Há reportagens e há livros que têm o mérito de transcender a época em que foram publicados e, com o passar dos anos, ganham a condição de capítulos importantes da História. No Brasil, foi assim com as reportagens que Euclides da Cunha (1866-1909) fez no interior da Bahia sobre a Guerra de Canudos, em 1897, depois reunidas em "Os Sertões" (1902), um daqueles livros que merecem o adjetivo "emblemático". Também fizeram História, entre outras, a série de matérias e fotografias sobre a fome no Nordeste brasileiro, publicadas a partir da década de 1940, na revista "O Cruzeiro", pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon – ou ainda a célebre entrevista que Samuel Wainer fez com Getúlio Vargas para os "Diários Associados" em 1949 e que deu origem ao "queremismo", a campanha para a volta de Vargas ao cargo de presidente da República, cargo para o qual ele se candidatou e foi eleito em 1950.
Fora do Brasil, um dos trabalhos jornalísticos que marcaram época e entraram para a história do século 20 foi realizado por dois norte-americanos: o fotógrafo Walker Evans (1903-1975) e o jornalista James Rufus Agee (1909-1955). A série memorável e pioneira de reportagens produzidas por Evans e Agee na década de 1930 retratou a vida dura das famílias de agricultores e de trabalhadores nômades no sul e no sudeste dos Estados Unidos, levados à miséria pelos reflexos econômicos do "crash" de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York.
Foi o início da época depois chamada de "Grande Depressão". As reportagens da dupla Walker Evans e James Agee, comoventes e surpreendentes, foram publicadas primeiro pela revista "Fortune" e depois reproduzidas no mundo inteiro, inclusive pela revista brasileira "O Cruzeiro". Em 1941, o trabalho de Evans e Agee foi reunido em um livro que se tornou uma lendária obra de referência – "Elogiemos os Homens Ilustres", lançado agora pela primeira vez no Brasil em edição ilustrada pela Companhia das Letras.
A série de documentação fotográfica que a dupla Walker Evans e James Agee registrou viajando pelo Sul dos EUA, entre 1935 e 1936, foi na verdade um trabalho contratado pelo governo do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, na época interessado em criar um arquivo de imagens sobre a pobreza na região para fundamentar o trabalho de uma agência estatal. Teoricamente, o arquivo serviria ao programa social do governo para a erradicação da pobreza e a construção de uma identidade nacional – o chamado New Deal, destinado a atender segmentos menos favorecidos que ficaram ainda mais pobres com os desdobramentos do “crash” de 1929, entre eles os plantadores de algodão do Alabama.
Considerando a radical transformação da agência estatal (um serviço de assistência aos agricultores convertido poucos anos depois no Office for War Information), fica a dúvida se as fotografias e reportagens da dupla não serviriam a outro propósito – em especial o controle ideológico da população local por parte do Estado, por exemplo. Para além do uso político da pesquisa, entretanto, as imagens de Evans e os textos de Agee, desde a primeira publicação na "Fortune", foram transformados em parâmetro para o conceito do que fosse a "objetividade jornalística".
Amor em tempos de penúria
Durante quatro semanas, fotógrafo e repórter conviveram com três famílias de meeiros pobres do Alabama, numa relação tão próxima que chegaram a dormir nas choupanas miseráveis e, diz a lenda, se apaixonaram por duas das garotas pobres do lugar. O resultado final da experiência fez história e mudou os rumos do jornalismo e da fotografia, extrapolando ao extremo os limites do que era conhecido como qualidade nas matérias publicadas na imprensa e emplacando como rotina o trabalho jornalístico a quatro mãos de repórteres e fotógrafos – prática que perdura em todo o mundo nos principais veículos de imprensa até os nossos dias.
"Estávamos deitados de costas separados por cerca de meio metro, calados, olhos abertos, ouvindo", relata James Agee em "Elogiemos os Homens Ilustres", traduzindo em um texto sofisticado, na fronteira entre o jornalismo e a melhor literatura, uma das muitas noites em que ele e o fotógrafo Walker Evans dormiram alojados com simplicidade e gentileza pelas famílias que retratavam, com um tom característico de brutal realismo, mas pontuado de poesia.
"Seres humanos, com a ajuda de mulas, trabalhavam essa terra para que pudessem viver. A esfera de poder de uma só família humana e uma mula é pequena; e dentro dos limites de cada uma dessas pequenas esferas a essencial fragilidade humana, a chaga finalmente morta que é viver e a força indignada para não perecer, ergueram contra suas circunstâncias hostis esta casca de ferida, este abrigo para uma família e seus animais", registrou Agee.
Se a qualidade literária dos textos foge do estilo frio e trivial das notícias tradicionais, as imagens de Evans não deixam por menos. Cada fotograma, por mais simples que pareça, à primeira vista, está carregado de emoções: cenas do trabalho no campo, casebres de madeira, rostos magros e sofridos, crianças tristes, talheres entortados guardados em buracos na parede, botinas gastas esquecidas em um canto, mães maltrapilhas, pés descalços, moscas pousadas no prato de comida.
A edição brasileira inclui 60 fotos impressionantes, em matizes de preto e branco, encartadas, antecedendo a íntegra do texto de Agee – que também pode ser lido como um ensaio brilhante sobre os limites da objetividade jornalística naquelas situações em que o repórter tem ou cria uma relação afetiva muito próxima com suas fontes. Nos anos e décadas seguintes, as reportagens de Walker Evans e James Rufus Agee sobre as vítimas da "grande depressão" provocariam revoluções no jornalismo.
Entre tigres e cavalos
De certa forma, a pobreza que se seguiu ao "crash" da Bolsa de Nova York deu origem a um vigoroso movimento intelectual e artístico, que se engajou em revelar e denunciar as novas e terríveis condições de vida dos agricultores da região sudeste dos Estados Unidos, que pela primeira vez eram reveladas em palavras e imagens que retratavam muita penúria. Na trilha desbravada por Evans e Agee, muitos outros escritores, fotógrafos, pesquisadores das ciências sociais e da antropologia, dramaturgos e cineastas puseram o pé na estrada para desvendar a "verdadeira América".
De certa forma, a pobreza que se seguiu ao "crash" da Bolsa de Nova York deu origem a um vigoroso movimento intelectual e artístico, que se engajou em revelar e denunciar as novas e terríveis condições de vida dos agricultores da região sudeste dos Estados Unidos, que pela primeira vez eram reveladas em palavras e imagens que retratavam muita penúria. Na trilha desbravada por Evans e Agee, muitos outros escritores, fotógrafos, pesquisadores das ciências sociais e da antropologia, dramaturgos e cineastas puseram o pé na estrada para desvendar a "verdadeira América".
Era como se as políticas assistencialistas batizadas de "New Deal", adotadas por Franklin Roosevelt (que presidiu os Estados Unidos entre 1933 e 1945, em três mandatos completos e nos meses iniciais do quarto, quando morreu), transbordassem de forma inesperada para a esfera da arte e da cultura. Produzidas no início da primeira gestão de Roosevelt no cargo de presidente do país, as fotos de Walker Evans e os textos de James Agee publicados na revista "Fortune" foram e ainda são fonte de inspiração para muitos.
Além de divisor de águas para o "novo jornalismo", é possível perceber a influência das reportagens pioneiras de Evans e Agee em outros trabalhos que também se tornariam clássicos norte-americanos imbatíveis, caso da obra-prima do escritor John Steinbeck, “As Vinhas da Ira” (1939), romance que recebeu o prestigiado Prêmio Pulitzer em 1940 e teve peso na escolha de Steinbeck para o Prêmio Nobel de Literatura em 1962. Na ficção que mais parece um livro-reportagem, Steinbeck transporta à literatura a trágica odisseia de uma família de agricultores liderada por um herói idealista, Tom Joad, e a exploração cruel a que estavam submetidos os trabalhadores rurais, a maioria deles desempregados e nômades. As reportagens de Evans e Agee e o romance de Steinbeck, por sua vez, também dariam origem ao filme memorável que o cineasta John Ford realizou em 1940.
O sucesso comercial e político alcançado pelo primeiro trabalho da dupla Evans e Agee, com seu tom emocional e dramático, a despeito da pobreza dos retratados, levaria o fotógrafo e o jornalista para outros caminhos, distantes do Alabama, na década seguinte.Walker Evans e suas fotografias em claro-escuro passariam a integrar o acervo de grandes museus, como o Museum of Modern Art (MoMa) e o Metropolitan Museum, de Nova York. Agee, por sua vez, iria tornar-se poeta, romancista premiado e roteirista de sucesso disputado pelos grandes estúdios em Hollywood.
Levam a assinatura personalíssima de James Rufus Agee o roteiro de clássicos do cinema como "Uma Aventura na África" ("The African Queen"), que John Huston filmaria com Katharine Hepburn e Humphrey Bogart em 1951, entre outros grandes filmes. Agee também seria celebrado por seus pares como um dos mais influentes críticos de cinema que atuaram na América no século 20. Uma das várias e saborosas máximas atribuídas a ele é por certo ainda hoje exemplar: "os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução".
A Grande Depressão
A primeira edição de "Elogiemos os Homens Ilustres" no Brasil coincide com o lançamento de várias outras três publicações que por outros caminhos abordam o mesmo tema. Entre elas, pelo menos três merecem destaque – o terceiro número da revista "Serrote", editada pelo Instituto Moreira Salles; o livro "A Grande Depressão - Política e Economia na Década de 1930 na Europa, Américas, África e Ásia" (editora Civilização Brasileira), organizado por Flávio Limoncic e Carlos Palomanes; e "Bonnie & Clyde – A Vida por Trás da Lenda" (editora Larousse do Brasil), de Paul Schneider, best-seller internacional que conta a vida atribulada e apaixonada de Bonnie Parker e Clyde Barrow, o casal de criminosos mais famoso dos Estados Unidos na década de 1930.
Na seções da revista "Serrote", as fotografias de Walker Evans dividem o destaque com uma seleção invejável de ensaios de e sobre nomes de primeira grandeza – Julio Cortázar, Roland Barthes, Fred Astaire, Henry James e Virginia Woolf, entre outros. Na revista, Evans aparece em outro ensaio fotográfico monumental que marcou época e que também virou parâmetro de qualidade, mas que permanecia inédito no Brasil: a edição de “Serrote” traz encartada uma seleção de 16 fotos da série que Evans produziu com passageiros do metrô e intitulada "Muitos São Chamados". A série saiu em livro pela primeira vez em 1966: homens, mulheres, jovens, crianças, casais, pessoas elegantes e imigrantes pobres surgem em imagens monocromáticas e emblemáticas da mais variada expressão.
Entre fevereiro de 1938 e janeiro de 1941, Walker Evans viajava com frequência no metrô de Nova York, vestindo um sobretudo sob o qual ocultava uma câmera Contax de 35mm. Produziu 89 retratos impressionantes de pessoas anônimas que, na quase totalidade dos casos, estavam tão absortas na vida que sequer percebiam que naquele momento estavam sendo fotografadas.
Acompanha a seleção de fotos de "Serrote" um ensaio inspirado de Samuel Titan Jr. que defende uma tese ainda mais surpreendente. Segundo o tradutor e professor da USP, os retratos reunidos em "Muitos São Chamados" anteciparam a maioria dos traços estilísticos que ficariam conhecidos nos anos seguintes, no cinema e na literatura, como gênero "noir".
Acompanha a seleção de fotos de "Serrote" um ensaio inspirado de Samuel Titan Jr. que defende uma tese ainda mais surpreendente. Segundo o tradutor e professor da USP, os retratos reunidos em "Muitos São Chamados" anteciparam a maioria dos traços estilísticos que ficariam conhecidos nos anos seguintes, no cinema e na literatura, como gênero "noir".
Era Vargas, Roosevelt, Bonnie & Clyde
Mais de 80 anos depois da crise econômica que abalou o mundo e tornou os pobres ainda mais pobres, o "crash" da Bolsa de Valores de Nova York e seus reflexos dramáticos pelos cinco continentes também ganham uma reflexão brasileira na série de artigos inéditos organizados por Flavio Limoncic e Francisco Carlos Palomanes Martinho. Em "A Grande Depressão", Limoncic e Palomanes reúnem extratos de teses para mostrar, tanto ao leitor comum como aos estudiosos da questão, que a perplexidade provocada pela atual crise financeira internacional não é maior que aquela deflagrada a partir de 1929.
Até
as circunstâncias históricas e o status das personalidades
envolvidas têm estranhas simetrias. Basta lembrar cenas pitorescas
dos presidentes do Brasil e dos Estados Unidos, na década de 1930
como na atualidade. Em 1936, em visita ao Rio de Janeiro, Franklin D.
Roosevelt referia-se a Getúlio Vargas, então conhecido como "pai
dos pobres", com altos elogios, afirmando que Vargas era o
verdadeiro inventor do "New Deal" – programa
criado por Roosevelt para tentar buscar uma solução para reduzir a
pobreza e aplacar a crise agrícola dos Estados Unidos, durante o
período da Grande Depressão, e que tornou-se um baluarte de
recuperação da economia norte-americana.
“Duas
pessoas inventaram o New Deal: o presidente do Brasil e o presidente
dos Estados Unidos”, declarou Roosevelt aos jornalistas durante um encontro com Vargas no Rio de Janeiro, em 1936. Ironias do destino: em
abril de 2009, ao encontrar o presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva em um evento
diplomático na Europa, organizado para homenagear o presidente Lula, o presidente dos EUA, Barack Obama, declarou aos jornalistas presentes: "That's
my man!" – palavras que lembram aquele elogio polido
e político declamado por Roosevelt para Vargas na década de 1930.
Os
tempos são outros e a crise também, mas os passos dos atuais
governantes seguem caminhos parecidos com os daquela época, conforme
destacam Limoncic e Palomanes e demais autores reunidos em "A
Grande Depressão", empenhados em desvendar as origens daquela
crise que se espalhou pelo mundo afora, seu impacto nas economias
nacionais e na própria teoria econômica. Ontem, como hoje, a
dimensão econômica dos episódios históricos não pode nunca ser
dissociada da dimensão política – alertam os
autores.
Também abordando os reflexos imediatos da crise de 1929,
"Bonnie & Clyde - A Vida por Trás da Lenda", o livro de de Paul Schneider, traz minúcias sobre a explosiva trajetória do casal de criminosos mais famoso da década de 1930, e talvez de todo o século 20, que também marcaram
época em Hollywood – desde que o sucesso do filme de 1967 (no Brasil,
lançado como “Uma Rajada de Balas”), dirigido por Arthur Penn, com as interpretações memoráveis de Faye Dunaway e Warren Beatty, mudou a forma
como o cinema mostrava para as grandes plateias cenas de sexo e violência.
O livro de Paul Schneider busca uma certa estratégia de concentrar várias versões dos fatos em uma só narrativa – mesma técnica inaugurada no cinema pelo “Rashomon” de Akira Kurosawa em 1951 e repetida em grande estilo em 1991 por Oliver Stone em seu "JFK". Poesia e drama se misturam ano após ano na trilha de crimes e tiroteios e declarações de amor e beijos apaixonados de Bonnie & Clyde até o desfecho cruel, numa manhã ensolarada em 23 de maio de 1934.
No relato biográfico de Schneider, como no filme de Arthur Penn, a cena final da trajetória de Bonnie & Clyde é melancólica. Mas para surpresa de todos, e como um ingrediente lendário a mais para perpetuar a história dos dois no imaginário popular, até mesmo neste momento eles são capazes de trocar olhares apaixonados, como se estivessem mesmo satisfeitos por terem chegado ao fim juntos. "Centenas de balas", escreve Schneider, comovido e comovente.
"Mas depois que eles param de atirar o carro simplesmente desliza devagar. Como uma pantera, dizem os tiras. Eles não sabem nada sobre ela. E, claro, há o carro em si, parecendo uma peneira de tantos buracos". Como cada personagem anônimo, muito pobre e terrivelmente humano nas fotografias de Walker Evans e nos textos do "novo jornalismo" inventado por James Rufus Agee, o casal de foras-da-lei que entrou para a história na década de 1930, que caiu nas graças do público apesar da sequência infinita de crimes violentos e que, décadas depois de ser massacrado a tiros por policiais em uma emboscada, conquistou status de estrelas de cinema, resume com intensidade toda uma época.
No relato biográfico de Schneider, como no filme de Arthur Penn, a cena final da trajetória de Bonnie & Clyde é melancólica. Mas para surpresa de todos, e como um ingrediente lendário a mais para perpetuar a história dos dois no imaginário popular, até mesmo neste momento eles são capazes de trocar olhares apaixonados, como se estivessem mesmo satisfeitos por terem chegado ao fim juntos. "Centenas de balas", escreve Schneider, comovido e comovente.
"Mas depois que eles param de atirar o carro simplesmente desliza devagar. Como uma pantera, dizem os tiras. Eles não sabem nada sobre ela. E, claro, há o carro em si, parecendo uma peneira de tantos buracos". Como cada personagem anônimo, muito pobre e terrivelmente humano nas fotografias de Walker Evans e nos textos do "novo jornalismo" inventado por James Rufus Agee, o casal de foras-da-lei que entrou para a história na década de 1930, que caiu nas graças do público apesar da sequência infinita de crimes violentos e que, décadas depois de ser massacrado a tiros por policiais em uma emboscada, conquistou status de estrelas de cinema, resume com intensidade toda uma época.
por José Antônio Orlando.
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Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Homens
ilustres.
In: Blog
Semióticas,
5
de janeiro
de 2012.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/01/homens-ilustres.html
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