Uma
das maiores revistas da história da América Latina, pela qualidade
e pela média de 4 milhões de leitores semanais que atingiu, em
meados do século 20 – o mais importante veículo do império de
imprensa dos Diários Associados, do lendário Assis Chateaubriand, O
Cruzeiro, a TV de papel, como se dizia na época, fez escola,
consagrou jornalistas e fotógrafos, realizou coberturas marcantes e
ambiciosas sobre a vida de um país em constantes transformações,
deixou saudades, muitas polêmicas e também muitas dívidas.
Durante
meio século, O Cruzeiro trouxe fama, fortuna e glória para uns e
ruína para outros. Entre a primeira edição, em 1928, lançada às
vésperas da Revolução de 1930, e a última, em 1974, chegou a
atingir em seus tempos áureos, nas décadas de 1940 e 1950, tiragens
de mais de 700 mil exemplares – número absurdo, se comparado aos
jornais e revistas de maior circulação naquele mesmo período, que
raramente tiveram tiragens superiores a 10 mil. O Cruzeiro se manteve
por 50 anos como principal fonte de leitura e informação em todo o
Brasil, além da multidão de leitores que conquistou na América
Latina, nos anos 1950, quando também foi editada em espanhol.
A
trajetória da revista que teve sua história vinculada ao
processo de modernização da sociedade brasileira e suas questões
polêmicas, fundamentais para a imprensa e os desdobramentos da
política, no Brasil do século 20, têm poucos registros em livro,
em uma proporção inversa à sua importância. Entre os relatos
publicados sobre a trajetória da revista, referência obrigatória
sobre a imprensa brasileira, há a biografia "Chatô, O rei do
Brasil" (Companhia das Letras, 1994), de Fernando Morais – e
também o catálogo da mostra recente realizada pelo Instituto
Moreira Salles, "As origens do fotojornalismo no Brasil: um
olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)", projeto que une extensa
pesquisa acadêmica em torno da revista, exposição itinerante e
publicação do catálogo com os estudos e o acervo fotográfico do
IMS.
Além
do catálogo da exposição e do livro de Fernando Morais, que
tornou-se best-seller desde o lançamento, com a história do 'velho
capitão' Assis Chateaubriand, mais temido que amado, poderoso,
controvertido, há também um outro livro, que não teve destaque na
época do lançamento nem tornou-se campeão de vendas, mas que
apresenta um registro específico e da maior importância sobre o
cotidiano da principal revista brasileira do século 20: "O
Império de Papel – Os bastidores de O Cruzeiro" (Editora
Sulina, 1998), escrito por alguém que por certo pode falar com
propriedade sobre os bastidores da publicação: o
jornalista Antonio Accioly Netto, que durante 40 anos foi
redator e diretor de redação da revista.
Nomes,
datas, histórias
Na
época em que "O Império de Papel" foi lançado, tive a
sorte de entrevistar Accioly Netto para o
jornal “O
Tempo”, de
Belo Horizonte. O lançamento do livro, com sessão de autógrafos,
chegou a ser agendado em BH, mas terminou cancelado, na véspera do
evento, por causa de um problema de saúde do autor, na época com 92
anos, ainda morando no Rio de Janeiro e muito lúcido, bem-humorado,
demonstrando uma memória surpreendente para nomes, datas e
acontecimentos da história do Brasil – como comprovei na conversa
pelo telefone.
Durante
a entrevista, um detalhe que me deixou surpreso, além da lucidez do
quase centenário Accioly, foi a extensão das atividades a que ele
se dedicou. Além do seu trabalho capital em O Cruzeiro, foi também
artista plástico (participou da histórica Semana de Arte Moderna de
1922, em São Paulo), publicitário, escritor e autor teatral, com
vários livros publicados. O registro das memórias do tempo de O
Cruzeiro, seu último projeto, consumiu cerca de 25 anos, desde a
preparação e revisão dos originais à seleção de fotografias e
ilustrações para a edição do livro. Accioly Netto morreria em
abril de 2001, três anos depois do lançamento de "O Império
de Papel".
Antes
de fazer contato com o autor, na época do lançamento, elaborei um
roteiro extenso para a entrevista, mas pelo telefone ele foi
econômico nas respostas, com tiradas certeiras de bom humor e ironia
e, na maior parte das vezes, apontando que a pergunta feita ja estava
respondida no livro, no capítulo tal e página tal. Entre uma e
outra ironia, ainda lembrou dos vários jornalistas mineiros que
passaram pela redação de O Cruzeiro e comentou sobre os tantos
jornais importantes que surgiram, fizeram História e desapareceram
em Minas Gerais, no decorrer do século 20 – entre eles, Jornal de
Minas, Jornal da Noite, Diário da Tarde, Diário de Minas, A
Tribuna, Folha de Minas, Diário Mercantil, O Combate, Binômio e muitos outros.
Mais
críticas do que admiração
Pelo
telefone, o homem que esteve durante décadas à frente da redação
da revista O Cruzeiro não teve reservas em criticar os políticos
que estavam no poder no final dos anos 1990. Também não fez nenhum
elogio à imprensa – muito pelo contrário. Sobre as grandes
personalidades da época de O Cruzeiro, Accioly Netto também
confessou, na entrevista e no livro, mais críticas severas do que
admiração, incluindo revelações negativas sobre seu antigo
chefe Assis Chateaubriand, seus subordinados e seus aduladores, e
sobre medalhões da política e da cultura como Vargas, JK,
Niemeyer, Carmen Miranda.
O
relato do autor, testemunha ocular dos caminhos trilhados pela
revista mais importante de seu tempo, resume uma reflexão muito
pessoal sobre o passado, reunindo à historiografia saborosas
anedotas envolvendo artistas e políticos do primeiro escalão. Tanto
que ´"O Império de Papel" poderia ser classificado como
livro-reportagem e também como prosa memorialista, por conta do
lirismo de suas passagens confessionais.
Há
também o impressionante e permanente sucesso de público, que fez a
revista esgotar nas bancas desde a primeira edição, mantendo de
forma ininterrupta o mesmo apelo até que houve a ruína financeira,
a morte de Chateaubriand e o esfacelamento do império. Accioly
recorda que, mesmo em ruína financeira, O Cruzeiro ainda conservava
uma vendagem relativamente boa quando teve sua publicação
interrompida. O fim veio em 1974, quando o título foi cedido para
pagar dívidas atrasadas e voltou a circular, em versões limitadas e
canhestras, até 1975.
Uma
revista assassinada
Com
o fechamento da revista, o sofisticado equipamento gráfico foi
liquidado a preço de ferro-velho, a memorável equipe de redação
no Rio de Janeiro se dispersou e os arquivos da revista –
considerados à época os melhores já reunidos por uma publicação
em toda a história da imprensa no Brasil – foram arrematados pelo
jornal Estado de Minas, sendo transferidos em caminhões para Belo
Horizonte. Duas décadas e meia depois da “débácle”, Accioly
publicou seu relato sobre a experiência na revista, definido por ele
como "um acerto de contas com o passado e com uma revista que
foi assassinada".
Os
originais de Accioly tiveram a edição final organizada por Ruy
Castro e Heloísa Seixas, que mantiveram o tom confessional e a
narrativa em primeira pessoa, concisa e equilibrada, pontuada por
muitas fotografias e fac-símiles dos arquivos pessoais do autor.
Accioly resume os 46 anos de circulação de O Cruzeiro em breves 160
páginas, intercalando a leveza e a complexidade da trajetória com
suas lembranças privilegiadas de quem acompanhou 'de dentro' cada
número semanal da revista, desde o primeiro, em 1928, até a
derrocada do Império Chateaubriand.
Através
do relato por vezes irônico, por vezes direto e contundente do
autor, "O Império de Papel" apresenta um inventário dos
bastidores da revista que formatou o imaginário de milhões de
brasileiros por décadas seguidas, antes do sucesso do rádio ou da
onipresença da TV. Nas páginas do inventário assinado por Accioly
surgem nomes conhecidos, outros nem tanto, e muitas artimanhas que
ainda hoje continuam a reger as complexas relações entre imprensa e
política.
Notáveis no 'esquadrão de ouro'
Também
surge no livro de Accioly um elenco interminável de personalidades
notáveis: aquelas que acabaram virando notícia – artistas,
políticos, atletas, jogadores de futebol, nomes de primeira grandeza
na história brasileira, alguns visitantes estrangeiros – e aquelas
que fizeram a notícia, incluindo o trabalho em dupla de repórter e
fotógrafo, que O Cruzeiro inaugurou e manteve como linha de frente,
e célebres redatores, colunistas, chargistas, ilustradores.
Um
dos maiores sucessos de O Cruzeiro, a seção e o personagem "O
Amigo da Onça" foram criados por um dos cartunistas
fixos da revista, Péricles, inspirado em um outro personagem de
sucesso na imprensa argentina da primeira metade do século 20. Outro
grande sucesso da revista foi a seção "As Garotas",
coluna impressa em cores semanalmente entre 1938-1964, produzida por
Alceu Penna com seu traço característico em ilustrações sobre as
'jovens modernas' e breves textos de ironia e humor, levando para
todo o Brasil a moda e os costumes cariocas. A seção "As
Garotas" também foi considerada referência no comércio de
tecidos e produtos direcionados ao público feminino e precursora na
criação de uma moda brasileira.
Além
de Péricles e Alceu, nomes que permanecem em destaque na imprensa
como Millôr Fernandes e Ziraldo também fizeram parte dos quadros da
revista, assim como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rachel de Queiroz
e muitos outros. "O Cruzeiro só fez o sucesso que fez, durante
tanto tempo, porque contava com um 'esquadrão de ouro' de grandes
repórteres e de grandes fotógrafos. Eles é que foram as
verdadeiras estrelas, porque levaram a atividade de imprensa no
Brasil a um patamar novo e muito nobre. O 'esquadrão de ouro' de O
Cruzeiro provocou uma profunda revolução no Brasil e no jornalismo
brasileiro", defende Accioly, relembrando uma ou outra das
grandes reportagens que fizeram história sobre índios, misses,
escândalos, estrelas e até discos voadores, para destacar o mérito
dos profissionais que fizeram a revista e que permanecem entre os
mais brilhantes na imprensa brasileira.
"O
Império de Papel" apresenta a lista completa do 'esquadrão de
ouro' da revista que, em seus tempos áureos, era comparada a
publicações internacionais como Life, Look, Vogue, Cosmopolitan,
entre outras. Estão na lista o repórter David Nasser, que formou
dupla com o fotógrafo Jean Manzon, além de outras duplas memoráveis
reunindo nomes como Mário de Moraes e Ubiratan Lemos, Arlindo Silva
e Jorge Ferreira, Odorico Tavares e José Medeiros, João Martins e
Eduardo Keffel, Luciano Carneiro, Edmar Morel, Eugênio Silva, Flávio
Damm, Carlos Moskovics, Salomão Scliar, Roberto Maia, Indalécio
Wanderley, Pierre Verger, Luis Carlos Barreto – além de
muitos e muitos outros e do próprio Accioly Netto, seguramente um
dos personagens principais na saga de O Cruzeiro.
por José
Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O
Cruzeiro nos bastidores.
In: Blog
Semióticas,
15
de setembro
de 2013.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/09/o-cruzeiro-nos-bastidores.html
(acessado em .../.../...).
Obrigado por este belo cruzeiro no O Cruzeiro!...
ResponderExcluirMuito bom mesmo. Você não disse, mas Chateaubriand era um grande bandido que vivia de chantagem e achaques. Mas ele fez, ninguém pode negar. Não conhecia este Accioly, mas entendi que ele era O Cara dos bastidores da revista. Obrigado, José. Seu blog é fantástico.
ResponderExcluirPaulo Amaral
Parabéns, professor. Belo estudo sobre a imprensa no Brasil. Gostaria muito de ser sua aluna. Se suas aulas forem tão lindas como as páginas deste Semióticas, seu curso deve ser o Paraíso. Parabéns pelo blog!
ResponderExcluirZé, eu tinha um arquivo maravilhoso encadernado em uma pasta com algumas edições da revista Cruzeiro e também de algumas edições da revista Realidade, um presente que meu avô me deixou. Doei para a biblioteca de uma Universidade mas confesso que tenho saudades da minha coleção...Como você bem disse, revistas como essa nos deixam nostálgicos, principalmente por retratar questões polêmicas e promover transformações sociais e políticas, inclusive na imprensa, além desses registros infelizmente não terem tanto êxito em livros de história do século XX....Ta aí um exemplo de como nossa imprensa ainda era valorizada e reconhecida, uma pena, em pleno século XXI testemunharmos tanto retrocessos em revistas por aí....Abração, Rodolpho Sélos
ResponderExcluirEstou impressionada com a qualidade de tudo que encontro aqui neste Semióticas. Simplesmente todas as páginas são geniais. Sobre este estudo fantástico, concordo com o Paulo Guimarães: Obrigada por este belo cruzeiro no O Cruzeiro!...
Belo registro, José. Seu blog é realmente excelente. Parabéns.
ResponderExcluirJosé Maurício Tavares
Semioticas é tudo de bom. Que maravilha ! Deveria virar uma revista. Neste mundo virtual e atual lotado de revistas e páginas vazias de conteúdo, você é um presente. Uma inspiração.
ResponderExcluirObrigada por se dar ao trabalho de nos lembrar que a vida é rica, e continua valendo a pena.
Muito bom. Este ensaio sobre O Cruzeiro está excelente, tanto quanto tudo o que encontro aqui neste blog Semióticas. Parabéns!
ResponderExcluirFaço minhas as palavras da Adriana Vitória, vocês da Semiótica são fantásticos, um presente! É maravilhoso o que consigo aprender através desse blog, José Orlando é um profissional admirável. Parabéns!
ResponderExcluirSua presença é sempre muito bem-vinda e sou muito grato pelos elogios, meu caro leitor anônimo. Mas os comentários precisam ser assinados, caso contrário são excluídos. Aguardo sua assinatura no próximo. Forte abraço.
ExcluirUm espetáculo, como são todas as páginas e matérias deste blog Semióticas. Parabéns, José. Sou fã. / Wilson de Menezes
ResponderExcluirAlguém sabe onde existe ou se existe algum acervo de "O Cruzeiro" preservado para consulta? Será que "O Estado de Minas" teria, já que o arquivo da revista por arrematado pelo jornal?
ResponderExcluirOlá, Guilherme Pacelli. Seja muito bem-vindo ao blog Semióticas. Sobre sua pergunta: sim, acervo e coleções de O Cruzeiro pertencem à empresa Estado de Minas/Diários Associados. Boa sorte na pesquisa.
Excluirmuito bom.
ResponderExcluirSou estudante de Jornalismo em Porto Alegre e esta página do seu blog Semióticas é a melhor aula que já tive sobre O Cruzeiro e o jornalismo no Brasil. Enviei uma cópia do meu projeto de TCC para seu email semioticas@hotmail.com Se fosse possível, gostaria muito de ouvir sua opinião de especialista. Parabéns pelo trabalho e parabéns pelo blog. Sou fã.
ResponderExcluirSemióticas fazendo sua trajetória de sucesso, excelente matéria !!!
ResponderExcluirMuito bom mesmo. Acho que é a melhor matéria que já encontrei sobre a revista O Cruzeiro. Que pena que o livro do Accioly esteja esgotado. Parabéns pelo seu blog Semióticas. Que espetáculo!
ResponderExcluirQue maravilha de página e de blog. Uma aula saborosa em cada post. Virei fã deste Semióticas na primeira visita. Parabéns, José. Alto nível.
ResponderExcluirRicardo Xavier Cortella
Parabéns de novo. Que show de jornalismo e de reflexões preciosas que é este site Semióticas! Quando chego aqui é um problema porque são muitos artigos densos e tão belos nos textos e nas imagens que sempre perco a hora de ir embora. Parabéns, parabéns. Vida longa!
ResponderExcluirMaria Alice Patalano
Muito obrigada por me trazer esta beleza de postagem sobre a revista O Cruzeiro, muito completa em todos os detalhes e que me fez recordar da minha infância na casa dos tios e tias. Vale por uma aula ou por um curso inteiro. Perfeição em tudo, texto maravilhoso, imagens maravilhosas. Amei tudo.
ResponderExcluirAnna Gutiérrez
Sua postagem será minha referência principal na minha pesquisa de monografia na graduação da UFMG. Cheguei até aqui por causa de um link que uma amiga compartilhou no Twitter e estou encantada com o que encontrei, com seu texto perfeito, com esta edição de imagens lindas e com tudo o mais neste blog Semióticas. Só agradeço. Parabéns pelo alto nível em tudo.
ResponderExcluirMarcela Firmino de Freitas
Uma beleza de postagem sobre a revista O Cruzeiro. Texto completo e impecável, seleção de imagens que é um show. Parabéns.
ResponderExcluirRodrigo Pimentel
Um link no Twitter me trouxe a esta postagem. Esperava uma coisa e encontrei outra, infinitamente mais sofisticada e bem escrita. Achei um primor esta postagem sobre a revista O Cruzeiro e tudo o mais que estou encontrando neste maravilhoso blog Semióticas. Parabéns pelo alto nível. Ganhou mais uma fã de carteirinha.
ResponderExcluirBella Almeida