A geometria fractal não é apenas mais um capítulo
da matemática e sim uma habilidade da percepção que ajuda
o homem comum a ver o mundo de maneira diferente.
–– Benoît Mandelbrot (1924-2010).
Única mulher na equipe de trabalho de Oscar Niemeyer para a construção de Brasília, Marianne Peretti morreu aos 94 anos, no dia 25 de abril, deixando um acervo grandioso de uma forma de arte pouco cultivada no Brasil: os vitrais. As obras mais importantes do vitral no patrimônio histórico e artístico brasileiro foram criadas por Marianne Peretti, com destaque para os conjuntos de vitrais do Plano Piloto da Capital Federal, nos prédios da Catedral de Brasília, da Câmara dos Deputados, do Panteão da Pátria, do Superior Tribunal de Justiça, do Palácio do Jaburu e do Memorial JK, entre outros, incluindo obras em capitais de outros estados do Brasil e no exterior.
Marianne Peretti também se dedicou à criação de centenas de murais e esculturas, instalados no Brasil e em outros países, principalmente em cidades da França e da Itália. Filha da modelo fotográfica francesa Antoinette Louise Clotilde Ruffier e do historiador pernambucano João de Medeiros Peretti, Marie Anne Antoinette Hélène Peretti nasceu em Paris, onde teve sua formação técnica e acadêmica em artes plásticas. Veio de mudança definitiva para o Brasil em 1953, depois de seu casamento com Henry Albert Gilbert, um cidadão inglês que trabalhava em São Paulo e que conheceu em uma das várias viagens de navio que fazia, nas idas e vindas entre o Brasil e a França, para visitar a família.
Fractais de Marianne Peretti: no alto da página, a Catedral de Brasília, com a estrutura dos vitrais da artista Marianne Peretti, considerada por pesquisadores internacionais uma obra-prima do vitral no século 20. Também acima, o interior da Catedral de Brasília; duas fotografias da artista, planejando os vitrais no interior da catedral e em fotografia de 1965, na época em que participou da Bienal de São Paulo; e em uma visita à catedral no ano de 2015. Abaixo, Marianne Peretti na última visita que fez a Brasília, em dezembro de 2021, fotografada diante de sua obra "O lago dos peixes", no Museu do Senado, um painel em vidro criado e instalado em 1978 |
Um ano antes da mudança para o Brasil, a artista fez sua primeira exposição individual, apresentada na Galerie Mirador da Place Vendôme, em Paris, em 1952, e contando na abertura com a presença ilustre de um de seus admiradores, Salvador Dalí. Em seus depoimentos para o estudo biográfico “A ousadia da invenção” (Edições SESC e Editora B52, de 2015), o primeiro livro dedicado à artista, organizado por Tactiana Braga e Laurindo Pontes, que catalogou cerca de 600 trabalhos de sua autoria, Marianne Peretti reconhece e destaca a importância da longa parceria com Oscar Niemeyer, que deu origem a mais de 20 trabalhos em Brasília, todos integrados de forma harmoniosa aos projetos arquitetônicos na estética e na funcionalidade.
Harmonia e funcionalidade
A arte de Marianne Peretti também trouxe uma contribuição conceitual para o cânone da arquitetura: com a concepção inovadora de seus vitrais, a força criativa da artista confronta os preceitos da arquitetura modernista que zelam pela autonomia estética dos meios construtivos. Segundo tais preceitos, a integração de esculturas, pinturas, murais e vitrais com a estrutura concreta das obras arquitetônicas nunca alcança resultados convincentes. Porém, a arte de Marianne Peretti comprova, na prática, que matérias-primas inovadoras, aliadas à criatividade nas formas e cores, podem conviver em harmonia e até mesmo ampliar a funcionalidade na engenharia e na arquitetura dos projetos.
Formada a partir de uma variedade de materiais que inclui, além do vidro e da fibra de vidro, resinas, tinturas, bronze e outros metais, a arte do vitral de Marianne Peretti retoma a tradição que teve início a partir do ano 1000, em culturas orientais, e que floresceu como elemento do estilo gótico na ornamentação de igrejas e catedrais da Europa durante a Idade Média. Na forma tradicional cultivada pelos europeus, os vitrais coloridos e seus efeitos refletidos pela luz do sol quase sempre retratam personagens e cenas religiosas do cristianismo. Nas obras criadas por Marianne Peretti, as cenas religiosas cedem lugar a formas abstratas e geométricas que inovam e rompem com os paradigmas medievais do vitral.
Ousadia da invenção
As inovações apresentadas na arte do vitral de Marianne Peretti, como destaca Véronique David, em depoimento para o livro “A ousadia da invenção”, estão presentes na forma e no conteúdo, bem como na relação que se estabelece com a luz. Véronique David, do Centro André Chastel – Sorbonne/INHA, defende que o trabalho da artista na Catedral de Brasília representa uma obra-prima mundial do vitral do século 20. Conforme seu argumento, na maioria dos vitrais na tradição da Europa a relação com a luz se dá como se houvesse uma “parede transparente” que pode reluzir e iluminar um ambiente escuro, enquanto nos vitrais criados por Marianne Peretti as formas translúcidas e as sobreposições de vidro permitem que a obra reflita e se prolongue no espaço, com os reflexos da iluminação sendo projetados nos vãos e superfícies, como se a obra não acabasse nos limites da moldura que está delineada pelos arcos e ângulos do metal e do concreto.
São exatamente os vitrais mais conhecidos de Marianne Peretti, instalados na Catedral de Brasília, que exemplificam à perfeição suas inovações em relação à tradição do vitral gótico medieval, de inspiração restrita às cenas de passagens bíblicas. Na Catedral de Brasília, os vitrais coloridos da artista, recobertos com camadas de fibra de vidro, rodeiam a construção em 360 graus, cobrindo todos os intervalos das 16 colunas curvas, simetricamente opostas, que formam diâmetros de 70 metros com altura de 40 metros e ampliam as vibrações acústicas, o que dispensa microfones para a celebração das missas. As bases muito afinadas das colunas, intercaladas pelo posicionamento dos vitrais e pelos reflexos do espelho d'água ao redor da catedral, provocam no observador uma certa sinestesia e a impressão de que as estruturas de concreto, de metal e de vidro mal tocam o piso.
Gêneros e suportes variados
Além de sua maestria na construção e na instalação dos vitrais, Marianne Peretti tem uma trajetória de premiações com artes plásticas em gêneros e suportes tão variados como os murais, as esculturas, trabalhos em design e em arquitetura, além do desenho puro em técnicas mistas, incluindo ilustrações sobre encomenda para livros e outras publicações. Entre as premiações no Brasil, a primeira ocorreu em 1965, na Bienal de São Paulo, com o prêmio pela capa do livro “As Palavras”, de Jean-Paul Sartre.
As obras concebidas para Brasília foram "pensadas" no Rio de Janeiro, onde Marianne morava. Ela viajava para a nova capital a cada 15 dias, para desenvolver e acompanhar os trabalhos, mas quando pisou pela primeira vez em Brasília, a capital já havia sido inaugurada pelo presidente Juscelino Kubitschek e, no entanto, continuava em construção. Em abril de 2016, a artista foi homenageada com a maior retrospectiva já feita sobre suas obras, no Museu da República, em Brasília, com a reunião de peças originais de escultura, objetos funcionais como mesas e cadeiras, ilustrações, maquetes e projetos em tamanho natural, com projeções multimídia reproduzindo o efeito de grandiosidade de seus painéis, murais e vitrais.
Arte monumental
por José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Fractais de Marianne Peretti. In: Blog Semióticas, 29 de abril de 2023. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2023/04/fractais-de-marianne-peretti.html (acessado em .../.../…).
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Tive outra surpresa com este blog Semióticas: eu esperava encontrar uma coisa e encontrei outra MUITO diferente. Achei que fosse uma postagenzinha com uma fotinha e um textinho de fã, mas o que encontrei é maravilhoso.
ResponderExcluirEntre outras, esta matéria linda e super-elaborada sobre a grande mestre do vitral, Marianne Peretti, que tão pouca gente conhece.
Além do texto sofisticado, tem esta edição de imagens de tirar o fôlego.
Parabéns demais. Parei nesta postagem por horas. Agora vou visitar as outras postagens, porque já entendi que todas são incríveis e com textos impecáveis e imagens de espetáculo. Show! Muito obrigada por compartilhar beleza e sabedoria.
Fabiane Eggert Alves
Certeza de encontrar beleza e sabedoria neste blog Semióticas em todas as visitas que faço, nesta postagem maravilhosa sobre Marianne Peretti e em todas as outras postagens que visitei.
ResponderExcluirEncontrei hoje esta postagem porque retornei aqui para reler a beleza do seu artigo "Fractais de Athos Bulcão" e encontro beleza em dose dupla e em alto nível.
Vou ter que voltar aqui muitas vezes, porque há muitas matérias maravilhosas que preciso visitar com muita atenção.
Parabéns de novo e muito obrigado por compartilhar.
Paulo Colette
Não tenho o hábito de escrever comentários nos sites que visito, mas vou fazer aqui uma exceção, porque visitei algumas postagens deste blog Semióticas e fiquei muito impressionada.
ResponderExcluirEntre tantas outras pérolas do blog, postagens como esta, dedicada a Marianne Peretti, chega em mim com um vigor cristalino, límpido, numa doce mistura de suavidade e intensidade. Fiz um trabalho sobre ela em uma disciplina do meu curso na Escola Guignard, em Belo Horizonte, e preciso reconhecer que meu trabalho não chega aos pés desta sua postagem.
Amei, amei. Parabéns pela postagem e por tudo no blog.
Espetáculo!
Maria Fernanda Machado
Uma beleza de postagem, tipo uma aula muito inspirada. Você se expressa com a sensibilidade de quem realmente compartilha uma experiência. Adorei descobrir este blog Semióticas. Parabéns pelo alto nível. Achei tudo verdadeiro e comovente nesta e nas outras postagens que visitei.
ResponderExcluirMarianne Câmara
As pessoas não sabem que tipo de arte sincera e de qualidade estão perdendo quando ignoram artistas como Marianne Peretti. Você bem destacou, nesta postagem linda, que ela é a única mulher na equipe de Niemeyer para a construção de Brasília e, também, a artista menos conhecida de todos. Cada um na sua, mas a arte dos vitrais de Peretti provoca emoções fortes e sensações que é impossível esquecer quando se está ao vivo, diante das obras, ou dentro delas. Amo. Parabéns por esta beleza completa que é o blog Semióticas em tudo. É genuíno e deveria ser leitura obrigatória nas escolas.
ResponderExcluirCelina Preta Valadares
Olá, professor.
ResponderExcluirOutra vez foi uma alegria e uma felicidade esta visita porque encontrei esta história de vida de Marianne Peretti, artista que eu não identificava mas conhecia suas obras incríveis sem saber a autoria. Mais uma história linda que você conta como se fosse uma grande aventura. Muito obrigado por compartilhar estas maravilhas.
Diego de Alcântara
Acho que nunca encontrei um blog tão bacana e tão de alto nível como este Blog Semióticas. Amei descobrir o trabalho de Marianne Peretti, que eu não conhecia e sobre quem eu nunca tinha ouvido falar. Muito obrigado por mais esta revelação. Volto sempre porque sei que tudo aqui é um espetáculo. Parabéns demais.
ResponderExcluirMario Lucio Vaz de Melo