O
que leva à substituição do objeto pelo fetiche é uma conexão
simbólica de pensamentos que, na maioria das vezes,
não é consciente para a pessoa.
–– Sigmund
Freud, 1905.
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A
história do erotismo talvez seja inseparável de um certo fetiche
para despir até a intimidade do corpo nu. Com suas regras fluidas e
cada vez mais instáveis com o passar do tempo, na intimidade ou em
público, a história e o jogo social do erotismo em vestir e despir,
a partir dos últimos três séculos, recebem agora uma retrospectiva
provocante que transfere as “roupas de baixo” à categoria de
obras de arte. Batizada de “Undressed: A Brief History of
Underwear” (Desvestidos: uma breve história da roupa íntima), uma
exposição em Londres, aberta no Victoria & Albert Museum,
resgata as relações entre o corpo, a moda e a roupa íntima desde
1750 até a atualidade.
Trata-se
de um acervo nunca antes reunido com mais de 250 objetos e imagens
que são puro fetiche (veja o
link para uma visita virtual à exposição no final deste artigo)
– incluindo fotografias, cenas de filmes, pinturas e desenhos, embalagens e anúncios
publicitários que fizeram História.
Entre tantos apelos de sedução, o grande destaque são as peças
originais de roupas íntimas de várias épocas, tanto femininas
quanto masculinas, criadas para envolver órgãos genitais, seios,
cinturas, coxas, pernas, nádegas – peças que somente há poucas décadas
a publicidade passou a expor em público sem bloqueios de recatos e
pudores.
Diante
da variedade tão sugestiva da coleção de calcinhas, sutiãs,
cuecas, calções, espartilhos, corseletes, anáguas, meias
transparentes, cintas-liga, camisolas e pijamas apresentados na
exposição, em marcações cronológicas por vezes surpreendentes, o
observador pode ter o prazer de cruzar as fronteiras fluidas e
instáveis do erotismo e da sexualidade que a arte e a literatura
descobriram bem antes de 1750 – data inicial da trajetória que o
recorte temático da mostra reconstitui. São estas fronteiras de
regras fluidas e instáveis que tiveram nos escritos do século 19
do francês Charles Baudelaire sobre a Modernidade seu marco
inaugural como questão fundamental da vida em sociedade.
“O
jogo social do erotismo gira hoje em torno da seguinte questão: até
onde pode ir uma mulher digna sem se perder?” – interrogava Walter
Benjamin, na década de 1930, em uma das passagens de “Jogo e
Prostituição”, um dos ensaios inspirados, instigantes, que o
pensador alemão dedicou aos escritos de Baudelaire. É verdade que
tanto Baudelaire quanto Benjamin tinham em mente as figuras femininas
das ruas e salões do Oitocentos, cenários das transformações
sociais que surgiram e se desenvolveram na Paris do Segundo Império,
mas suas reflexões cabem, como uma luva, também para as mitologias
de valor efêmero que a publicidade e a cultura pop disseminam em
nosso tempo presente.
Contraponto histórico
A
questão filosófica e sociológica, profundamente semiótica, que
Walter Benjamin apresenta, espelhado em Charles Baudelaire, poderia
constar em destaque, como epígrafe, na mostra do museu britânico,
indicando um sem número de aspectos
transdisciplinares que sobrepõem variáveis: das amarras da tradição
aos hábitos de higiene, das normas da elegância aos impedimentos do
poder econômico, dos hábitos cotidianos de consumo e comportamento
condicionados em segmentos de classes sociais.
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"Dos mestres de ofício dos séculos 18 e 19 aos designers e estilistas mais famosos de nossa época, permanece o apelo das relações fascinantes entre a roupa interior e a roupa exterior, entre a roupa íntima e o corpo", destaca Edwina Ehrman, diretora do acervo de moda e materiais têxteis do Victoria & Albert Museum e curadora da mostra. No dossiê de imprensa sobre a exposição, a curadora também destaca uma série de contrapontos históricos que distinguem a trajetória das roupas íntimas feitas para mulheres e para homens.
Um destes contrapontos: as roupas íntimas femininas
sempre tiveram como objetivo o apelo sexy, a sedução, que não raro
traziam junto o desconforto e até mesmo a exigência de um certo
grau de sacrifício. Por outro lado, a roupa íntima masculina tem
por princípios, desde outras épocas, o conforto e a simplicidade,
das antigas faixas de recortes de linho, que eram fáceis de lavar e serviam
para proteger os genitais do contato com as armaduras de metal e com os
ásperos tecidos dos uniformes militares, aos mais modernos modelos
contemporâneos feitos de tecidos sintéticos ou de algodão com costuras invisíveis.
A exposição, com sua meta de traçar um painel técnico
e comportamental sobre a evolução no design de roupas íntimas,
revela que o uso de materiais como metal, cordas e cordões vem, gradativamente, cedendo lugar a tecidos como linho, seda, algodão,
rendas, cada vez mais suaves e em cortes e formatos progressivamente
mais encurtados e simplificados nos adereços. A evolução das
primeiras peças, exclusivas e artesanais, chega aos processos
técnicos da fabricação em série, depois em escala industrial, mas
sempre moldando os ajustes das silhuetas às formas de um almejado
corpo ideal, seguindo os padrões de cada época e atendendo aos
apelos libertários em detrimento do recato e das vigilâncias da
moral.
O jogo: exibir e esconder
No jogo social do erotismo, o equilíbrio entre exibir e
esconder vem, quase sempre, pontuado por determinados paradoxos e
contradições: para mulheres da burguesia, desde o final do século
19, era comum mostrar parcialmente, em público, um ou outro detalhe
das novas formas de lingerie como indicativo de poder e riqueza; para
os homens, as novidades são menos numerosas e quase sempre restritas
a mudanças mínimas na modelagem de ceroulas e calções.
Nas
roupas íntimas masculinas, uma das poucas mudanças perceptíveis
nas últimas décadas talvez sejam as calças mais folgadas na
cintura, para deixar à vista as barras superiores de sungas e
cuecas. A tendência, que primeiro causava um certo estranhamento,
desde os célebres e pioneiros anúncios publicitários das grifes
Calvin Klein e Empório Armani, nas décadas de 1980 e 1990, acabaria
se tornando comportamento coletivo. A exposição também confirma
que a roupa íntima, como a própria sexualidade e a intimidade de
famosos e de anônimos, provoca muito interesse, debate e, quase
sempre, controvérsias – mais pelas peças de escândalo do que
pelas preciosidades resgatadas de outras épocas.
As peças mais valiosas, no acervo reunido pelo Victoria & Albert Museum, são também as mais antigas – da segunda metade do século 18 e do começo do século 19. Entre outras raridades de exotismo que sobreviveram por séculos até nossos dias, há as “roupas de baixo” e as calçolas majestosas com rendas, armações de metal e madeira e adornos infinitos criados sob encomenda da realeza e da nobreza. E há as formas de ampulheta distorcida em espartilhos, corpetes e corseletes de barbatanas em ouro e pedrarias, com dezenas de fios e hastes metálicas reforçando a amarração – peças usadas pela maioria das mulheres da nobreza e de posição social destacada até as duas primeiras décadas do século 20, quando foram enfim inventados os sutiãs – oficialmente patenteados nos EUA, em 1914, pela costureira Mary Phelps Jacob.
Contudo,
não são estas peças raras de outros séculos, das eras vitoriana e
eduardiana, que mobilizam a atenção da grande maioria do público,
e sim as peças de roupas íntimas que ganharam fama graças a
celebridades do mundo fashion e da cultura pop às quais elas estão
por algum motivo associadas. Nesta seção da mostra estão também
os modelos de trajes transparentes de 1911 de Paul Poiret, as
criações das décadas de 1920, 1930 e 1940 de Coco Chanel, as peças
históricas de Dior, Givenchy, Balenciaga e Mary Quant dos anos 1950
e 1960 e, entre vários outros, sucessos recentes das passarelas e
das linhas de lingeries de luxo de Vivianne Westwood, Gianni Versace, Jean Paul Gaultier, Alexander
McQueen, John Galliano, Dolce & Gabbana e
Stella McCartney.
A
retrospectiva equivale a uma boa aula de História – em suas
interfaces com a moda, a sexualidade, a moralidade e a tecnologia
industrial. Porém, para além do sucesso de público, dos holofotes
e das referências a celebridades muitas vezes tão instantâneas
quanto efêmeras, o sentido de uma mostra dedicada a roupas íntimas,
em um museu conceituado, por certo permite muitas leituras e
polêmicas. Também permite críticas negativas argumentando sobre a
falência da alta cultura, sobre os sintomas da obra de arte
inexistente na pós-modernidade, do culto à futilidade, à submissão
feminina, ao fetichismo da mercadoria. Ou, talvez, exposições como
esta do Victoria & Albert Museum sejam apenas sinais bem
característicos do tempo enigmático em que vivemos.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Fetiches à mostra. In: _____. Blog
Semióticas,
20 de abril de 2016. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2016/04/fetiches-mostra.html
(acessado em .../.../...).
Para
uma visita à exposição do Victoria & Albert
Museum, clique aqui.
Parabéns de novo, José, por mais um ensaio sensacional e delicioso de ler e ver. Fico sempre impressionado em descobrir como você consegue estabelecer, sobre assuntos diversos, abordagens que são fundamentalmente filosóficas, estéticas e éticas, ou exatamente semióticas. Sou fã deste blog desde a primeira visita que fiz, em janeiro, e me surpreendo aqui a cada nova página e novo ensaio que visito. Só agradeço.
Angelo Saviani
José, sensacional! Amei seu texto perfeito e estas imagens lindas. Concordo com cada palavra sua e sim, vale sim por uma boa aula, ou melhor, vale sim por um curso inteiro. Parabéns demais. Carolina Zappa
ResponderExcluirBeleza ímpar em cada imagem selecionada. Concordo sim com o que disseram Angelo e Carolina acima: este ensaio que vale por um curso inteiro. Parabéns demais. Sou muito grato por encontrar estas informações preciosas e por tanta sabedoria compartilhada. Ganhou mais um fã.
ResponderExcluirAcho que a palavra mais acertada para descrever é: Soberbo! Você conseguiu tocar em assuntos que geralmente geram comentários rasos e idiotas em blogs idem, mas aqui alcançou a profundidade que poucas vezes encontrei. Tudo inteligente, texto e imagens, e de uma beleza ímpar mesmo. Que outros blogs aprendam a lição deste Semióticas! Eu só posso agradecer. Muito obrigado!
ResponderExcluirJuliana Moreira
Preciso dizer que estou encantada. Tudo sensacional: este blog Semióticas, este texto sobre roupas íntimas, estas imagens lindas e maravilhosas. Virei fã nesta primeira visita. Show!
ResponderExcluirMaravilhoso. Quero estudar na escola em que você é professor. Enviei uma mensagem para seu e-mail perguntando sobre qual livro tem o texto citado do Walter Benjamin e você ainda não respondeu. Parabéns por tudo deste blog Semióticas e por esta matéria que está sensacional. Agradeço demais você compartilhar beleza e sabedoria.
ResponderExcluirMaria Luisa de Oliveira Sousa
O texto de Walter Benjamin citado neste ensaio está publicado no Volume 3 das "Obras Escolhidas de Walter Benjamin", "Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo", que foi publicado pela editora Brasiliense. Sou grato por seus altos elogios, querida Maria Luisa. Seu e-mail também já foi respondido. Seja sempre muito bem-vinda.
ExcluirAmei tudo. Agradeço por você compartilhar. Ganhou mais uma fã.
ResponderExcluirFernanda de Vasconcelos
Excepcional trabalho, um deleite para leitores que buscam um trabalho jornalistico de primeira... Mestre!
ResponderExcluirParabéns pelo altíssimo nível do texto e da edição de imagens, neste artigo e em todos os outros que encontrei neste sensacional blog Semióticas. Também agradeço por você compartilhar beleza e sabedoria.
ResponderExcluirAna Lúcia Garcia
Um show de inteligência. Agradeço imensamente a você porque a leitura deste artigo maravilhoso e estas imagens lindas demais provocaram em mim questionamentos e aplausos incondicionais. Blog Semióticas: melhor blog.
ResponderExcluirPaola de Resende Costa
Agradeço por esta postagens maravilhosa de erotismo e alto nível. Só de incluir Sophia Loren, a mulher mais linda do mundo, ganha alguns pontos a mais. Acho que este blog Semióticas é mesmo um dos melhores blogs independentes. Cheguei aqui hoje, mas já descobri que todas as postagens são cada uma melhor que a outra. Parabéns demais.
ResponderExcluirJackson de Souza
Cada visita que faço a este blog Semióticas é uma surpresa e uma alegria. Hoje cheguei nesta postagem por acaso e estou encantada com o texto e com esta edição de imagens sensacional. Vale por uma aula de alto nível. Muito obrigada por compartilhar. Acho que virei uma fã de carteirinha deste blog.
ResponderExcluirFabiane Eggert Alves