Desde
as relíquias da mais remota Antiguidade às instalações multimídia
contemporâneas, não faltam obras-primas da história da arte
dedicadas ao tema. Na Arte Moderna, os exemplos também formam uma
extensa lista – incluindo criações a seu tempo polêmicas e
revolucionárias. Da “Olympia” (1863), de Édouard Manet, a
“L'Absinthe” (1875), de Edgar Degas, ou
às “Les Demoiselles d’Avignon” (1907),
de Pablo Picasso, e daí a tantas outras mais ou menos consagradas,
as mulheres dos bordéis e cabarés são as musas inspiradoras e
presença constante na obra de Henri de Toulouse-Lautrec, Paul
Gauguin, Edvard Munch, Maurice de Vlaminck, Kees van Dongen,
František Kupka, Jean-Auguste Ingres, Pierre Bonnard ou Vincent van
Gogh, entre outros mestres.
Muitas
destas obras-primas da Arte Moderna estarão reunidas no Musée
d'Orsay, em Paris, de 22 de setembro até 20 de janeiro de 2016,
no primeiro grande evento dedicado
ao tema Arte & Prostituição.
Intitulada
“Splendeurs et Misères. Images de la Prostitution, 1850-1910”, a
programação tem uma grande exposição de artes plásticas –
também a maior já realizada sobre o assunto, reunindo um extenso
acervo de peças originais que inclui pinturas, esculturas, cartazes,
desenhos, objetos decorativos, daguerreótipos e fotografias de época
– e uma série de palestras, debates, mostra de filmes,
apresentação de recitais de ópera, concertos e performances.
Todas as obras na exposição principal e nos eventos
paralelos da programação abordam a prostituição – ou “o amor
em troca de dinheiro nos bordéis e cabarés e também nas ruas,
hotéis, cinemas ou na Opera House”, como define o ensaio de
apresentação à exposição, a cargo da equipe de curadoria formada
por Marie Robert e Isolde Pludermacher, diretoras do Musée d'Orsay,
com as colaborações de Richard Thomson, professor de História da
Arte da Universidade de Edinburg, do Reino Unido, e de Nienke
Bakker, do Van Gogh Museum, da Holanda.
A partir do recorte temático ousado para uma grande
exposição, tão polêmico que permanecia inédito no circuito dos
grandes museus – a abordagem da prostituição pelas obras-primas
reunidas pela curadoria do Musée d'Orsay permite
estabelecer novos olhares sobre o século 19. Há os avanços nas
questões de moralidade e na liberalização dos costumes, mas também
há as questões específicas das descobertas científicas e dos
avanços da técnica que estão na gênese do que conhecemos
atualmente como Arte Moderna.
Pela trajetória cronológica das obras que formam o
acervo da exposição “Esplendores e Misérias”, é possível perceber estes avanços da técnica através do
modo como artistas franceses e estrangeiros, estabelecidos em Paris e
fascinados pelas mulheres da vida boêmia e mundana dos bordéis e
das ruas, também procuravam, entre o Segundo Império e o fim da
Belle Époque, por novos e às vezes radicais meios pictóricos para
representar realidades e fantasias.
Os negócios privados com ramificações públicas, que
a prostituição representava e representa, ganharam maior destaque no final do
século 19 e também passaram à condição de interesse central na
obra de vários artistas e escritores, ao mesmo tempo em que o
progressivo movimento migratório das populações rurais formava as
multidões empobrecidas e proletárias das cidades, provocando
aumento crescente da criminalidade. Nas cenas retratadas pelos mestres da literatura e da Arte Moderna, multidões, criminosos, bordéis e prostitutas vão se tornando inseparáveis da paisagem urbana.
No período histórico traçado pela exposição, que
tomou o título de um dos romances de Honoré de Balzac, “Esplendor
e Misérias das Cortesãs” – parte integrante de “As Ilusões
Perdidas” (1843), que trata das desventuras do jovem poeta Lucien
de Rubempré – são duas revoluções, a Revolução Francesa e a
Revolução Industrial, que formam o pano de fundo da crônica social
e mundana da Paris, onde a prostituição passou a ser assunto frequente e
interesse central na rotina da cidade e de seus habitantes.
Nudez embrutecida e melancólica
Além das cortesãs do livro de Balzac, o esplendor e a
miséria da prostituição na França do Oitocentos também surgem
entre as tramas e personagens de outros grandes nomes da literatura da época,
incluindo Charles Baudelaire, Émile Zola, Gustave Flaubert – e
também de outros países, com destaque para o brasileiro José de
Alencar e seu romance “Lucíola”, publicado em formato de
folhetim em 1862, muito avançado para seu tempo. Assim como os mestres franceses e como outros autores brasileiros que viriam depois dele, Alencar também aborda
uma trama de contradições e dificuldades econômicas que culmina com a hipocrisia, o preconceito latente e a intolerância implacável da sociedade, seja
contra a presença de cortesãs e prostitutas ou contra "pecadores" que tentam esquecer o passado para recomeçar uma vida nova e "honrada".
As
atividades das prostitutas eram permitidas, mas também eram rigidamente
regulamentadas por leis e vigiadas na França durante todo o século 19
e até o começo do século 20. Fazer ponto nas ruas, o chamado
“trottoir”, mesmo à noite, era ilegal – mas nem por isso era
uma prática incomum. Para atender clientes dentro da lei, as
mulheres tinham que se registrar na polícia, empregar-se
oficialmente em um único bordel e pagar pontualmente seus impostos.
Depois de fichadas nas delegacias de polícia, as
prostitutas da França do século 19 também tinham que fazer exames
médicos todos os meses, algo que podia ser mais humilhante do que o
próprio ato de vender o corpo. O pintor Henri de Toulouse-Lautrec,
obcecado pelos bordéis e pelas prostitutas, captou estas cenas de
humilhação em obras célebres – entre elas duas pinturas em óleo
sobre tela de 1894, “Rue des Moulins, L'Inspection médicale” e
“Femme tirant son bas”, em que revela a nudez embrutecida e
melancólica das mulheres em nada sensuais.
Toulouse-Lautrec
foi um dos nomes centrais da interface entre Arte & Prostituição:
de 1892 a 1895 ele criou mais de 50 pinturas em grande formato e mais
de 100 desenhos – tudo com inspiração nas mulheres e cenários
dos bordéis. Pioneiro da Arte Moderna, Toulouse-Lautrec era
descendente da nobreza francesa e boêmio inveterado desde a
juventude, quando decidiu abandonar a família abastada e fugir para
Montmartre, onde se reuniam prostitutas, artistas e aventureiros.
Passava dias e noites no Moulin Rouge e outros cabarés e bordéis da
região do Pigalle. Morreu jovem, mas revolucionou a pintura, a
litografia e as técnicas para o design gráfico dos cartazes
publicitários, definindo o estilo que seria posteriormente conhecido
como Art Nouveau.
Choque estético
e moral
Fugindo
aos estereótipos do Impressionismo e da pintura francesa anterior a
1900, com suas paisagens naturais e imagens de doces personagens, as
figuras realistas ou amargas de bordéis e prostitutas reunidas pela
exposição do Musée d'Orsay podem mesmo provocar algum choque
estético e moral. Mas trata-se do retrato fiel de uma época. No
final do século 19, Paris era uma cidade em plena transição social
– e a prostituição estava em toda parte, fazendo do amor algo
incerto, efêmero e fugaz, como escreveu Charles Baudelaire no soneto
“A uma passante”, incluído em seu célebre “As Flores do Mal”
(1857), publicado no Brasil em 1985 pela Nova Fronteira, em tradução
de Ivan Junqueira.
Hoje, como no passado, a arte espelha a sociedade com
suas transformações e paradoxos – talvez por isso, diante das
obras-primas reunidas na exposição “Esplendores e Misérias”, a
centralidade deste mundo obscuro de prostitutas e bordéis no
desenvolvimento da pintura moderna torna-se evidente. A modernidade
da vida urbana entrou com força na cultura e, nos domínios da arte,
muito pouco, ou quase nada, ficou escondido – nem mesmo os segredos
de alcova em cabarés de Montmartre ou os encontros furtivos e
mundanos em hotéis às margens do Sena, entre cavalheiros com suas
cortesãs, com dançarinas de Can-Can ou com as mulheres anônimas
que faziam, durante noites e madrugadas, o “trottoir” proibido
por ruas e avenidas.
Nas primeiras décadas do século 20, a prostituição
sofreria mudanças radicais: as duas guerras mundiais moveram
fronteiras, aumentaram a miséria e a proliferação das doenças e,
em 1946, os bordéis se tornariam ilegais na França. A legislação
teria outras idas e vindas nas décadas seguintes, mas ainda há
muita controvérsia sobre a presença ostensiva de prostitutas em
lugares públicos. Atualmente, receber dinheiro em troca de sexo é
uma atividade legal na França, mas o país ainda trava um intenso
debate sobre criminalizar ou não o ato de pagar por sexo, como na
Suécia – outra demonstração do acerto do Musée d'Orsay em
lançar luzes sobre a questão.
Além da atualidade do tema, o fator ineditismo também
conta muitos pontos a favor de “Esplendores e Misérias”, já que
a mostra é a primeira a examinar de perto um assunto por certo
explosivo, ainda tão polêmico e tão comum na pintura moderna,
especialmente na França. Tudo indica que a reunião valiosa desta
coleção de obras-primas, garimpadas no acervo do museu ou tomadas
de empréstimo a outras instituições, será motivo suficiente para
marcar época, garantindo destaque nas agendas de cultura e o
interesse do público – e, quem sabe, talvez também possa ajudar no combate ao
preconceito e à intolerância.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Arte no Bordel. In: Blog
Semióticas,
26 de setembro de 2015. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2015/09/arte-no-bordel.html
(acessado em .../.../…).
Para uma visita virtual à exposição do Musée d"Orsay, clique aqui.
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Arte no Bordel: acima, fotografia de
1895 de Carabin François-Rupert,
escultor, gravador e fotógrafo
profissional, exibida na exposição
Esplendores e Misérias, intitulada
“Femme nue assise de trois-quarts dos,
sur une chaise, visage de profil gauche”
(Mulher
nua de costas, sentada em uma
cadeira, perfil da face esquerda). Abaixo,
uma visitante da exposição diante da série
Rolla, de Auguste Chabaud (1882-1955)
e o cartaz original da exposição
cadeira, perfil da face esquerda). Abaixo,
uma visitante da exposição diante da série
Rolla, de Auguste Chabaud (1882-1955)
e o cartaz original da exposição