Rico
só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver
com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não
contrariando
suas disposições, não se rebelando contra o
seu curso, não irritando
sua corrente, estando aberto para o
seu fluxo, brindando-o antes
com sabedoria para receber
dele os favores e não a sua ira.
Raduan
Nassar em “Lavoura Arcaica”.
Foi
uma premiação por unanimidade do júri: Raduan Nassar, 80 anos,
venceu hoje o Prêmio Camões 2016. O escritor, que é filho de
imigrantes libaneses e nasceu na cidade paulista de Pindorama, é o
12° brasileiro a receber o prêmio – considerado a mais importante
distinção em literatura concedida a autores de língua portuguesa.
A premiação surpreende ainda mais quando se sabe que o vencedor
Raduan Nassar já anunciou em 1984 que havia abandonado a literatura, evita entrevistas, recusou convites para participar de eventos internacionais importantes (como a Feira do Livro de Frankfurt de 2013, que teve o Brasil como homenageado), ignorou cerimônias de honrarias oficiais do Ministério da Cultura dos governos de FHC e de Lula, e tem uma trajetória de apenas três livros publicados: os romances
“Lavoura Arcaica” (1975) e “Um Copo de Cólera” (1978) e o
livro de contos “Menina a Caminho” (1994).
Os
três livros alcançaram sucesso a partir do lançamento e receberam
as principais premiações do Brasil: “Lavoura Arcaica” recebeu
em 1976 o Prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras
(categoria Romance), o Prêmio Jabuti (categoria Revelação de
Autor) e o Prêmio APCA, da Associação Paulista dos Críticos de
Arte (menção honrosa, categoria Revelação de Autor); “Um Copo
de Cólera” recebeu o Prêmio APCA na categoria Melhor Ficção em
1978; e “Menina a Caminho” recebeu o Prêmio Jabuti em 1998 na
categoria Contos e Cronicas. Os três livros também foram traduzidos
a partir da década de 1980 para publicação em inglês,
espanhol, alemão, italiano, croata e francês, com o lançamento de "Lavoura Arcaica" e "Um Copo de Cólera" em um só volume, em 1984, pela prestigida Editora Gallimard.
A
popularidade de
Raduan Nassar aumentou
com o sucesso de público e crítica para a adaptação dos livros
para o cinema: “Um Copo de Cólera” virou filme em 1999, com
direção de Aluizio Abranches e roteiro de Abranches e Flávio
Tambellini; “Lavoura Arcaica” teve direção de Luiz Fernando
Carvalho em 2001, com roteiro escrito por Carvalho em colaboração
com o próprio Raduan Nassar. “Um
Copo de Cólera”, com o casal de protagonistas vivido por Júlia
Lemmertz e Alexandre Borges, recebeu seis indicações, incluindo a
de Melhor Filme, no Grande Prêmio Brasil de Cinema Brasileiro no ano
2000. “Lavoura Arcaica”, que tem no elenco da saga familiar
Selton Mello, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha e Simone
Spoladore, entre outros, foi premiado na Mostra de Cinema de São
Paulo e nos festivais de Brasília, Montreal, Cartagena, Havana,
Buenos Aires e Guadalajara, vencendo também o Grande Prêmio Brasil
de Cinema Brasileiro do ano 2002 nas categorias de Melhor Atriz
(Juliana Carneiro da Cunha) e Melhor Fotografia.
Força
poética da prosa
Antes
de ser anunciado como vencedor do Prêmio Camões 2016, Raduan
Nassar também foi notícia recentemente como um dos finalistas do
Prêmio Man Booker Internacional – que em maio anunciou como
vencedora a escritora sul-coreana Han Kang. No informe que
anunciou o vencedor, o júri e a organização do 28º Prêmio Camões
justificam a escolha pela “extraordinária qualidade da linguagem”
e “força poética da prosa” de Raduan Nassar, comparando o
escritor a nomes consagrados da literatura brasileira como Clarice
Lispector e Guimarães Rosa.
O
informe do júri também declara que “através da ficção o autor
revela, no universo da sua obra, a complexidade das relações
humanas em planos dificilmente acessíveis a outros modos do
discurso” – acrescentando que “muitas vezes essa revelação é
agreste e incômoda, e não é raro que aborde temas considerados
tabu”.
O
burburinho em jogo na revelação “agreste e incômoda”, que o
júri do Prêmio Camões ressalta na literatura de Raduan Nassar,
também se expressa em sua trajetória autobiográfica de projetos
interrompidos e de alguns cursos superiores não concluídos. Depois
de publicar os dois romances, o escritor decidiu pelo silêncio em
relação às propostas de noites de autógrafos, debates, assédio
da imprensa. Jamais admitiu autografar suas obras em festas de
lançamento e, a partir de meados da década de 1980, passou a viver
recluso em sua fazenda na região de Buri, interior de São Paulo.
Inconstante
e fascinante
Somente
recentemente Raduan Nassar rompeu esse isolamento e começou a
aparecer em público, mas sempre com escassas palavras. Em 2014, às
vésperas da eleição presidencial, declarou seu apoio à
candidatura de Dilma Rousseff (PT) e condenou o apoio da família de
Miguel Arraes e de Eduardo Campos à candidatura Aécio Neves (PSDB).
Antes, em 2012, havia doado a fazenda Lago do Sino, propriedade de
sua família com 643 hectares em Buri, para que o governo Dilma
instalasse um campus da Universidade Federal de São Carlos,
inaugurado em março de 2014. Outra exceção foi em 31 de março de
2016, quando causou alvoroço ao surgir em um evento no Palácio do
Planalto para discursar a favor da presidenta Dilma, contra o golpe
que estava sendo armado e em defesa da Democracia.
“Os
que tentam promover a saída de Dilma arrogam-se hoje, sem pudor,
como detentores da ética, mas serão execrados amanhã”, afirmou,
em discurso transmitido ao vivo pela Internet, diante da presidenta e
da plateia de artistas e lideranças culturais, sob aplausos
incondicionais. Mesmo que a literatura de Raduan Nassar seja, há
décadas, aclamada de forma francamente consensual, esta sua recente
intervenção em defesa de Dilma e pela Democracia no Brasil traz à
sua escolha para o Prêmio Camões uma inevitável dimensão política
de repercussão internacional.
Camões
para Raduan Nassar:
acima
e abaixo, o escritor em
novembro
de 2015 fotografado
por
Eduardo Simões |
“Abandonei
o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de
letras na universidade, o curso de direito no último ano, a empresa
familiar assim que meu pai faleceu”, declarou Raduan Nassar em uma
das raras entrevistas, publicada em julho de 2012 pela Revista Piauí.
“Abandonei ainda uma criação de coelhos, o jornalismo e outras
coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que
só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em
personagem fascinante?”
Em
outra rara entrevista, publicada em novembro de 2015 pelo Blog do IMS
– Instituto Moreira Salles, que também dedicou a Raduan Nassar, em
setembro de 1996, uma edição completa em livro do inventário de
fortuna crítica “Cadernos de Literatura Brasileira” – o
escritor retorna à mesma dúvida que paira sobre muitos de seus
leitores. Quando a equipe do IMS pergunta sobre o que o levou a
dedicar-se inteiramente à literatura numa época, renunciando a tudo
em nome dela, e depois parar de escrever, Raduan Nassar responde:
“Foi a paixão pela literatura, que certamente tem a ver com uma
história pessoal. Como começa essa paixão e por que acaba, não
sei.”
A
resposta para a questão formulada pelo próprio escritor supõe
complexidades e complexidades, por certo intangíveis – conforme
apontam as reflexões que o crítico literário José Castello também
apresenta sobre Raduan Nassar e sua obra bissexta no ensaio “Atrás
da Máscara”, publicado por Castello no livro “Inventário das
Sombras” (Editora Record, 1999). Castello compara o escritor ao lendário Arthur Rimbaud, que abandonou no auge e muito jovem Paris e as glórias da literatura para viver do tráfico de escravos e de armas no continente africano.
“Raduan
Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura
para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e
desregrada, pela mecânica suave da avicultura (...). O sucesso de
seus dois primeiros livros”, argumenta Castello, “parece ter
excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado
pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu
caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e,
assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar
menos infeliz.”
Densidade
acima da extensão
O
informe apresentado pelo júri do Prêmio Camões 2016 também
destaca que a literatura de Raduan Nassar trabalha o idioma de forma
olímpica e poética ao tratar das relações familiares e dos afetos
e ao recontar, de forma sutil, a trajetória da imigração e a
tensão (social, cultural, emocional) entre o campo e a cidade,
através de recursos como “o uso rigoroso de uma linguagem cuja
plasticidade se imprime em diferentes registros discursivos
verificáveis numa obra que privilegia a densidade acima da
extensão”.
Brasil
e Portugal estavam empatados com 11 vitórias no Prêmio Camões.
Raduan Nassar trouxe o desempate como 12º brasileiro a vencer,
depois de João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993),
Jorge Amado (1994), Antonio Candido (1998), Autran Dourado (2000),
Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo
Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2013) e
Alberto da Costa e Silva (2014). Também venceram a premiação,
entre outros, os portuguêses José Saramago (1995), Miguel Torga
(1989) e Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), e os escritores
moçambicanos Mia Couto (2013) e José Craveirinha (1991).
Raduan
Nassar receberá um total de 100 mil euros (R$ 398,8 mil) com o
Prêmio Camões, distinção que é entregue desde 1989 pelos
governos de Portugal e do Brasil a autores que tenham contribuído
para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da língua
portuguesa. O júri da edição 2016 do prêmio foi formado por Paula
Morão, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(Portugal); Pedro Mexia, escritor (Portugal); Flora Sussekind,
escritora e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Brasil); Sérgio Alcides do Amaral, escritor e professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil); Lourenço do Rosário,
professor e Reitor da Universidade Politécnica de
Maputo (Moçambique); e Inocência Mata, professora universitária da
Faculdade de Letras de Lisboa e da Universidade de Macau (São Tomé
e Príncipe).
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Camões para Raduan Nassar. In: Blog
Semióticas,
30 de maio de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/05/camoes-para-raduan-nassar.html
(acessado em .../.../...).
Para comprar o livro Um Copo de Cólera, clique aqui.
Para comprar o livro Obra Completa, de Raduan Nassar, clique aqui.
Para ler a entrevista de Raduan Nassar ao Blog do IMS, clique aqui.
Ábum
de Família: Raduan Nassar (o terceiro na primeira fila,
a
partir da esquerda) em um baile de Carnaval na década de 1940
em
sua cidade-natal, Pindorama, no interior de São
Paulo
|