Machado de Assis é apenas o maior escritor já produzido pela América Latina em qualquer época. .........–– Susan Sontag, 1990. |
O
maior cânone da literatura brasileira conquista cada vez mais
prestígio fora do Brasil, reconhecido por muitos, em vários países
– e muito além das fronteiras da língua portuguesa – como um
dos maiores escritores de todos os tempos. Alguns dos mais importantes e influentes escritores, ensaístas e críticos literários de nossa época publicaram páginas de elogios a Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), Susan Sontag, Umberto Eco, Salman Rushdie, Carlos Fuentes, José Saramago, Allen Ginsberg, Michael Wood, John Updike, Philip Roth e Harold Bloom entre eles. Sobre Machado, citado em seus estudos "A Angústia da Influência" (1973) e "O Cânone Ocidental" (1994), Bloom dedicou um capítulo inteiro do livro de 2003 "Gênio – Os 100 autores mais criativos da história da literatura", no qual destaca a originalidade e a energia criativa do mestre brasileiro, definido por ele como "uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo tipo de contextualização que falsamente se crê que possa produzir ou determinar os talentos e o espírito humano".
Bloom também confessa que já havia lido e se apaixonado pela obra de Machado, especialmente por "Memórias Póstumas de Brás Cubas", antes de saber que o mestre brasileiro era mulato, neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando Machado estava para completar 50 anos. "Ao ler Machado de Assis, presumi, erroneamente, que fosse o que chamamos 'branco' (mas que E. M. Foster, com muita graça, chamava de 'rosa-cinzento')", completa, reconhecendo em Machado mérito e honraria surpreendentes: segundo Harold Bloom, Machado de Assis deve ser considerado "the supreme black literary artist to date" (o maior artista literário negro até os dias de hoje).
Mais de um século antes do reconhecimento incondicional por Bloom e outros avatares internacionais da crítica e do pensamento contemporâneo, Machado, o romancista, dramaturgo, contista, poeta, jornalista, crítico, cronista, político respeitado e fundador da Academia Brasileira de Letras, foi aclamado em vida por seus pares e convivas. Depois de morto, passou a ser publicado e respeitado primeiro em Portugal, depois na Argentina e em outros países da América Latina. Na década de 1950, começou a ganhar as primeiras traduções em inglês e outras línguas, com a divulgação de sua obra no exterior ficando mais acentuada a partir dos anos 1960, quando foi incluído talvez por acidente nos pacotes de lançamentos na Europa e Estados Unidos dos escritores do "boom" do realismo mágico latino-americano, aos quais Machado antecedia desde o século 19.
Bloom também confessa que já havia lido e se apaixonado pela obra de Machado, especialmente por "Memórias Póstumas de Brás Cubas", antes de saber que o mestre brasileiro era mulato, neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando Machado estava para completar 50 anos. "Ao ler Machado de Assis, presumi, erroneamente, que fosse o que chamamos 'branco' (mas que E. M. Foster, com muita graça, chamava de 'rosa-cinzento')", completa, reconhecendo em Machado mérito e honraria surpreendentes: segundo Harold Bloom, Machado de Assis deve ser considerado "the supreme black literary artist to date" (o maior artista literário negro até os dias de hoje).
Mais de um século antes do reconhecimento incondicional por Bloom e outros avatares internacionais da crítica e do pensamento contemporâneo, Machado, o romancista, dramaturgo, contista, poeta, jornalista, crítico, cronista, político respeitado e fundador da Academia Brasileira de Letras, foi aclamado em vida por seus pares e convivas. Depois de morto, passou a ser publicado e respeitado primeiro em Portugal, depois na Argentina e em outros países da América Latina. Na década de 1950, começou a ganhar as primeiras traduções em inglês e outras línguas, com a divulgação de sua obra no exterior ficando mais acentuada a partir dos anos 1960, quando foi incluído talvez por acidente nos pacotes de lançamentos na Europa e Estados Unidos dos escritores do "boom" do realismo mágico latino-americano, aos quais Machado antecedia desde o século 19.
Ironia
do destino – pois ainda que o mestre brasileiro tenha incorporado o universo fantástico a seu repertório de tramas e personagens, o realismo mágico ou realismo fantástico é, a
rigor, uma referência específica à geração de
escritores contemporâneos ou posteriores a Jorge Luis
Borges e Julio Cortázar, na Argentina, a Gabriel García Márquez
na Colômbia, a Carlos Fuentes e Juan Rulfo no México, a Mario Vargas
Llosa no Peru, entre outros que escreveram e publicaram pela
primeira vez décadas e décadas depois da morte de Machado. Mais uma
façanha do Bruxo do Cosme Velho, 'avant la lettre' (veja
também Semióticas:
Bodas do 'boom'). "Bruxo
do Cosme Velho", aliás, é um antigo elogio – um codinome pelo qual Machado é conhecido nos meios literários desde o começo do século
20, pela força e pelos "encantamentos" da sua literatura.
O termo ganhou força também a partir dos anos 1960, depois que Carlos Drummond de Andrade publicou o
poema "A um bruxo, com amor" (no livro “A Vida Passada a Limpo”, de 1959), no qual o poeta fez referência à casa número
18 da rua Cosme Velho, situada no bairro de mesmo nome, no Rio de
Janeiro, endereço lendário porque ali morou, durante muitos anos, o bruxo Machado de Assis.
Assim
como as gerações da vanguarda no Brasil e na América Latina que
viriam depois dele, o autor de "O Alienista" (1882), "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), “Dom Casmurro” (1899) e outras obras-primas em gêneros narrativos diversos desafiou as
convenções estabelecidas da literatura em sua época. A recepção sobre a literatura de Machado teve uma trajetória crescente desde sua morte e ganhou ainda mais destaque a partir da segunda metade do século 20, quando ele, aclamado como um dos maiores
escritores do século 19, surgiu no mercado editorial e nos estudos
da crítica do Primeiro Mundo na mesma leva em que surgiram grandes nomes da
literatura da América Latina. Machado à frente de seu tempo: não é pouco.
Abrangência e complexidade
Político
dos mais hábeis em sua época, elevado à categoria de efígie
impressa nas notas de cruzeiro e de cruzado novo no último século, retratado como
personagem no cinema e na TV, como tema de carnaval no samba-enredo de escolas de samba, Machado de Assis, quando
vivo, assistiu a evoluções e transformações das mais marcantes na
vida política, social e cultural da nação – entre elas grandes
descobertas científicas, o fim da escravidão e a proclamação da
República. A abrangência e a complexidade das obras de Machado, e sua fortuna crítica, receberam mais um tributo à altura com os
ensaios reunidos em "Machado de Assis e a Crítica
Internacional", livro organizado por Benedito Antunes e Sérgio
Vicente Motta, publicado pela Editora Unesp.
Machado de Assis como testemunha de revoluções de seu tempo e como tradutor do
turbilhão realista para uma dimensão de alta literatura, atemporal
e universal, é uma tese que permeia o discurso da maioria dos 12
autores do Brasil e de outros países reunidos no dossiê de Benedito
Antunes e Sérgio Vicente Motta. O ponto de partida foi o Simpósio
Caminhos Cruzados: Machado de Assis pela Crítica Mundial, realizado
em 2008, ano do centenário da morte do autor, em São Paulo, com
diversos estudiosos internacionais de Machado apresentando suas
críticas, relatos de pesquisa e novos olhares sobre a obra do mestre.
Na equipe de críticos convidados, Roberto
Schwarz, Jean Michel Massa, K. David Jackson, Paul Dixon, Thomas
Sträter, Todd Garth, Élide Valarini Oliver, Amina Di Munno, Luiz
Roncari e Daphne Patai, além dos organizadores, trazem contribuições
privilegiadas que intensificam e ampliam o debate sobre o Bruxo,
estimulando novas abordagens e interpretações sobre a literatura que ele produziu e que permanece muito sedutora e muito atual, mesmo depois de mais de um século das publicações originais do autor.
Na
apresentação aos ensaios reunidos, Antunes e Motta constatam a
crescente valorização do Machado no exterior, bem como o interesse
despertado pelas ambiguidades surpreendentes em seus trabalhos. Entre
os tantos destaques na diversidade, Schwarz, no texto "Martinha
vs. Lucrecia", discute a divisão entre críticos universalistas
e localistas, lembrando que "a grandeza de Machado suscitou
linhas de explicação contrárias que em algum momento teriam de
discutir e competir".
No
artigo que encerra o livro "Machado de Assis e a Crítica
Internacional", Jean Michel Massa provoca e destaca, a partir do título: "A França que nos
legou Machado de Assis". Na argumentação de Massa, a cada ano que
passa Machado de Assis é cada vez menos "um estrangeiro fora de
seus país". Massa sugere que os leitores façam o caminho
inverso daquele que sempre foi apontado pelos muitos críticos brasileiros que se dedicaram aos estudos sobre Machado, buscando desta vez um certo olhar de Machado para o exterior.
Nestes
tantos caminhos cruzados, o leitor atento mais familiarizado com o
universo literário de Machado acaba percebendo uma breve cartografia
dos estudos, das tendências e das conquistas crítico-analíticas
nacionais e internacionais em relação à obra ímpar e extensa de
um dos maiores nomes da literatura. Benedito Antunes e Sérgio Motta,
professores de Literatura e Cultura Brasileira da Unesp, destacam que
tanto o simpósio de 2008 como o livro agora lançado representam
importante passo para a descoberta de comentários não só
inovadores, mas multiplicadores das formas de ler Machado de Assis.
"Trata-se
de um autor que oferece reflexões universais sobre a alma e o
comportamento humano, mesmo se reconhecidos seus vínculos
regionais", diz Antunes. Os caminhos cruzados entre a crítica
nacional e internacional, segundo Antunes, resultam em panoramas
surpreendentes que destacam a qualidade do grande escritor e
verificam como sua valorização no exterior é gradual e
progressiva.
Na
apresentação aos ensaios, Antunes e Motta ainda apontam que "há
um universalismo que Machado legou à nossa literatura e uma projeção
de nossa literatura à esfera internacional, ao construir uma arte ao
mesmo tempo brasileira e universal". A invenção machadiana já
pressupunha, portanto, os "caminhos cruzados".
Machado de Assis era um realista?
O ensaísta e professor Gustavo Bernardo defende uma tese que vai contra quase um século de crítica literária no Brasil. Em seu livro "O problema do realismo de Machado de Assis" (Editora Rocco), que está chegando às livrarias, ele argumenta que Machado, cânone maior da literatura no Brasil, não é um escritor realista. Na entrevista que fiz com ele, pelo telefone, para o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Gustavo Bernardo aponta que seu estudo, por certo audacioso, busca mostrar que os escritos do Bruxo do Cosme Velho não condizem com a classificação acadêmica imposta e ensinada há décadas em salas de aula de todo o Brasil.
No
livro você destaca que a ficção de mestres como Machado de Assis
estabelece um duplo caráter da linguagem, que tanto diz mais do que
queria dizer quanto não consegue dizer exatamente o que queria
dizer. Diante de tantos paradoxos, qual é o lugar de Machado de
Assis na literatura e na cultura brasileira?
Gustavo
Bernardo – Eu quis dizer que toda a linguagem que usamos
tem esse caráter duplo: sempre dizemos mais do que queríamos dizer
e nunca conseguimos expressar exatamente o que queríamos dizer. Ao
contrário do que imagina o senso comum escolar, a linguagem é
fundamentalmente equívoca. A compreensão da língua de escritores
como Machado faz com que eles explorem os equívocos de linguagem da
sua sociedade e do seu tempo, em especial aqueles que confundem a
realidade com os discursos sobre a realidade. Essa circunstância faz
com que possamos considerar Machado de Assis não apenas nosso maior
escritor mas também como nosso mais importante filósofo, uma vez
que a sua obra até hoje parece pensar profundamente sobre os nossos
equívocos, sobre os nossos paradoxos, sobre as nossas hipocrisias.
O
Bruxo do Cosme Velho em adaptações
no
cinema e na TV: acima Petrônio Gontijo
e
Viétia Rocha vivem o jovem Brás Cubas
e
sua amada Virgília em cena do filme de
2001, Memórias
Póstumas, com roteiro e
direção
de André Klotzel. Abaixo, o casal
Michel
Melamed e Maria Fernanda Cândido
vivem
Bentinho e Capitu na minissérie de
2008
da TV Globo Capitu,
com roteiro
adaptado
do romance Dom
Casmurro
e
direção de Luiz Fernando Carvalho
Considerando
a literatura em língua portuguesa e a literatura produzida no
Brasil, o gênio de Machado de Assis encontra algum precursor?
Não há precursor na literatura em língua portuguesa para Machado de Assis. É certo que autores como Eça de Queirós e José de Alencar foram muito importantes para ele, mas para que escrevesse antes contra eles do que como se os sucedesse esteticamente. Dom Casmurro é de certa forma uma resposta a ambos, tanto a O primo Basílio, de Eça, quanto a Lucíola, de Alencar: o romance machadiano desmonta tanto o realismo do autor português quanto o romantismo do brasileiro, de tabela desconstruindo radicalmente a visão que ambos tinham da mulher. Luísa e Lúcia/Maria da Glória começam suas histórias como personagens femininas densas e fortes, mas os autores as enfraquecem tanto que chegam mesmo a matá-las ao final, enquanto Capitu mantém sua força, sua densidade, sua ambiguidade e sua dignidade do princípio ao fim do romance, morrendo não em função das ações e omissões do narrador mas sim em função da idade.
Então é um erro apontar Eça de Queirós ou José de Alencar como precursores da literatura de Machado de Assis?
Encontro
precursores verdadeiros para Machado quer no filósofo francês
Michel de Montaigne quer no escritor espanhol Miguel de Cervantes.
Concordo inteiramente com o escritor mexicano Carlos Fuentes, que
considera Machado de Assis o único herdeiro literário de Cervantes
em toda a América, chegando a chamá-lo pela alcunha de “Machado
de La Mancha”. Na nossa língua, o melhor sucessor de Machado, até
porque muito diferente dele, é João Guimarães Rosa, que por mágica
coincidência nascia no mesmo ano em que morria Machado de Assis. Sua
Diadorim, de Grande sertão: veredas, é sem dúvida a
melhor companheira de Capitu na literatura brasileira.
E
a literatura brasileira hoje? Está melhor ou pior do que há tempos
passados?
Darei
uma resposta categórica: não sei! Acho que não temos como
responder a essa pergunta, e sempre me incomodam aqueles que tentam,
o que acontece periodicamente. Como diria o historiador Fernand
Braudel, “a fumaça dos acontecimentos nubla a visão dos
contemporâneos”. Primeiro, não temos a distância necessária
para avaliar a literatura contemporânea; segundo, não temos meios
adequados para comparar termos incomparáveis, quais sejam os
escritores e as suas obras. O estudo da literatura, no meu entender,
é o estudo da singularidade, não da similaridade. Penso que
empobrece a literatura e a leitura enquadrar obras e autores, quer
nos escolares estilos de época, quer nos modernos rankings de
melhores e piores.
Dos
tantos escritos que compõem a obra de Machado, qual você escolhe
como o seu favorito?
São
justamente tantos e tão bons que esta pergunta se faz a mais difícil
de todas. Meu primeiro impulso é oscilar entre Dom
Casmurro e O alienista, pela crítica
devastadora que ambos os títulos fazem à maneira moderna de pensar,
mas logo me vem à mente um romance da chamada primeira fase, tão
desprestigiada e tão excepcional quanto a chamada segunda fase.
Trata-se justamente do primeiro romance de Machado de Assis, sua
obra-prima nos dois sentidos do termo: Ressurreição. Este
romance, de maneira discreta, já contém em germe todas as
qualidades estéticas e filosóficas de Machado, a começar pela
excepcional ironia contida no título: não há ressurreição
alguma.
Esta
ironia é um golpe de “canhões de pelica” no romantismo...
Isso
mesmo. Machado é o nosso escritor mais cético. Aliás, são três
as qualidades de Machado que mais incomodam nossa crítica e nossa
pedagogia, por isso seus próceres tentam negá-las quase
desesperadamente: primeiro, nosso maior escritor é negro, logo,
tentam embranquecê-lo de diversas maneiras pouco sutis; segundo,
nosso maior escritor é o maior adversário do realismo, logo, tentam
sustentar o absurdo de que ele mesmo seria não só realista como o
próprio fundador do realismo no Brasil; terceiro, nosso maior
escritor é cético, logo, tentam desqualificar seu ceticismo,
vendo-o equivocadamente como pessimismo ou niilismo.
Woody
Allen, em recente entrevista ao jornal inglês The Guardian,
destaca que Machado é um de seus escritores preferidos e que ele se
identifica com o estilo e as tramas do autor de Dom Casmurro.
Você concorda que há semelhanças entre os filmes de Woody Allen e
a literatura de Machado?
Sim,
sem dúvida. Primeiro, ambos são tremendamente irônicos e
engraçados, apesar de não provocarem gargalhadas mas sim sorrisos
inteligentes. Segundo, ambos são mestres na arte difícil da
tragicomédia, a tal ponto que suas obras não evoluem da comédia
para a tragédia, como de hábito, mas são cômicas e trágicas do
início ao fim, da primeira à última página ou cena. Terceiro,
ambos são herdeiros da meta-ficção de Cervantes, porque ambos
quebram a cada página ou cena o contrato de ilusão realista entre
autor e leitor, ou entre diretor e espectador. Quarto, ambos
questionam a raiz de todos os discursos humanos, desconfiando sempre
de que não sabemos o que temos certeza de que sabemos, o que prova
que ambos são profundamente céticos – o que não torna nem um nem
outro pessimista ou niilista, mas todo o contrário. Ambos, por fim,
são príncipes da dúvida, da inteligência e da tolerância.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O Bruxo e a crítica internacional. In: Blog
Semióticas,
18 de julho de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/07/o-bruxo-e-critica-internacional.html
(acessado em .../.../...).