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5 de setembro de 2013

O Cruzeiro nos bastidores








Uma das maiores revistas da história da América Latina, pela qualidade e pela média de 4 milhões de leitores semanais que atingiu, em meados do século 20 – o mais importante veículo do império de imprensa dos Diários Associados, do lendário Assis Chateaubriand, O Cruzeiro, a TV de papel, como se dizia na época, fez escola, consagrou jornalistas e fotógrafos, realizou coberturas marcantes e ambiciosas sobre a vida de um país em constantes transformações, deixou saudades, muitas polêmicas e também muitas dívidas.

Durante meio século, O Cruzeiro trouxe fama, fortuna e glória para uns e ruína para outros. Entre a primeira edição, em 1928, lançada às vésperas da Revolução de 1930, e a última, em 1974, chegou a atingir em seus tempos áureos, nas décadas de 1940 e 1950, tiragens de mais de 700 mil exemplares – número absurdo, se comparado aos jornais e revistas de maior circulação naquele mesmo período, que raramente tiveram tiragens superiores a 10 mil. O Cruzeiro se manteve por 50 anos como principal fonte de leitura e informação em todo o Brasil, além da multidão de leitores que conquistou na América Latina, nos anos 1950, quando também foi editada em espanhol.

A trajetória da revista que teve sua história vinculada ao processo de modernização da sociedade brasileira e suas questões polêmicas, fundamentais para a imprensa e os desdobramentos da política, no Brasil do século 20, têm poucos registros em livro, em uma proporção inversa à sua importância. Entre os relatos publicados sobre a trajetória da revista, referência obrigatória sobre a imprensa brasileira, há a biografia "Chatô, O rei do Brasil" (Companhia das Letras, 1994), de Fernando Morais – e também o catálogo da mostra recente realizada pelo Instituto Moreira Salles, "As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)", projeto que une extensa pesquisa acadêmica em torno da revista, exposição itinerante e publicação do catálogo com os estudos e o acervo fotográfico do IMS. 











Imagens de O Cruzeiro: no alto,
capa da primeira edição, lançada no
Rio de Janeiro em 10 de novembro
de 1928, trazendo na capa a ousada
ilustração do beijo de uma melindrosa,
como eram chamadas nos salões da
década de 1920 as moças ousadas nas
atitudes e na maneira de se vestirem.
Acima, Getúlio Vargas na capa 
e no poder, na edição de 8 de
novembro de 1930; Getúlio ao lado
de Assis Chateaubriand, em 1945;
e cena urbana de São Paulo em
1940, em foto de Jean Manzon.

Abaixo, ritual de dança da tribo Caiapó
Kuben-kran-ken na Amazônia, em
fotografia de José Medeiros, em
1957; a Guerra da Coreia, em 1951,
fotografada para O Cruzeiro por
Luciano Carneiro; e carrancas
nos barcos do Rio São Francisco, em
foto de 1943 de Marcel Gautherot








Além do catálogo da exposição e do livro de Fernando Morais, que tornou-se best-seller desde o lançamento, com a história do 'velho capitão' Assis Chateaubriand, mais temido que amado, poderoso, controvertido, há também um outro livro, que não teve destaque na época do lançamento nem tornou-se campeão de vendas, mas que apresenta um registro específico e da maior importância sobre o cotidiano da principal revista brasileira do século 20: "O Império de Papel – Os bastidores de O Cruzeiro" (Editora Sulina, 1998), escrito por alguém que por certo pode falar com propriedade sobre os bastidores da publicação: o jornalista Antonio Accioly Netto, que durante 40 anos foi redator e diretor de redação da revista. 



Nomes, datas, histórias



Na época em que "O Império de Papel" foi lançado, tive a sorte de entrevistar Accioly Netto para o jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte. O lançamento do livro, com sessão de autógrafos, chegou a ser agendado em BH, mas terminou cancelado, na véspera do evento, por causa de um problema de saúde do autor, na época com 92 anos, ainda morando no Rio de Janeiro e muito lúcido, bem-humorado, demonstrando uma memória surpreendente para nomes, datas e acontecimentos da história do Brasil – como comprovei na conversa pelo telefone.
 








Durante a entrevista, um detalhe que me deixou surpreso, além da lucidez do quase centenário Accioly, foi a extensão das atividades a que ele se dedicou. Além do seu trabalho capital em O Cruzeiro, foi também artista plástico (participou da histórica Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo), publicitário, escritor e autor teatral, com vários livros publicados. O registro das memórias do tempo de O Cruzeiro, seu último projeto, consumiu cerca de 25 anos, desde a preparação e revisão dos originais à seleção de fotografias e ilustrações para a edição do livro. Accioly Netto morreria em abril de 2001, três anos depois do lançamento de "O Império de Papel".

Antes de fazer contato com o autor, na época do lançamento, elaborei um roteiro extenso para a entrevista, mas pelo telefone ele foi econômico nas respostas, com tiradas certeiras de bom humor e ironia e, na maior parte das vezes, apontando que a pergunta feita ja estava respondida no livro, no capítulo tal e página tal. Entre uma e outra ironia, ainda lembrou dos vários jornalistas mineiros que passaram pela redação de O Cruzeiro e comentou sobre os tantos jornais importantes que surgiram, fizeram História e desapareceram em Minas Gerais, no decorrer do século 20 – entre eles, Jornal de Minas, Jornal da Noite, Diário da Tarde, Diário de Minas, A Tribuna, Folha de Minas, Diário Mercantil, O Combate, Binômio e muitos outros.









Imagens de O Cruzeiro: no alto,
índio ajuda a tirar um avião de um
atoleiro, em fotografia de José
Medeiros para a reportagem que
acompanhou uma expedição da
Aeronáutica ao Mato Grosso, em
1948. Acima, o presidente Juscelino
Kubitschek na inauguração de Brasília,
em abril de 1960, em fotografia de Luis
Carlos Barreto; e Getúlio Vargas
no Xingu, Amazônia, em 1953,
fotografado por Henri Ballot




  







Mais críticas do que admiração



Pelo telefone, o homem que esteve durante décadas à frente da redação da revista O Cruzeiro não teve reservas em criticar os políticos que estavam no poder no final dos anos 1990. Também não fez nenhum elogio à imprensa – muito pelo contrário. Sobre as grandes personalidades da época de O Cruzeiro, Accioly Netto também confessou, na entrevista e no livro, mais críticas severas do que admiração, incluindo revelações negativas sobre seu antigo chefe Assis Chateaubriand, seus subordinados e seus aduladores, e sobre medalhões da política e da cultura como Vargas, JK, Niemeyer, Carmen Miranda.

O relato do autor, testemunha ocular dos caminhos trilhados pela revista mais importante de seu tempo, resume uma reflexão muito pessoal sobre o passado, reunindo à historiografia saborosas anedotas envolvendo artistas e políticos do primeiro escalão. Tanto que ´"O Império de Papel" poderia ser classificado como livro-reportagem e também como prosa memorialista, por conta do lirismo de suas passagens confessionais.


















Imagens de O Cruzeiro: as polêmicas
e o olhar humanista nas páginas da revista
em fotografias de José Medeiros. No alto,
operários no vagão do trem no Rio de Janeiro,
em 1948; Mara Rúbia, Rainha do Baile das Atrizes,
e Francisco de Moraes Cardoso, o Rei Momo que
reinou de 1934 a 1948 no Carnaval carioca, em fotografia
de 28 de fevereiro de 1946 de Jean Manzon; e o
beijo do casal anônimo no tradicional
Baile de Carnaval do Hotel Glória, no
Rio de Janeiro, em fotografia que ilustrou
uma reportagem publicada em 1950.

Acima e abaixo, imagens de reportagem
sobre ritual de iniciação no Candomblé,
na Bahia, publicada em 1951 com o título
As Noivas dos Deuses Sanguinários”, com
texto de Arlindo Silva e 42 fotografias de
José Medeiros; reportagem de "O Cruzeiro" 
foi uma resposta a matéria sobre o mesmo tema
publicada na revista da França Paris Match,
também em 1951, considerada ofensiva,
sensacionalista e preconceituosa.

Também abaixo, outra revolução
de costumes em O Cruzeiro através
dos anúncios publicitários, agentes
importantes no processo de modernização
da sociedade brasileira








 



Há também o impressionante e permanente sucesso de público, que fez a revista esgotar nas bancas desde a primeira edição, mantendo de forma ininterrupta o mesmo apelo até que houve a ruína financeira, a morte de Chateaubriand e o esfacelamento do império. Accioly recorda que, mesmo em ruína financeira, O Cruzeiro ainda conservava uma vendagem relativamente boa quando teve sua publicação interrompida. O fim veio em 1974, quando o título foi cedido para pagar dívidas atrasadas e voltou a circular, em versões limitadas e canhestras, até 1975. 



Uma revista assassinada



Com o fechamento da revista, o sofisticado equipamento gráfico foi liquidado a preço de ferro-velho, a memorável equipe de redação no Rio de Janeiro se dispersou e os arquivos da revista – considerados à época os melhores já reunidos por uma publicação em toda a história da imprensa no Brasil – foram arrematados pelo jornal Estado de Minas, sendo transferidos em caminhões para Belo Horizonte. Duas décadas e meia depois da “débácle”, Accioly publicou seu relato sobre a experiência na revista, definido por ele como "um acerto de contas com o passado e com uma revista que foi assassinada".











Os originais de Accioly tiveram a edição final organizada por Ruy Castro e Heloísa Seixas, que mantiveram o tom confessional e a narrativa em primeira pessoa, concisa e equilibrada, pontuada por muitas fotografias e fac-símiles dos arquivos pessoais do autor. Accioly resume os 46 anos de circulação de O Cruzeiro em breves 160 páginas, intercalando a leveza e a complexidade da trajetória com suas lembranças privilegiadas de quem acompanhou 'de dentro' cada número semanal da revista, desde o primeiro, em 1928, até a derrocada do Império Chateaubriand.

Através do relato por vezes irônico, por vezes direto e contundente do autor, "O Império de Papel" apresenta um inventário dos bastidores da revista que formatou o imaginário de milhões de brasileiros por décadas seguidas, antes do sucesso do rádio ou da onipresença da TV. Nas páginas do inventário assinado por Accioly surgem nomes conhecidos, outros nem tanto, e muitas artimanhas que ainda hoje continuam a reger as complexas relações entre imprensa e política. 











Sucessos permanentes de O Cruzeiro:
acima, O Amigo da Onça, de Péricles.
Abaixo, a baiana de Salvador Marta Rocha,
primeira Miss Brasil, eleita em 26 de junho
de 1954, na capa da revista em 1° de agosto
do mesmo ano, na edição que trouxe um famoso
ensaio fotográfico imitado há décadas por todas
as candidatas aos títulos de Miss; e a celebração
de Odete Lara, Glória Menezes, Leonardo Villar
e Norma Bengell pela premiação em 1962 de
"O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte,
versão da peça teatral de Dias Gomes, até hoje
o único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro,
prêmio principal no Festival de Cannes.

Também abaixo: Geraldo Vandré nas páginas de
O Cruzeiro em 2 de outubro de 1968, na edição
que denunciou a desclassificação da canção
"Pra não dizer que não falei das flores" no
3º Festival Internacional da Canção, produzido
pela TV Globo. A canção de Vandré, apesar de
ser a grande favorita do público, não foi a vencedora
do festival por imposição da censura da ditadura militar.
O prêmio de campeã ficou com "Sabiá", canção de
Chico Buarque em parceria com Tom Jobim.

Na sequência abaixo, uma seleção em homenagem a
As Garotas, página criada e ilustrada por Alceu Penna,
publicada semanalmente durante 26 anos consecutivos,
de 1938 a 1964, levando para todo o Brasil a moda e os
costumes cariocas; e a estrela Carmen Miranda, grande
recordista de capas na trajetória de O Cruzeiro











  
Notáveis no 'esquadrão de ouro'



Também surge no livro de Accioly um elenco interminável de personalidades notáveis: aquelas que acabaram virando notícia – artistas, políticos, atletas, jogadores de futebol, nomes de primeira grandeza na história brasileira, alguns visitantes estrangeiros – e aquelas que fizeram a notícia, incluindo o trabalho em dupla de repórter e fotógrafo, que O Cruzeiro inaugurou e manteve como linha de frente, e célebres redatores, colunistas, chargistas, ilustradores. 

Um dos maiores sucessos de O Cruzeiro, a seção e o personagem "O Amigo da Onça" foram criados por um dos cartunistas fixos da revista, Péricles, inspirado em um outro personagem de sucesso na imprensa argentina da primeira metade do século 20. Outro grande sucesso da revista foi a seção "As Garotas", coluna impressa em cores semanalmente entre 1938-1964, produzida por Alceu Penna com seu traço característico em ilustrações sobre as 'jovens modernas' e breves textos de ironia e humor, levando para todo o Brasil a moda e os costumes cariocas. A seção "As Garotas" também foi considerada referência no comércio de tecidos e produtos direcionados ao público feminino e precursora na criação de uma moda brasileira. 


















Além de Péricles e Alceu, nomes que permanecem em destaque na imprensa como Millôr Fernandes e Ziraldo também fizeram parte dos quadros da revista, assim como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rachel de Queiroz e muitos outros. "O Cruzeiro só fez o sucesso que fez, durante tanto tempo, porque contava com um 'esquadrão de ouro' de grandes repórteres e de grandes fotógrafos. Eles é que foram as verdadeiras estrelas, porque levaram a atividade de imprensa no Brasil a um patamar novo e muito nobre. O 'esquadrão de ouro' de O Cruzeiro provocou uma profunda revolução no Brasil e no jornalismo brasileiro", defende Accioly, relembrando uma ou outra das grandes reportagens que fizeram história sobre índios, misses, escândalos, estrelas e até discos voadores, para destacar o mérito dos profissionais que fizeram a revista e que permanecem entre os mais brilhantes na imprensa brasileira.

"O Império de Papel" apresenta a lista completa do 'esquadrão de ouro' da revista que, em seus tempos áureos, era comparada a publicações internacionais como Life, Look, Vogue, Cosmopolitan, entre outras. Estão na lista o repórter David Nasser, que formou dupla com o fotógrafo Jean Manzon, além de outras duplas memoráveis reunindo nomes como Mário de Moraes e Ubiratan Lemos, Arlindo Silva e Jorge Ferreira, Odorico Tavares e José Medeiros, João Martins e Eduardo Keffel, Luciano Carneiro, Edmar Morel, Eugênio Silva, Flávio Damm, Carlos Moskovics, Salomão Scliar, Roberto Maia, Indalécio Wanderley, Pierre Verger, Luis Carlos Barreto – além de muitos e muitos outros e do próprio Accioly Netto, seguramente um dos personagens principais na saga de O Cruzeiro.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. O Cruzeiro nos bastidores. In: Blog Semióticas, 15 de setembro de 2013. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2013/09/o-cruzeiro-nos-bastidores.html (acessado em .../.../...).
















Acima, capa do catálogo da exposição organizada
pelo Instituto Moreira Salles; e fotografia das
páginas de O Cruzeiro com publicidade em que
uma família da elite assiste à novidade da TV
em São Paulo, em 1950, época da inauguração
da pioneira TV Tupi dos Diários Associados
de Assis Chateubriand.
 
 Também acima, fac-símile com uma das últimas
séries de grandes reportagens de O Cruzeiro, tendo
como tema as origens misteriosas da fortuna do
empresário e apresentador de TV Silvio Santos.
Produzida pelo repórter Arlindo Silva e o
fotógrafo Eduardo Roberto, a série teve início
em maio de 1971, com a reportagem de seis páginas
“O fenômeno Silvio Santos”, e prosseguiu ao longo
das 10 edições seguintes. Anos depois, Arlindo Silva
publicaria a primeira biografia de Silvio Santos

Abaixo, a estrela da TV Tupi, Hebe Camargo, na capa
de O Cruzeiro em 1963; Leila Diniz na edição de
junho de 1967; e Rita Lee em uma das últimas edições
da revista, em 1974, em foto de Indalécio Wanderley














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