Antigamente
a vida era outra aqui neste
lugar onde o rio, dando
areia,
cobra-d’água inocente, e indo ao mar, dividia o campo
em
que os filhos de portugueses e da escravatura pisavam.
|
Obras-primas
e obras menores da literatura, cinema, artes plásticas, música
popular e outras artes, retomadas sob novas fronteiras disciplinares,
fornecem ao professor Wander Melo Miranda os referenciais e
dispositivos de leitura comparativa para os ensaios reunidos em
“Nações Literárias” (Ateliê Editorial). Com um fio condutor
sobre a questão interdisciplinar da identidade cultural, dos processos e paradoxos de constituição da nação e dos sujeitos modernos, os ensaios
não foram organizados em ordem cronológica, mas formam no livro um conjunto
coeso e surpreendente, organizado em três blocos temáticos.
“A
política e a economia são discursos autoritários, fechados,
enquanto a literatura e as outras artes apresentam discursos abertos
a novas interpretações que permitem mais liberdade”, explica o
professor em entrevista por telefone, concedida às vésperas do
lançamento do livro em Belo Horizonte. Diretor da Editora UFMG,
professor de graduação e pós-graduação, mestre em Letras e
doutor pela USP, Wander Melo Miranda também é coordenador de estudos sobre o
Acervo de Escritores Mineiros mantido pela UFMG e, entre seus livros publicados, há obras de referência em destaque na fortuna crítica de vários autores, entre
elas “Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago”, livro de 1992 que teve uma nova edição em 2009 pela Edusp.
A
literatura e os outros sistemas de representação cultural da arte, nas mais diversas mídias e suportes materiais ou tecnológicos,
defende o professor, ainda são os melhores instrumentos para abordar
os conceitos de nação e de identidade nacional na atualidade. “Os discursos da
literatura e das artes não são discursos melhores que os outros discursos,
mas permitem maior liberdade e maior abrangência porque representam o lugar no qual
sempre é o outro que vem dizer. Esse outro é o que se tem que saber
ouvir”, destaca.
Os
ensaios reunidos em “Nações Literárias”, originalmente
publicados ou apresentados em congressos e simpósios científicos, no
Brasil e no exterior, entre 1984 e 2008, propõem análises sobre a diversidade dos fatos culturais que
passam por obras de João Gilberto Noll a Wim Wenders, de Ricardo
Piglia a Rosângela Rennó, de Silviano Santiago ao grupo O Rappa, de
Guignard a Ary Barroso, interpelando alguns dos pressupostos teóricos
contemporâneos, de Fredric Jameson e Alain Badiou a Martin-Barbero
e Néstor Garcia Canclini, entre outros autores e obras de referência.
Tons plurais da cultura e da nação
Tons plurais da cultura e da nação
Há, nos 18 ensaios do livro, argumentos que questionam ou endossam críticos do passado
e do presente, conjugados com erudição e maestria, demarcando um
retrato do Brasil visto pelas lentes de um dos nome importante da
intelectualidade contemporânea. As cores e os tons plurais da
cultura e da nação brasileira mostram suas nuances e sons
em vozes narrativas e imagens espelhadas em mestres como Charles
Baudelaire, Walter Benjamin, Jorge Luis Borges, mas sem nunca perder de vista a
sofisticada tradição da criação literária brasileira nos dois últimos séculos – dos pioneiros a Alencar,
Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna,
as memórias de Pedro Nava, Drummond, Murilo Mendes – e seus
reflexos na literatura que se produziu no Brasil da última década, incluindo, entre outros, Chico Buarque, Paulo Lins, Fernando
Bonassi.
O autor reconhece que a
literatura divide os holofotes do destaque, no livro, com outras artes e discursos, mas na entrevista o
professor admite que a música popular permanece como a
grande expressão da cultura nacional para a imensa maioria da população.
“Como a literatura, a música popular também traz a experiência autêntica
de um saber sem certezas, um lugar de liberdade e de mobilidade de
sentido, independente do que a maioria da crítica especializada destaca como valor ou mesmo como ausência de valor”, explica.
“Dos pioneiros a Pixinguinha e daí a artistas
nacionais em evidência em nossos dias, a música popular guarda
qualidades que são um convite ao olhar crítico e à pesquisa em diversas áreas”, defende Wander,
aliando à música a produção audiovisual de cinema e TV que detêm um lugar de importância como
formas privilegiadas de comunicação com extensas camadas do público e com as formas e conteúdos perenes da
tradição.
“De
certa forma, a paleta da violência domina a música popular, como
domina a estrutura narrativa de filmes de sucesso como 'Cidade de
Deus' e 'Tropa de Elite'. Neste caso, são filmes que abordam a
violência e também fazem dela sua estratégia de linguagem”, conclui. Mas
se a literatura mantém sua primazia nos domínios da arte e da
cultura, como analisar as novas tecnologias em suas interfaces com a
obra literária?
“As
novas tecnologias oferecem a democratização do acesso à
informação, mas não dão conta da questão do juízo de valor.
Obras clássicas de Freud e blogs descartáveis de adolescentes se equivalem no universo da
Internet. O que só é positivo, a princípio, porque oferece novas
possibilidades. Mas confesso que minha preferência é pela
literatura tradicional e pelo livro impresso”, completa.
A
dedicação à pesquisa sobre os cânones da tradição literária
transparece nas entrelinhas em ensaios como “As casas
assassinadas”, leitura comparada dos romances “A menina morta”
(1954), de Cornélio Penna, e “Crônica da casa assassinada”
(1959), de Lúcio Cardoso. Wander argumenta: “Se 'A menina morta'
retrata o passado da gente brasileira, da fase da defrontação dos
adventícios, onde deitaria raízes o espírito nacional em processo
de definição, 'Crônica da casa assassinada', por sua vez, é a
resultante levada ao extremo dos descaminhos deste processo”.
Através
dos romances de Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, Wander Melo Miranda
chega ao conceito de “nação” e sinaliza sobre a complexidade
que é pensar esse conceito hoje, em meio às culturas híbridas, em
tempos de globalização e proliferação dos meios de comunicação,
da internet, das redes sociais, da circulação planetária de
pessoas (pelos mais diversos motivos, do exílio político ao turismo
de massa) e de bens culturais. “Por que sul-americano e não apenas
brasileiro?”, questiona o autor.
Frente
à vida cotidiana e ao jornalismo mais ordinário, que apresentam a
“nação nossa de cada dia” como uma metáfora da casa
assassinada, atulhada de vestígios e memórias, os ensaios e
questionamentos reunidos em “Nações Literárias” configuram um
alerta sobre as metamorfoses que certos conceitos adquiriram no
decorrer do último século e especialmente nas últimas décadas – um alerta e um convite à reflexão, para que possamos considerar e dimensionar o valor real da “nação”
e suas fronteiras, sejam elas territoriais, linguísticas, culturais.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Caras do Brasil. In: Blog
Semióticas, 10 de
outubro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/10/caras-do-brasil.html
(acessado em .../.../…).
Para
comprar o livro "Cidade
de Deus", de Paulo Lins, clique aqui.
Para
comprar "Crônica
da Casa Assassinada", clique aqui.
Sumário
de “Nações Literárias”
Parte I
Parte I
- Nações Literárias
- Heterogeneidade e Conciliação em Alencar
- Imagens de Memória, Imagens de Nação
- Sem Pátria
- As Casas Assassinadas
- Anatomia da Memória
- Tons da Nação na MPB
Parte II
- Pós-Modernidade e Tradição Cultural
- Fronteiras Literárias
- Ficção Virtual
- A Liberdade do Pastiche
- A Memória de Borges
- Memória: Modos de Usar
- Ficção-Passaporte para o Século XXI
Parte III
- Local/Global
- Não Mais, Ainda
- A Forma Vazia: Cenas de Violência Urbana
- Latino-Americanismos
“De
certa forma, a paleta da violência domina
a música popular, como
domina a estrutura
narrativa de filmes de sucesso como
'Cidade de
Deus' e 'Tropa de Elite'"
(Wander Melo Miranda)
|
Que belo texto e que blog incrível, José! Eu sei que hoje é cada vez mais corriqueiro alguém publicar um blog, mas no seu caso é muito diferente. As questões aqui apresentadas, além do alto nível erudito, trazem sempre uma leveza que seduz e leva o leitor, mesmo o mais simples, a mergulhar neste mar de conhecimento e sofisticação. Você conclui o texto dizendo que “Nações Literárias” configura um alerta sobre as metamorfoses que certos conceitos adquiriram no decorrer do último século e especialmente nas últimas décadas. O alerto serve também como convite à sabedoria que este blog Semióticas oferece – para que possamos, com conhecimento de causa, considerar e dimensionar o valor das fronteiras e suas metamorfoses, sejam elas territoriais, linguísticas, culturais. Parabéns demais!
ResponderExcluirCada página que encontro em seu blog vale por infinitas outras de outros blogs. Esta aqui então, parece que estou ouvindo sua bela voz em sala de aula, sempre com raciocínios surpreendentes que levam a gente a pensar muito e a aprender. Ter sido sua aluna foi das experiências definitivas que tive. Agradeço aos céus. Beijos, professor. Continuo cada vez mais sua fã.
ResponderExcluirAline
Parabéns pelo texto e o comprometimento com o tema.
ResponderExcluirÉ fato e verdadeiro a importância da literatura nacional, assim como a música. Vi no texto a sua profundidade sobre o assunto e a verdade nos fatos narrados.
Parabéns.
Gostei muito do convite a visitar e sempre que puder, mande-me novamente o link das próximas postagens.
Apesar de eu ser uma mulher moderna e que ama tecnologia, que lê ebooks, assim como o autor em "confesso que minha preferência é pela literatura tradicional e pelo livro impresso”, também faço a minha confissão. Nada melhor que o cheiro de um livro.
Vou navegar um pouco mais em Semioticas.
Abraços.
@PaulaReRJ
Faço questão de registrar aqui um elogio. Texto excelente com edição de imagens primorosa. Vi que há por aqui muitos elogios de leitores, mas não há nenhum exagero. De todos os blogs que já visitei, este aqui é de uma superioridade para envergonhar os sites de jornais e revistas. Parabéns, parabéns!
ResponderExcluirAlfredo Feitosa
Parabéns pelo blog, sério e muito lindo. Virei sua fã já na primeira visita. Tudo nota 10, tudo espetáculo. (Cláudia Vianna)
ResponderExcluirQuerido professor: lembrei de suas aulas maravilhosas quando encontrei o link do seu blog no Facebook. Tudo aqui é também perfeito e inspira a gente a querer ir sempre mais além. Que você continue inspirando muita gente a amar a cultura e o Brasil por muitos e muitos anos. Saudades imensas. Beijo e parabéns de novo. Amei.
ResponderExcluirQualquer palavra minha que eu faça constar aqui poderá ser definida como redundância,
ResponderExcluirsenti todas as emoções aqui constantes, desde o comentário de Carlos Nelson Ferreira, que me emocionou, até chegar no de Ana Clara Magalhães, que fecha com chave de ouro meus perceberes, sentires e emocionares diante de mais uma página impagável de sua autoria, José Antonio.
Maravilhada... esta é a palavra. Por trazer em sua essência, em seu bojo o sentido de céu, de mundo paralelo de beleza pura e arte autêntica. AMO!
Sempre grata.
abraços.
Belíssima matéria e entrevista da maior importância. Já encomendei o livro. Agradeço pelo alto nível e pela clareza de ideias. Este seu blog Semióticas é o máximo! Parabéns!
ResponderExcluirMarcelo Figueiredo
Maravilhosa matéria, maravilhosa entrevista. Parabéns pelo alto nível de tudo neste blog Semióticas. Aprendo muito em cada matéria que encontro por aqui. Sou fã.
ResponderExcluirMaria de Fátima Rosenfeld
Parabéns, de novo, pelo alto nível. Amei tudo. Cada postagem que encontro aqui é melhor que a outra. Muito obrigada por você compartilhar beleza e sabedoria.
ResponderExcluirAna Teresa de Souza
Muito obrigado por compartilhar. TODAS as postagens são de alto nível, tudo aqui é beleza e sabedoria. Parabéns! Ganhou mais um fã para este blog Semióticas que é um ESPETÁCULO.
ResponderExcluirPaolo Cesar Puiatti
Sou um amante da cultura brasileira, da literatura e da música. Talvez por isso esta sua postagem me deixou emocionado, me trouxe novas ideias e confirmou muitas crenças que tenho comigo. Aprendi muito.
ResponderExcluirMuito obrigado por compartilhar conteúdos tão preciosos e tão necessários hoje e sempre. Parabéns pelo alto nível.
Itamar Rodrigues