Ut quod ali
cibus est aliis fuat acre venenum.
(O
que é alimento para alguns, é amargo veneno para outros – In: "De
Rerum Natura", Titus Lucretius Carus, século 1° antes de Cristo).
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Enquanto os
brasileiros acompanham sucessivas ameaças de retrocessos nas questões
dos Direitos Humanos e das liberdades individuais, com propostas anacrônicas de legislações para
internação compulsória e endurecimento da repressão ao uso de
psicoativos, em muitos países a discussão avança não só na
descriminalização, mas também na abrangência em questões de
saúde, educação e – por que não? – arte e cultura. Uma seleção de peso da produção
de artistas sob a influência das drogas é o que propõe uma
corajosa e oportuna exposição organizada pela Maison
Rouge, um dos nobres endereços de referência em Paris sobre artes
plásticas e design.
“Sous
Influences – Arts plastiques et produits psychotropes” (Sob
influência – artes plásticas e psicotrópicos) reuniu um
acervo extenso e diversificado de 250 obras-primas de 90 artistas de vários estilos, várias épocas
e vários países, incluindo trabalhos do brasileiro Hélio Oiticica. Todas as obras selecionadas para a mostra, de algum modo, estão ligadas aos efeitos de substâncias
psicoativas e a maioria delas vem com a indicação “criada pelo
artista em estados alternativos de consciência”. Como se pode
prever, cada artista em cada criação apresentada tenta capturar
sensações ou até mesmo alucinações provocadas pelas mais
variadas experiências nas aventuras da percepção.
“Desde
o início dos tempos, desde o alvorecer da civilização humana, os
artistas sempre encontraram pelo caminho substâncias psicoativas em
plantas, fungos, maceração e bebidas as mais variadas, que levaram
a passagens místicas, à iluminação, mas também provocaram
confusão, intoxicação, morte” – explica Antoine Perpère,
curador da exposição na Maison Rouge e coordenador de um centro de
atendimento a dependentes químicos em Paris.
No
texto em que apresenta a exposição, Perpère repete um célebre
enunciado – “a diferença entre remédio e veneno é a dose” –
atribuído desde a Idade Média ao místico Paracelso (1493–1541),
um dos fundadores da Farmacologia, mas também poderia lembrar
grandes poetas e pensadores dos últimos séculos como Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud,
Sigmund Freud, Walter Benjamin, Dylan Thomas, Aldoux Huxley, Allen Ginsberg, William Burroughs, Timothy Leary, Michel Foucault e Jim Morrison, entre
outros que dedicaram a experiências com embriaguez, alucinógenos, e
outros estados alterados de consciência, escritos preciosos, alguns
deles destacados entre os documentos em exposição.
Psicofármacos e êxtase, pesquisa estética
"Os
artistas, que sempre permanecem em busca de novas formas de criação,
de transgressões, de estímulos, de caminhos para a imaginação,
nunca estiveram alheios à descoberta dos efeitos das mais variadas
experiências, inclusive a transgressão das drogas", reconhece
Perpère. Para ressaltar os fundamentos da exposição, ele alerta
sobre um necessário juízo de valor, uma vez que a proposta da curadoria foi traduzir, transcrever e documentar determinadas experiências de artistas a partir de substâncias psicotrópicas, antigas e novas, na tentativa de permitir que cada indivíduo perceba a complexidade constante de seus efeitos.
“O
artista não é um drogado como qualquer outro porque o artista tem a
preocupação de traduzir e transmitir o que vivenciou ao estar sob
aquela influência", afirma o curador. Perpère enumera algumas
questões conceituais sobre o “corpus”, antes de concluir a breve
apresentação com um alerta: segundo o curador, a exposição,
inédita e ousada, não tem por objetivo fazer julgamentos morais e
muito menos apologia das drogas, mas sim buscar a reflexão e um
melhor entendimento sobre as conexões entre processos criativos e o
uso instrumental de substâncias psicoativas.
Entre
os artistas reunidos em “Sous Influences” estão desde expoentes
das vanguardas do começo do século 20, como Francis Picabia,
Antonin Artaud e Jean Cocteau, até nomes contemporâneos como o
grafiteiro e pintor Jean-Michel Basquiat, o cineasta Larry Clark, os
fotógrafos Nan Goldin e Irving Penn, o pioneiro da arte multimídia
Nam June Paik e também seu discípulo Takashi Marakami, entre
outros, além de Damien Hirst, o multimilionário e supervalorizado
inventor de instalações bizarras e polêmicas que ganharam a mídia
na última década – com suas esculturas hiperrealistas de casais
em mirabolâncias sexuais e urnas de vidro transparente com tubarões,
vacas e ovelhas reais flutuando em formol.
Nesta
exposição em Paris, Hirst surpreende mais uma vez com uma obra
inédita, cifrada e complexa, simples apenas na aparência: batizada
de “A Última Ceia”, pode ser descrita como uma série de
serigrafias emuldoradas e dependuradas em uma parede. O que Damien
Hirst faz é substituir as figuras de Jesus Cristo e seus 12
apóstolos por embalagens de remédios, cujos nomes foram trocadas
por marcas de alimentos típicos da Inglaterra, como batatas,
tomates, salsicha e feijão. Com isso, põe em destaque a denúncia
sobre o peso que medicamentos controlados têm na vida cotidiana de
milhões e milhões de pessoas.
Oiticica:
anarquista, concretista, tropicalista
Mas
Damien Hirst não é o maior destaque nem o mais ousado entre os
artistas reunidos na exposição pioneira em Paris. Um dos que
roubaram a cena e provocaram sensação na imprensa internacional, na
abertura da exposição, foi o brasileiro Hélio Oiticica (1937–1980)
, único latino-americano selecionado para a mostra. Apontado como
“anarquista e atualíssimo” pela curadoria, pioneiro da Arte
Concreta, do Neo-Concretismo e do Tropicalismo, iconoclasta e
teórico, Oiticica está presente em “Sous Influences” com uma de
suas intervenções incendiárias e incomuns nas proposições de
suporte: a obra “Quasi-Cinema 02.CC5”, desenvolvida em 1973 para
a série “Cosmococa”.
Hélio Oiticica,
sempre lembrado por seus “Parangolés”, alegorias pontuadas de
enigmas para vestir, questionador e indiferente a estilos e modismos,
traduz o universo e a mística das drogas ilícitas através da
distorção sobre uma imagem conhecida de um dos heróis da era do
rock. Em direções opostas das previsíveis variações cromáticas chapadas de
seu contemporâneo Andy Warhol, com quem conviveu durante vários períodos em Nova York, na
década de 1970 – a intervenção de Oiticica questiona não a percepção das cores, mas o sentido das coisas:
sua instalação fica em cima de uma mesa tradicional de madeira que
tem, sobre os traços do rosto de Jimi Hendrix, linhas de pó branco,
utilizando a capa do disco “War Heroes” como bandeja e, sob a
capa, uma folha de papel alumínio.
Warhol, aliás, é uma das ausências sensíveis em
“Sous Influences” – lembrado apenas indiretamente por citações
ou por obras de seus pupilos e discípulos selecionados, certamente deixado de fora por conta das dificuldades burocráticas para a exibição de suas obras originais ou de réplicas em suportes variados. Mesmo considerando uma ou outra ausência sensível pelas afinidades do tema abordado, pelo que se
vê nas imagens de divulgação e no “dossiê de imprensa” (veja
links para visita virtual à mostra na Maison Rouge no final deste
artigo), a curadoria teve o cuidado de reservar detalhes que podem
levar o visitante à imersão em uma autêntica experiência
psicodélica, com ambientes que aguçam por contraste todos os
sentidos, em roteiros com iluminação surpreendente, pontuados de
belas e estranhas imagens, acordes de música suave, ruídos
intrigantes e até aromas simultâneos.
O visitante encontra, a partir da entrada da galeria
principal da Maison Rouge, decoração e objetos em cores contrastantes, espelhos estrategicamente posicionados para provocar sensações de duplicidade ou vertigem, incensos que simulam cheiro de ópio e uma
instalação lisérgica em Optical Art, do artista belga Carsten
Höller, nomeada como "Swinging Corridor" (Corredor flutuante), criada em 2005 e reconstruída para o espaço de acesso à exposição, que leva o observador a acreditar que as paredes estão tremendo
e em ligeiros movimentos contínuos. Os relatos do público indicam o
efeito alcançado: segundo a curadoria, a maioria dos entrevistados
na saída da instalação diz, muito surpresa, que chegou a sentir de forma nítida os efeitos da
embriaguez e de outras viagens alucinógenas.
Além
de obras-primas de vários momentos da História da Arte, a mostra
em Paris também reúne objetos raros, como uma seleção de equipamentos
utilizados através nos tempos nas práticas de Farmacologia. Nesta
seção, são especialmente enigmáticos os desenhos da série a
nanquim feitos “sob a influência de haxixe”, a partir de 1853,
por um dos nomes de destaque no Panteão das Ciências: Jean-Martin
Charcot (1825–1893), célebre médico e cientista francês, autor
de importantes contribuições para o conhecimentos de diversas
doenças e síndromes, pioneiro da psiquiatria e professor de alunos
que se tornariam referência até nossos dias, entre eles Sigmund
Freud, Joseph Babinski e James Parkinson, entre vários outros.
Cenas e imagens de impacto
Na mesma seção da exposição, há também uma grande sala com fotografias e réplicas de objetos usados para o
consumo de drogas no mundo inteiro – com destaque para a instalação
de equipamentos de experiências sociais realizadas no decorrer do século 20 e na atualidade em países europeus como
Suíça, Dinamarca, Holanda e outros, que têm espaços autorizados e
livres com infraestrutura para viciados e dependentes químicos.
Entre tanta obra surpreendente em exposição, uma das séries mais inusitadas são os autorretratos do norte-americano Bryan Lewis
Saunder, todos declaradamente criados sobre efeito de drogas – com
seu uso minucioso desde 1995 de pelos menos uma substância diferente
a cada dia, ou a cada autorretrato, inspirado pelas variações e
misturas mais escatológicas, de molhos absurdamente picantes a
álcool, chás alucinógenos, cristais de metanfetamina, maconha,
ópio, haxixe, cocaína e os mais diversos medicamentos “legais”.
Viagens com anfetaminas, LSD e tudo o mais também são traduzidas por
diversos outros, inclusive em autorretratos – caso das duas séries
de homenagens ao lendário Timothy Leary, professor de Harvard, ícone
maior dos anos 1960, um dos mentores do LSD. Leary e o LSD são
inspiração para os cartazes do artista multimídia francês Jaïs
Elalouf e para as pinturas surrealistas do austríaco Arnulf Rainer,
“Faces Farces”, autorretratos após o artista ter passado por alucinações com
misturas de ácidos. Rainer, há alguns anos, foi ele mesmo objeto de estudos por especialistas, tendo participado de um programa de pesquisa científica da
Universade de Lausanne sobre os efeitos do uso de drogas como o LSD.
O efeito infinito
Experiências com ácidos, anfetaminas e alucinógenos
também fornecem o ambiente e a pesquisa de materiais e formas para a
arquiteta e designer japonesa Yayoi Kusama. A partir de suas próprias
viagens, registradas em um “diário eletrônico”, Yayoi Kusama deu
início às pinturas e desenhos minimalistas que se repetem na
estamparia que cobre suas instalações de labirintos – cenários
onde o visitante pode penetrar e que parecem saídos de um parque de diversões do futuro, com luzes,
espelhos e estruturas psicodélicas que simulam o infinito.
Entre as fotografias, há muitas imagens fortes –
mas as de maior impacto por certo vem de Larry Clark, conhecido no
mundo inteiro desde o cruel e realista “Kids” (1995), que mostra
em tom de documentário o cotidiano de adolescentes às voltas com
skates, Aids e todo tipo de uso diversional de drogas. Na exposição,
Larry Clark apresenta uma série documental em sépia e preto e
branco sobre viciados e suas práticas nos Estados Unidos – entre eles uma grávida
injetando heroína.
O visitante também tem à disposição muitos filmes e
peças de videoarte exibidos em grandes telões de alta definição.
“Filmes e vídeos em suportes variados desempenham um papel
especialmente importante nesta exposição”, explica Antoine
Perpère, lembrando que só através do registro audiovisual é
possível reconstituir experiências efêmeras e em alguns casos
transcendentais, místicas, como as performances de Isadora Duncan,
Artaud, o cinema poético e surrealista de Jean Cocteau, as
performances contemporâneas de criação coletiva.
Nas palavras do curador, o potencial do audiovisual
surge como uma atualização das experiências ancestrais do Shaman –
o curandeiro que viaja em espírito a outra dimensão e retorna para
contar o que aprendeu para seus pares na tribo. No caso dos registros
em exposição, filmes e peças em videoarte parecem permitir um melhor
entendimento sobre a própria produção em artes plásticas,
especialmente nos casos selecionados, em que se pode acompanhar desde
tentativas iniciais de criação e transcrição pelo artista até a
possibilidade de reconstituir, a partir da obra final. os processos de determinadas intuições
ou percepções.
Antoine
Perpère também alerta sobre a urgência da sociedade discutir a
questão do uso diversional e medicinal de substâncias atualmente
consideradas drogas lícitas ou ilícitas. “O que posso dizer é
que tudo indica que guerra às drogas não funciona. Sou a favor da
descriminalização do uso de drogas”, reconhece o curador. Seu
argumento principal: na História da Civilização, as experiências com psicoativos não têm nada de novo. Vêm de séculos e, em alguns
casos, milênios. Sem contar que substâncias como café, tabaco,
álcool e tantas outras, hoje consumidas normalmente em larga escala, no mundo inteiro, um dia também já foram proibidas e consideradas ilícitas.
por José Antônio Orlando.
Para uma visita virtual à exposição na Maison Rouge, clique aqui.
Para ler o "dossiê de imprensa" da exposição "Sous Influence", clique aqui.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Aventuras da percepção. In: Blog
Semióticas,
1° de abril de 2013. Disponível no
link http://semioticas1.blogspot.com/2013/04/aventuras-da-percepcao.html (acessado
em .../.../...).
Para ler o "dossiê de imprensa" da exposição "Sous Influence", clique aqui.
Espetacular! Você apresenta uma perspectiva muito sã sobre o continuum dependência química/arte. Adoraria ver a exposição... Excelente apanhado, parabéns!
ResponderExcluirCharles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Aldoux Huxley, Allen Ginsberg, Jim Morrison, com estas companhias no roteiro, esta viagem vai ficar para sempre escrita nas estrelas. Amo seu blog. Sou dependente. Beijos.
ResponderExcluirMuito bom mesmo. Uma aula. Por estas e outros seu blog é importante. Só agradeço muito mesmo porque posso visitar todo dia, toda hora. Mil beijos. Jacqueline de Souza
ResponderExcluirAdoro esse blog! Obrigada!
ResponderExcluirAmei. Seu blog tem sempre isso: aborda temas difíceis e sofisticados com uma clareza e um senso de equilíbrio que encanta a gente. Obrigada, José, do fundo do coração!
ResponderExcluirAdriana Trindade
Mais uma vez encantado e inebriado pelo êxtase da surpreendente viagem educativa que sua página me proporcionou.
ResponderExcluirObrigado!
Não acredito em bruxas, mas se elas existem estão por aqui, neste site chamado Semióticas. Encanto puro. Mágico. Parabéns, parabéns!
ResponderExcluirSensibilidade é tua marca.
ResponderExcluirEncantada, sempre.
Beijos
Benilde
Excelente Objeto de Aprendizado!
ResponderExcluirEstou mais uma vez encantada por você e por seus textos, José. Cada visita que faço ao seu blog me leva a lugares estranhos e sempre fascinantes. Mil beijos
Pontos de vista bem interessantes.
ResponderExcluirQue show de texto e de imagens. Este Semiótica parece um filme. Dos melhores. Parabéns!!!
ResponderExcluirJorge Ferreira
Parabéns. Aprendo muito em cada visita que faço a este site. Sem contar que é tudo muito lindo. Quem dera que todos os sites e blogs fossem assim, com tanta beleza e inteligência. Prêmio Peixe Grande foi muito merecido. Este Semióticas é muito show!
ResponderExcluirSensacional. Parabéns por mais esta matéria excelente e pela seleção show de imagens. Sou sua fã.
ResponderExcluirMarcela Rezende
Sua maéria é simplesmente Magnífica! Parabéns!
ResponderExcluirMais que isto, gratidão, sempre, pelo privilégio de poder acessar seus escritos, seu estudo, sua compreensão dos temas propostos. Este aqui excede em riqueza de conhecimento, como todos que, um a um se vai acessando. Fascinante trabalho. O blog mais perfeito, vale por uma biblioteca. Grande abraço.
Super interessante, e as fotos então! Maravilhosas
ResponderExcluirPrecioso. Parabéns!
ResponderExcluirMelhor matéria, melhor blog. Nenhuma dúvida. Cheguei hoje aqui e já virei um fã de carteirinha. Cada matéria que vejo nesse blog Semióticas é melhor que a outra. Como é possível?
ResponderExcluirParabéns e vida longa!
Victor Ortiz
Bom. Muito bom. Agrada-me ler seus artigos.
ResponderExcluirOtro artículo maravilloso, entre otros, con su texto perfecto y sus bellas imágenes que traducen y completan el significado. Aprendí mucho, mucho, y nuevamente estoy encantada y feliz. Gracias de nuevo, muchas gracias.
ResponderExcluirMaria Elena Paterno
Parabéns pelo alto nível nesta e em todas as outras deste blog Semióticas. Amei tudo.
ResponderExcluirPaola Ferreira Silva
Acho surpreendentes todas as postagens que encontro aqui.
ResponderExcluirEste blog Semióticas é uma maravilha completa, uma beleza.
Parabéns de novo e muito obrigada por compartilhar sabedoria.
Jesse Gadelha
Preciso registrar aqui que esta postagem me deixou emocionado por vários motivos. Muito obrigado por compartilhar esta história e imagens lindas que inspiram a gente e elevam o espírito. Eu não conhecia a maioria destas imagens, acho que já tinha visto em algum lugar apenas a fotografia do Helio Oiticica, mas amei a descoberta.
ResponderExcluirParabéns de novo por tudo neste blog Semióticas e por sua generosidade em compartilhar beleza e sabedoria. Um abraço!
Luis Antonio Nascimento