Com
suas provocações e sua mistura eclética de referências
ideológicas e estilísticas, desde as origens, na década de 1970, o
movimento punk teve uma influência explosiva no mundo da moda.
Parece até um jogo de contrários: por ironia do destino (e do
mercado), tanto a Alta Costura, com seus modelos exclusivos e sob
medida para uma clientela de alto poder de consumo, quanto as linhas
industriais das grifes e lojas do Prêt-à-porter,
aderiram e incorporaram rapidamente aquele grito de protesto político
representado nas atitudes e no visual de anarquia e rebeldia.
Para
a engrenagem industrial, foi como descobrir o mapa da mina: em pouco
tempo, muito da força espontânea das atitudes de protesto e da
fúria anti-establishment seria incorporado, descontextualizado e
transformado de novo em apelos de consumo – apesar do incômodo
inconformista representado nos rasgos aleatórios, nas barras mal
costuradas, nas tinturas de improviso, tachas, pregos, zíperes,
alfinetes, argolas, lâminas, piercings, tatuagens, jeans e camisetas
surrados, cortes de couro preto, cabelos raspados ou agressivos e
outras práticas “alternativas” de
bricolagem e da descoberta do “faça você mesmo” pregadas pelos
primeiros punks.
A influência hostil e ameaçadora, transformada em
forte tendência de estilo e consumo que vem até nossos dias, é o
tema de "Punk: Chaos to Couture" (Punk: Caos para a
Alta-Costura) uma exposição surpreendente que está aberta ao
público até 14 de agosto em um dos mais prestigiados templos da moda em Nova
York, o Costume Institute do Metropolitan Museum of Art (veja links
para uma visita on-line ao Metropolitan e para o catálogo da
exposição no final deste artigo).
Destacada
pela imprensa internacional como uma das mais importantes mostras de
2013, "Punk: Chaos to Couture" apresenta, além da proposta
inédita e do tema algo inusitado, uma série de inovações técnicas
no conceito de curadoria em artes plásticas. Inspirada na tecnologia de shows e
performances do rock e da cultura pop, a mostra propõe uma
experiência multisensorial em multimídia, com instalações em seis
galerias do Metropolitan Museum que incluem 100 peças originais de estilistas e grifes do primeiro escalão.
Banheiro do CBGB
É
um acervo que impressiona e que nunca havia sido reunido sequer em
catálogos de história da moda, com criações que revolucionaram
conceitos assinadas por nomes como Vivienne Westwood, Malcolm
McLaren, Alexander McQueen, Maison Chanel, Viktor & Rolf, Gianni
Versace, Riccardo Tisci,
Helmut Lang, Lagerfeld,
Miuccia Prada, John Galliano, Martin Margiela, Yohji Yamamoto e Comme
des Garçons, além de fotos raras e telões com exibição
permanente de performances e desfiles ao som de Blondie, Ramones, Sex
Pistols, The Clash.
O que não falta, na mostra, são surpresas e
irreverências, pontuando certos momentos históricos para destacar a
atitude simbólica e a linguagem visual do movimento punk, incluindo até
mesmo a recriação fiel, nos mínimos detalhes, feita a partir de
fotografias de 1975, do banheiro rústico e unissex coberto de
pichações no lendário e pioneiro clube punk CBGB, em Nova York,
demolido em 2006 – palco de estreia e consagração de uma extensa
galeria de artistas e grupos lendários do rock e do pop.
Segundo Andrew Bolton, curador da exposição no
Metropolitan, o objetivo do projeto, desde o início, foi analisar e
destacar, tanto para o público em geral como para os especialistas
que conhecem a história da moda, a forma como os designers têm
olhado para as provocações e os protestos das tribos urbanas mais
radicais, se apropriando desta estética anti-establishment para
criar novos ideais de beleza e elegância.
“Hoje
se fala do movimento punk como se ele fosse um fenômeno estético e
musical definido e demarcado, mas isso nunca foi verdade. Desde seu
surgimento, na geração que viveu a década de 1970, nunca houve
coesão ou princípios ideológicos. O contexto da sua origem foi
saturado com clichês e convenções estereotipadas, mas o punk ainda
sobrevive como intervenção estética transgressora”, defende
Bolton na apresentação ao catálogo da mostra. "Punk é e
sempre foi a comemoração do indivíduo, a celebração da
criatividade e da coragem de ser diferente. Punk é desafiar o status
quo", completa.
Moda, música, atitude
Além
de Andrew Bolton, três autoridades no assunto assinam os ensaios de
apresentação no catálogo da mostra: o escritor, cantor e
compositor Richard Hell, que foi baixista da banda Television, entre
1973 e 1975; Johnny Rotten, compositor e vocalista de duas bandas
fundamentais, Sex Pistols e PiL, atualmente apresentador de TV na
Inglaterra; e o jornalista Jon Savage, colunista do “The Guardian”
e autor de um livro elogiado sobre o movimento punk, “England's
Dreaming: Sex Pistols, Teenage and Punk Rock”, publicado em 1991
pela Faber And Faber.
Tanto os
três convidados como Andrew Bolton são unânimes em reconhecer que, além de
fornecer a música como pano de fundo, a revolução provocada pelo
movimento punk na vida das pessoas comuns e no mundo da moda
inaugurou não só o uso de novos adereços de couro e metal: também
lançou a prática da “personalização” e do improviso, diluindo
as fronteiras entre consumo e criação, com novas ideias para o
“garimpo” e a reciclagem de peças que quebraram tabus e levaram
a novas misturas, novas ousadias e desconstruções de estilos.
Bíblias
da moda como “Vogue”, “Vanity Fair”, “Harper's Bazaar” e
jornais como “The New York Times”, “Washington Post” e “The
Guardian” destacam a coragem e a abrangência da exposição, mas
também houve críticas e questionamentos. Uma das mais autênticas
veio de Mick Jones, guitarrista do The Clash, que não só dispensou
convites para a abertura de gala da exposição, com a presença de
estrelas como Debbie Harry e Madonna, mas também ironizou a pompa da
retrospectiva. Segundo Mick Jones, o punk foi um movimento que durou
100 dias sem rumo nem fronteiras e tentar enquadrá-lo em catálogos
e tendências do mercado de consumo é falsidade.
Mesmo coerente com as propostas originais do punk, Mick
Jones é apenas uma voz dissonante. Para Jon Savage, a retrospectiva no
Metropolitan Museum é da maior importância. No ensaio “Symbols
clashing everywhere: punk fashion 1975–1980”, talvez o melhor dos
quatro ensaios publicados do catálogo da mostra "Punk: Chaos to
Couture", Savage destaca a importância histórica sem precedentes da exposição e avalia que nenhum movimento ou estilo teve
influência mais marcante que o punk no comportamento e no mundo da
moda.
Autêntico nas ruas, falso na vitrine
Savage reúne à sua experiência de testemunha que
presenciou a explosão do movimento, na década de 1970, variáveis
da política, da música e da literatura que contextualizam as
propostas do estilo punk – seja na concepção de uma forma
cultural deliberadamente marginal e alternativa à cultura
tradicional vigente na sociedade, seja como manifestação de
segregação e auto-afirmação por gangues de rua. No ensaio, Savage
destaca e resume toda a trajetória do que seja ou tenha sido “punk”
em apenas duas normas iconoclastas: quebrar as regras e desrespeitar
convenções.
Apesar
do apuro conceitual apresentado, há também – e principalmente –
os negócios antes da arte. A estratégia agressiva de marketing
capitaneada na mídia fez com que a maior parte das peças originais
de vestuário e adereços em exposição voltassem às vitrines das
grandes lojas, movimentando cifras bilionárias para as grifes
envolvidas ou citadas. A mostra, que tem patrocínio do e-commerce
Moda Operandi e da editora Condé Nast, faz questão de demonstrar
sua “intenção comercial” nas galerias temáticas que apresenta,
todas elas com produtos em catálogos e serviços de vendas.
São seis galerias temáticas. A primeira, “Clothes for
Heroes”, apresenta um panorama da cena musical de Nova York e
Londres em meados da década de 1970, com bandas pioneiras do estilo,
como Sex Pistols, Ramones, The Clash. A segunda galeria, “The
Couturiers Situationists”, é dedicada à interpretação conferida
ao punk por aqueles que são considerados os “inventores” do
visual que a maioria associa ao estilo, Vivienne Westwood e seu então
marido Malcolm Mclaren, através da loja e ateliê Let It Rock
(depois rebatizada como SEX e, mais tarde, Seditionaries). Em uma
frase destacada na galeria, Vivienne Westwood confessa que sua fonte
de inspiração foi a mistura de antigas camisolas de dormir com
peças recortadas de uniformes militares.
Rock
& Pop & Punk: no alto,
Johnny Lydon fotografado com sua camiseta esburacada em 1976 por Richard Young, imagem de inspiração para Rei Kawakubo |
A
terceira galeria, “Pavilions of Anarchy and Elegance”, coloca
lado a lado peças da Alta Costura e itens originais criados no ápice
do movimento punk, em meados da década de 1970. Mesmo pertencendo a
universos tão distintos, as peças dos estilistas e as “invenções”
dos primeiros punks apresentam semelhanças estéticas que destacam,
principalmente, as técnicas de customização. A quarta galeria do
Metropolitan apresenta “Punk Couture”, com instalações que
exploram o fascínio da moda por fetiches que parecem saídos de
rituais sadomasoquistas, incluindo correntes, cintos, alfinetes,
argolas, zíperes.
Rebeldia como artigo de luxo
A quinta galeria da exposição "Punk:
Chaos to Couture", batizada como “D.I.Y. Style”,
examina a contribuição e o impacto da bricolagem e da customização,
no primeiro momento do que hoje se convencionou chamar de diretrizes
de sustentabilidade: foi a bricolagem e a customização inauguradas
pelos punks que contribuíram para levar materiais rústicos e
reciclados a serem acolhidos pela indústria têxtil. A sexta e
última galeria, “La Mode Destroy”, é dedicada a um mapeamento
visual sobre os tipos que se tornaram dominantes no movimento punk,
incluindo anônimos e famosos como a roqueira Patti Smith, com sua
marca que mistura estilos em roupas desalinhadas, maquiagem borrada,
cabelos desgrenhados.
Enquanto isso, a direção do Metropolitan comemora o
sucesso de público da mostra, recordista em número de ingressos
vendidos. Nada mal para a aposta arriscada de inverter os valores e
reabilitar a rebeldia punk como estilo sofisticado de consumo. Ainda
mais que o Metropolitan Museum amargou uma decepção contabilizada
em 2012 – quando a exposição “Impossible Conversations”,
sobre o acervo de dois clássicos do mundo da moda, Schiaparelli e
Prada, teve decepcionantes 340 mil visitantes e não alcançou nem a
metade do público esperado pelos organizadores. Ao apostar todas as
cartas no anti-establishment do movimento punk, o Metropolitan conseguiu bater seu próprio recorde de
visitantes.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Punk de grife. In: Blog
Semióticas, 31 de
julho de 2013. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/07/punk-de-grife.html
(acessado em .../.../…).
Para
uma visita on-line à exposição
do Metropolitan Museum, clique aqui.
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