O
erótico vivido como
profano e a arte vivida como
algo sagrado se fundem
em uma experiência única. Trata-se, na verdade, de misturar a arte e a vida.
––
Lygia
Clark (1920-1988). |
Lygia
Clark ganhou destaque internacional com uma grande retrospectiva de
sua obra no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova York, aberta ao
público de 10 de maio a 24 de agosto de 2014. Maior exposição já
dedicada a uma brasileira em um museu dos EUA, “Lygia Clark: The
Abandonment of Art,1948- 1988” (Lygia Clark: O Abandono
da Arte, 1948-1988) aborda, pela primeira vez, todas as fases da carreira da artista que se autointitulava “não artista” e que se tornou uma referência, na segunda metade do século 20, na busca por uma arte contemporânea –– ou de algo que pudesse ultrapassar os
limites das formas não convencionais de arte.
Com
um acervo de 300 obras nunca reunidas em uma única exposição,
tomadas de empréstimo, depois de longas negociações, em coleções públicas e privadas no Brasil e
outros países, a mostra apresenta desenhos, pinturas,
fotografias, filmes, esculturas, objetos, instalações e obras participativas criadas nas
quatro décadas de produção artística de Lygia Clark. O acervo,
organizado de forma cronológica, foi reunido pela curadoria do MoMA a partir de três
grandes temas: Abstração, Neoconcretismo e Abandono da Arte.
Além
das obras e instalações permanentes em exposição, completam a
programação do MoMA o lançamento de um catálogo com a obra
completa de Lygia Clark, que inclui fac-símiles de projetos e
escritos inéditos da artista, e uma série de eventos paralelos,
entre oficinas, palestras e exibição de documentários com
participação de Lygia – entre eles "O Mundo de
Lygia Clark" (1983), de Eduardo Clark; "Memória do Corpo"
(1973), de Mario Carneiro; e cinco curtas-metragens sobre a obra de
Lygia realizados entre 1974 e 1979 por Anna Maria Maiolino. Também
está na programação uma mostra de filmes experimentais brasileiros
dos anos 1960 e 1970, com produções de Glauber Rocha, Rogério
Sganzerla, Neville D'Almeida, Ivan Cardoso, Rubens Gerchman, Hélio
Oiticica e Lygia Pape, entre outros (veja link para o catálogo e
para uma visita virtual no final deste artigo).
Na
edição do catálogo, os organizadores da exposição apresentam de forma linear a
trajetória da artista, nascida em 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte, Minas
Gerais, e morta aos 67 anos em decorrência de um ataque cardíaco em 25 de abril de 1988, para colocar em relevo sua prática
inovadora, desde seus primeiros trabalhos com tendências abstratas,
literalmente abertos à participação ativa do espectador. Mais
abrangente publicação já lançada sobre a arte de Lygia Clark, o
catálogo reúne todo o acervo da exposição e outros trabalhos
em belíssima seleção de imagens, com estudo biográfico,
textos inéditos da artista e ensaios de Cornelia Butler, Luis
Pérez-Oramas, Sergio Bessa, Eleonora Fabião, Briony Fer, Geaninne
Gutiérrez Guimarães, André Lepecki, Zeuler Lima, Christine Maciel
e Frederico de Oliveira Coelho.
Arte de vanguarda e
prática terapêutica
No
dossiê para a imprensa, os curadores da mostra e também
organizadores do catálogo, Cornelia Butler e Luis Pérez-Oramas,
destacam a importância e a atualidade de Lygia Clark e apontam que
a exposição pretende valorizar sua produção inovadora e
reinscrevê-la em discursos atuais da arte em diversas perspectivas,
especialmente nos questionamentos e pesquisas sobre abstração, na
participação interativa do público em diversos suportes e nas
práticas terapêuticas.
“Ao
reunir todas as partes da sua produção tão radical e tão pioneira
é possível observar que ela sempre esteve na vanguarda”, aponta
Luis Pérez-Oramas, reconhecendo que o pioneirismo de Lygia Clark se
dá em várias frentes – seja na participação ativa dos
espectadores através da composição permanente de suas obras de
arte não convencionais, seja em suas práticas com arte sensorial
que a levaram a pesquisas com terapia psicanalítica e a desenvolver
uma série impressionante de novas proposições terapêuticas
fundamentadas na arte.
A
trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um
lugar muito bem definido dentro da História da Arte, tanto que
ela autointitulava-se "não artista". Pintora,
escultora, escritora, “performer”, terapeuta, professora: em
1972, morando em Paris desde 1968, foi convidada a ministrar um curso
sobre comunicação gestual na Sorbonne e, segundo os biógrafos,
suas aulas eram verdadeiras experiências coletivas apoiadas na
manipulação dos sentidos e das sensações.
São
dessa época algumas das proposições impressionantes da artista, tais como “Arquiteturas biológicas, 1969",
“Rede de elástico, 1973", “Baba antropofágica, 1973"
e “Relaxação, 1974". Em 1976, há uma alteração marcante na trajetória, quando Lygia Clark retorna para o Rio
de Janeiro para se dedicar às práticas terapêuticas com experiências
individuais e coletivas em arte sensorial através dos seus "objetos
relacionais".
Abstração geométrica
Na
apresentação ao evento no MoMA, Pérez-Oramas destaca no primeiro
módulo da exposição, dedicado à abstração, a presença de
predecessores fundamentais na obra de Lygia Clark, desde o diálogo
de suas obras iniciais com mestres da arte brasileira e com grandes
nomes das vanguardas, Duchamp, Calder, incluindo seus contemporâneos
na abstração geométrica, Paul Klee, Fernand Léger (de quem foi
aluna), Piet Mondrian, Vladimir Tatlin, Max Bill, Georges
Vantongerloo.
Mas o grande apelo para o público está no segundo e terceiro núcleos da mostra, com os objetos relacionais da artista e suas proposições sensoriais que questionam o suporte material da obra de arte – alguns eram aplicados diretamente no corpo dos participantes, como mostram vídeos da época. Além da exibição dos originais, os visitantes contam com ajuda de monitores treinados para reproduzir com réplicas as experiências sensoriais propostas por Lygia Clark.
Como
característica marcante dos desenhos e pinturas iniciais da artista,
nas décadas de 1940 e 1950, já estava a complexidade das
superfícies e o questionamento sobre o suporte material, com a
exploração dos limites entre obra e moldura. “O que eu quero é
compor um espaço e não compor dentro dele”, escreveu Lygia Clark
certa vez, reconhecendo que a linha construtivista da arte brasileira
– no concretismo, no neoconcretismo e seus desdobramentos – a
levou a investigações para a arte além dos limites do tradicional
e das formas convencionais. Nessa época, surgem os “Bichos”.
Além do limite convencional
Por
volta de 1960, Lygia Clark encontrou uma maneira de desdobrar as
investigações sobre arquitetura e topologia de sua fase
neoconcreta para um repertório tridimensional. O resultado foi a
série de esculturas conhecida como “Bichos”, obras interativas
que Lygia Clark concebeu para serem inteiramente e infinitamente
remoldadas por seus manuseadores.
Em
cada um dos “Bichos”, as linhas orgânicas se tornam dobradiças
entre painéis, permitindo que a escultura seja transformada de um
achatamento esquemático para uma variedade de configurações
tridimensionais inesperadas. Algumas destas obras carregam enorme
semelhança com seres vivos específicos, como o “Caranguejo”
(1960), enquanto outros evocam temas da investigação artística de
Lygia, como “Relógio de Sol” (1960).
O
segundo núcleo inclui, além dos “Bichos”, as séries “O
Dentro é o Fora” (1963) e “O Antes é o Depois” (1963), que
apresentam tripas de metal entrelaçadas, sem dobradiças. Completam
o núcleo obras da série “Trepantes” (1965), estruturas de metal
compostas por aço inoxidável retorcido em linhas líricas e formas
circulares, e “Caminhando”, que a artista criou em 1963,
retorcendo uma tira de papel em 180 graus para colar suas pontas e
gerar um Anel de Moebius – uma forma circular que aparenta ter dois
lados, mas na verdade tem apenas um, recortado longitudinalmente até
o seu limite.
Exílio
e abandono da arte
O
terceiro núcleo da exposição aborda o período a partir do final
da década de 1960, quando ela passou a se dedicar exclusivamente a
obras que incluíam a participação ativa do público, que poderia
transcender o papel de mero espectador, acabando com a distinção
entre artista e plateia – com trabalhos muito polêmicos em sua
época, uma vez que Lygia Clark nunca os considerou nem como
“performance” nem como “happenings”.
Pelo
contrário: estas investigações de sua última fase terminaram por
levá-la a questionar profundamente o status e utilidade de trabalhos
convencionais como meios de expressão. Entre 1966 e 1988, um período
que coincidiu com uma crise pessoal e uma subsequente longa temporada
de exílio na Europa, Lygia retomou de forma radical conceitos e
práticas que havia confrontado em trabalhos anteriores. Fez objetos
muito simples a partir de coisas como luvas, sacos de plástico,
pedras, conchas, água, elásticos e tecidos.
Estes
“objetos sensoriais”, segundo Pérez-Oramas, foram
criados para tornar possível uma consciência diferente de nossos
corpos, nossas capacidades perceptuais e as nossas restrições
físicas e mentais. Os “objetos sensoriais” da artista tinham o
propósito de serem ativados em contato e coordenação com as nossa
s funções corporais e orgânicas.
A casa é o corpo
Além
dos três núcleos em exposição no sexto andar do MoMA, o quarto
andar é dedicado exclusivamente a uma única instalação: "A
casa é o corpo: penetração, ovulação, germinação, expulsão".
Criada em 1968 por Lygia Clark para a Bienal de Veneza, a instalação
simula em minúcias o aparelho reprodutor feminino e permite ao
público uma experiência de imersão corpórea ao percorrer o seu
interior.
Obra
de fundamental importância para a história da arte brasileira –
como destaca Maria Alice Milliet no ensaio biográfico “Lygia
Clark: obra-trajeto”, publicado em 1992 pela EDUSP – “A
Casa é o Corpo” se constituía de um grande balão plástico
situado no centro de uma estrutura formada por dois compartimentos
laterais e um labirinto de 8 metros de comprimento – uma
obra-ambiente concebida “para ser penetrada pelo visitante
como abrigo poético”.
Ao
entrar (“penetração”) no primeiro dos três compartimentos da
instalação, o espectador encontra um quarto escuro de piso macio;
depois, segue para a “ovulação”, um espaço repleto de
materiais esféricos (balões, bolas de borracha e de isopor); em
seguida, entra em uma bolha transparente no formato de uma lágrima
(“germinação”) e, ao final do percurso, atravessa uma cortina
de fios de “cabelo” para se deparar com um espelho deformado onde
vê o próprio reflexo.
Passados
quase 50 anos, as imagens de “A casa é o corpo” ajudam a
explicar o impacto e o estranhamento que a obra sensorial e as ideias
de Lygia Clark provocaram no Brasil e naquela Bienal de Veneza, com
sua influência posterior em conceitos como “suporte”,
“instalação”, “arte conceitual”, “arte-terapia”. A
atual celebração de sua obra pelo MoMA e a recepção unânime e
surpreendente de público e crítica a trazem de volta ao futuro.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Lygia
Clark no MoMA. In: Blog
Semióticas,
17
de
maio
de 2014.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2014/05/lygia-clark-no-moma.html
(acessado
em .../.../...).
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A
arte de Lygia Clark: no alto, uma amostra e um coletivo da série
"Bicho" (1963). Acima, "Sem título" (1957).
Abaixo,
registro da Vernissage da mostra
de Lygia
Clark apresentada no MoMA
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