appollinaire quem
assumiu o papel de mentor do jovem Chagall, sendo o primeiro a
destacar o talento do estreante entre os grandes da Arte Moderna –
e também foi Appollinaire quem selecionou obras do jovem quase
desconhecido para uma importante mostra das vanguardas em Berlim, em
1914, pouco antes da explosão da Primeira Guerra Mundial. A guerra
na Europa forçou o retorno de Chagall a seu país, onde ele se
casaria com Bella Rosenfeld, que conheceu quando ainda era
adolescente em sua aldeia.
Comissário para as Belas Artes
Bella, segundo os biógrafos, foi o grande amor de
Chagall e sua inspiração da vida inteira. Com a Primeira Guerra
mudando rapidamente o cenário da Europa, vem a Revolução de 1917
na Rússia e novos desafios para Chagall, que foi nomeado comissário do povo
para as Belas Artes em sua cidade natal Vitebsk. Empossado no cargo oficial, Chagall teve a
iniciativa de inaugurar a primeira escola de Arte Moderna na Rússia
– com a meta de que ela estivesse aberta à variedade das
tendências modernistas que conheceu em sua temporada na França.
Porém, desentendimentos com outro gigante das vanguardas, Kasimir
Malevich, levaram Chagall a desistir do cargo e a voltar em definitivo para Paris.
Sagrado
e Profano em Chagall:
acima,
os amigos Pablo Picasso e
Marc
Chagall em 1955, em St. Paul
de
Vence, França, fotografados por Philippe
Halsman; e Chagall no ateliê em Paris, em 1934, em fotografia feita no processo de autochrome por Roger Violett. Abaixo, uma pintura em
óleo sobre tela de 1938 com tema bíblico,
La
crucifixion blanche (A crucificação branca), e La résurrection, aquarela sobre papel de 1948. Também abaixo, uma seleção de três imagens da série de gravuras
produzidas sob encomenda para ilustrar
edições da Bíblia Sagrada e apresentadas na exposição em Madri: Moisés
e a Serpente (1956); Moisés e
as Tábuas Sagradas (1952);
e A
Crucificação (1952)
|
O trabalho fantástico e colorido de Chagall, que talvez
somente encontre paralelos em alguns poucos de seus contemporâneos –
especialmente no espanhol Pablo Picasso, no francês Henri Matisse e
em outro russo, Vassily Kandinsky – avançou para outras técnicas, outros suportes, depois de suas primeiras experiências com pintura em óleo
sobre tela nos movimentos de vanguarda do início do século
passado. A partir da década de 1920, passaria também a incluir em
seu trabalho as ilustrações, desenhos e gravuras produzidos sob
encomenda para reprodução em livros e revistas.
Nesta dedicação às ilustrações e artes gráficas
sob encomenda, a Bíblia Sagrada iria ocupar um lugar de destaque. De
1931 a 1939, Chagall criou 66 gravuras sobre temas bíblicos,
encomendadas pelo comerciante de arte e editor francês Ambroise
Vollard – mas o trabalho foi interrompido quando explodiu a Segunda
Guerra Mundial. Com a tomada da França pelas tropas nazistas de Adolf Hitler, Chagall parte em 1942 para o exílio nos Estados Unidos.
Desde a década de 1930, com a perseguição aos judeus pelo Nazismo,
sua obra já havia incorporado a questão política em tons sombrios:
judeu convicto, Chagall começou a denunciar com sua arte as tensões e depressões
sociais e religiosas que sentia na pele. Assim que a guerra foi deflagrada, em 1939, o regime Nazista classificou oficialmente as obras de Chagall como “arte degenerada”.
Folclore, sonhos, fragmentos do real
De
volta a Paris, depois da Segunda Guerra, Marc Chagall concluiu a série
sobre a Bíblia que soma 105 trabalhos incomuns, sempre com animais e
figuras circenses, festivas, mais humanistas do que exatamente
“religiosas”. Da série sobre a Bíblia, 20 figuras estão na
exposição em Madri – entre elas “Moisés e a Serpente” (1956), “Da Criação do Homem” (1958) e “A Crucificação” (1952). Das centenas de ilustrações e artes
gráficas produzidas sob encomenda por Chagall, também estão
reunidas na mostra gravuras de várias edições sobre as Fábulas de
La Fontaine e 15 das 96 ilustrações em preto e branco da série
“Les
Âmes
Mortes”, criada para ilustrar o romance “Almas Mortas”, de
Nikolai Gogol, publicado pela primeira vez em 1848 e considerado
uma das obras mais marcantes da literatura russa do século 19.
Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.
Chagall começou a trabalhar nas ilustrações para as cenas e personagens de “Almas Mortas” na década de 1920, mas o projeto foi adiado com a morte do editor Ambroise Vollard e a publicação só se concretizou em 1948, com o lançamento de uma luxuosa edição comemorativa do centenário do livro de Gogol. A edição, com pouco mais de 300 exemplares, que se tornaria uma obra de arte disputada por colecionadores e museus do mundo inteiro, foi patrocinada pela casa editorial Tériade, fundada pelo grego Stratis Eleftheriades. A colaboração entre Chagall e Tériade deu origem a cinco livros ilustrados com litografias e gravuras que são apontados com frequência como marcos das artes gráficas na segunda metade do século 20: são eles, além de “Almas Mortas”, as “Fábulas de La Fontaine” (1952); a “Bíblia Sagrada” (1956); o romance “Dáfnis e Cloé” (1961), do escritor grego Longo, que viveu no século 2 antes de Cristo; e “Circus”, coleção de gravuras, pinturas e desenhos de Chagall sobre a temática do circo, publicado em 1972.
Outras
vertentes de temática com inspiração religiosa na obra extensa de
Chagall estão representadas em Madri através de fotografias –
caso dos objetos em cerâmica, das tapeçarias, das séries em
vitrais, dos mosaicos e dos painéis murais que produziu para
catedrais e sinagogas na França (incluindo o design, pinturas e detalhes em relevo do novo teto para a Ópera
de Paris, em 1964), nos Estados Unidos e em Israel, sob encomenda
para a Universidade Hebraica e o Parlamento de Jerusalém, entre vários outros trabalhos – além
dos projetos de cenários, figurinos e adereços que desenvolveu para
espetáculos de teatro e balé. O resultado é uma fascinante
policromia que une, fora de qualquer contexto racional, fontes
folclóricas, citações religiosas, lembranças, cenas oníricas, premonições, fragmentos
do real – em abordagens que ainda hoje impressionam.
Se
um artista como Marc Chagall combina tão bem, como poucos, o
divino, o mito, as tradições, muitos poderiam esperar que ele fosse
alguém muito apegado à religião – mas não era. Chagall sempre
declarou que nunca foi um homem religioso nem devoto ou praticante de
nenhuma fé específica, e sim muito preocupado com o transcendente
em cada experiência vivida e com a liberdade para todas as
religiões. Tal distanciamento sobre os dogmas e doutrinas por certo contribui para que a arte personalíssima de Chagall encontre alegorias, analogias e equivalentes visuais que traduzem de forma surpreendente os textos bíblicos em suas metáforas, hipérboles, parábolas.
“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.
“O artista verdadeiramente grande busca o universal que está presente em todas as práticas da fé” – assinala uma das frases de Chagall, afixada na abertura da mostra em Madri, que de certo modo contribui para que o observador, seja ele laico ou religioso, possa penetrar na essência do que o imaginário do artista representa em relação a questões do sagrado e também do profano. Em outra frase, também destacada na exposição, Chagall afirma que “a Bíblia é um drama mundano e o mundo uma parábola religiosa”.
O
acervo de Chagall apresentado na Fundação Canal, com um ambiente
cenográfico que reproduz o interior de uma sinagoga, está dividido
em três seções. Na primeira, “Divino e Humano”, obras de diversas séries e fases do
artista fundem a profundidade humana de seus autorretratos e a
alegria do mundo do circo a cenas religiosas, expressando tanto suas memórias da terra natal quanto referências diretas e indiretas ao Antigo e ao Novo
Testamento – tema de tal recorrência e abrangência na arte
produzida por Chagall que levou a França a homenageá-lo com a
criação do Museu da Mensagem Bíblica de Marc Chagall, instalado
desde 1973 na cidade de Nice. Na segunda, “Almas Mortas”, cenas,
tramas e personagens do romance de Nikolai Gogol estão representados em um apelo onírico
e monocromático que mistura e revela, em matizes de papel envelhecido que vão do negro
ao cinza, camponeses, rabinos, estalagens, artistas de circo e vacas que tocam
violinos.
Na
terceira seção, dedicada às ilustrações criadas sob encomenda de Ambroise
Vollard para as edições da Bíblia Sagrada,
as referências judaicas e cristãs de Chagall dividem o mesmo espaço
pictórico, construindo uma iconografia completamente diferente
daquela construída pela tradição do Ocidente deste a Idade Média.
Em imagens sempre instigantes e surpreendentes, Chagall traduz
versículos sobre passagens, profetas, patriarcas, mas deixa à
margem representações mais conhecidas como Adão e Eva, Abel e
Caim, Babel, as parábolas de Cristo, entre outras, para destacar aspectos menos
reverenciados pelos artistas que o precederam. Não por acaso, um verso extraído de um poema que ele
dedicou a sua amada Bella na década de 1920, citado na última seção
da exposição em Madri, define à perfeição sua obra de inspiração
religiosa, criativa e visionária, tão estranha quanto particular e
incomparável: “Como Cristo, estou crucificado, pregado ao
cavalete...”
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Sagrado e Profano em Chagall. In: Blog
Semióticas,
23 de março de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/03/sagrado-e-profano-em-chagall.html
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