Uma fotografia é um segredo de um segredo. Quanto mais ela te fala, menos você sabe.
––
Diane
Arbus. |
As fronteiras instáveis e fluidas entre alta cultura e cultura popular – ou entre a arte erudita e o kitsch, o brega, o cafona, no sentido de separar o que seja de bom gosto do que seja vulgar, duvidoso, sem refinamento, de mau gosto ou de qualidade inferior – surgem diluídas e misturadas em uma mostra que, pela primeira vez, reuniu um acervo de 200 obras de 83 artistas latino-americanos de destaque nascidos no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, da Guatemala, México, Peru e Venezuela. Todas as obras têm em comum o suporte fotográfico com alguma forma de intervenção de pós-produção ou de colagem e abrangem um período histórico de um século, da primeira década do século 20 às duas primeiras décadas do século 21.
Intitulados
“Les
Paradis Latins” (Os
paraísos latinos), a exposição e
o
fotolivro que registra o acervo foram
organizados
pela Fundação Bemberg de Toulouse, França, tendo como referência
a valiosa coleção de raridades garimpadas desde a década de 1960
pelo casal de colecionadores Leticia e Stanislas Poniatowiski, na sua
maioria
retratos tanto de pessoas anônimas como de celebridades, de artistas ou
de figuras de importância histórica. Anunciada
como “celebração de um século de fotografia latino-americana”,
a exposição também poderia ser definida como inventário de um
século de imagens
de resistência
à violência e ao preconceito, pois
reúne
obras de diferentes períodos e lugares que enfrentaram a censura e o
silenciamento seja de falsos paladinos da moral e dos “bons costumes” ou
de governos autoritários.
O caráter subversivo
Outra
presença em todas as imagens fotográficas reunidas são as figuras femininas,
ou antes a feminilidade, principalmente em seu caráter subversivo
diante da norma dominante e da censura que tentou silenciar ou esconder na
penumbra as
dançarinas
de tango, de samba, de salsa e
de bolero,
vedetes e coristas de cabarés ou de teatros, travestis,
transgêneros, artistas marginais e
ativistas que
movimentaram a revolução social, a identidade cultural e a diversidade sexual no
intervalo de décadas.
A apresentação, em sua maioria, de cores fortes e contrastantes
em
destaque, com evidentes intenções de apelo melodramático, também
é um traço comum entre as obras do acervo. Em diversas obras, as cores foram acrescentadas com pincel e tinta ou lápis coloridos sobre as estampas impressas, uma
estratégia que desde os primórdios da fotografia levou muitos
artistas a pintarem ou retocaram a mão os retratos registrados pelas
câmeras.
Fotografia
em paraísos tropicais:
no alto,
Abaixo,
Nahui
Olin
(México, 1921), fotografia |
Na extensa galeria da diversidade, em que algum charme das celebridades e muitas extravagâncias anônimas se misturam, marcadas pelo requinte ou pelo excesso provocante, cada uma das amostras dos “paraísos latinos” do acervo também diluem as fronteiras que separam a fotografia das outras artes visuais, em estratégias de aproximação com o desenho e a pintura, com as artes gráficas, as variações da gravura, as fotonovelas, as técnicas dos cartazes e da publicidade, ou as técnicas mistas de colagens, de recortes, de montagens e de sobreposições de imagens. Algumas das obras remetem às experiências dos mestres dos movimentos de vanguarda da arte moderna no começo do século 20, ainda que a maioria delas tenha sido produzida a partir da década de 1960, sob uma forte e evidente influência das experiências da Pop Art e da arte contemporânea.
A intensidade da cor
No ensaio que apresenta a exposição e o fotolivro, o curador e historiador Alexis Fabry (também autor de “Urbes Mutantes 1941-2012”, catálogo sobre a fotografia latino-americana, publicado na Espanha em 2013) destaca que na maior parte dos países da América Latina a intensidade da cor e do carnaval são inseparáveis da tragédia. “A proximidade entre a festa e o trágico, assim como o atrito e a permeabilidade entre a alta e a baixa cultura, são questões muito características da arte latino-americana”, reconhece. Outra questão a que o curador faz referência é a carência de recursos financeiros e materiais, sempre presente para artistas da América Latina, o que levou muitos deles a recorrerem a suportes alternativos como papel e fotocópias, que são meios mais baratos e de fácil acesso que permitem uma ampla divulgação das obras.
Fotografia
em paraísos tropicais:
no alto, |
Alexis Fabry, ao justificar os critérios historiográficos e estéticos da curadoria, também ressalta que, enquanto nos países da Europa e nos Estados Unidos a Pop Art se concentra em comentários de metalinguagem sobre a sociedade de consumo, na América Latina a influência da Pop Art estabelece um diálogo imprevisível com o artesanato, com a arte ingênua das festas populares e com o que a cultura erudita costuma nomear como vulgar, como brega e como cafona – termos carregados de preconceito desde a origem linguística: “vulgar” é uma definição para o grosseiro e o obsceno porque tem origem popular, acessível a todos, enquanto “brega” seria o gênero do exagero dramático, ingênuo ou mal feito, e “cafona”, equivalente ao italiano “cafone” (camponês, periférico, rude e estúpido), identifica as imitações grosseiras e fora de moda.
Sobre o acervo reunido com a chancela de “paraísos latinos” vale acrescentar que os adjetivos citados como juízo de valor – vulgar, brega ou cafona – são termos que, traduzidos em outras línguas, encontram sinônimos ou correlatos na complexidade do “kitsch” ou do “camp”, conceitos amplamente discutidos e problematizados por teóricos da cultura como Theodor Adorno ou Susan Sontag. Em outras palavras, são termos que, antes de terem uma definição apressada, elitista e muito preconceituosa, como mau gosto, como exagero ou como falso e artificial, poderiam também ser caracterizados como uma resposta original e popular à cultura de massa e aos processos de industrialização – ou ainda, como adverte Susan Sontag em “Notes on Camp”, ensaio publicado em 1964, como um produto ou uma obra de uma estética especial que consegue a proeza de ironizar e tornar ridículo tudo o que seja dominante.
por
José Antônio Orlando.
Como citar:
ORLANDO, José Antônio. Fotografia em paraísos tropicais. In: Blog Semióticas, 10 de janeiro de 2025. Disponível em: https://semioticas1.blogspot.com/2025/01/fotografia-em-paraisos-tropicais.html (acessado em .../.../…).
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Fotógrafos e artistas
reunidos em “Les
Paradis Latins”:
Luiz
Alphonsus (Brasil), Édgar Álvarez (Colômbia), Yolanda Andrade
(México), Constantino Arias (Cuba), Aristides Ariza (Colômbia),
Éver Astudillo (Colômbia), Pepe Avilés (Equador), Daniel Barraco
(Argentina), Álvaro Barrios (Colômbia), Gerardo Bastón (México),
Juan Enrique Bedoya (Peru), Ricardo Bezerra (Chile), Bandi Binder
(Argentina), Joaquín Blez (Cuba), Hugo Brehme (México), Jorge
Cáceres (Chile), Johanna Calle (Colômbia), Carlos Caputto
(Argentina), Anselmo Carrera (Peru), Daniel Chauche (Guatemala),
María Eugenia Chellet (México), Gilberto Chen (México), Cif
(México), Raúl Corrales (Cuba), Armando Cristeto (México), Ayrton
de Magalhães (Brasil), Gertrudis de Moses (Chile), Facundo de
Zuviría (Argentina), Hector Delgado (Peru), Hernan Díaz (Colômbia),
Wilson Díaz (Colômbia), Felipe Ehrenberg (México), Paz Errázuriz
(Chile), Gustavo F. Silva e Nahui Olin (México), Simon Flechine
(México), George Friedman (Argentina), Flavia Gandolfo (Peru),
Andrés Garay (México), Kattia García Fayat (Cuba), Antonio Garduño
(México), Pedro Juan Guttiérrez (Cuba), Maria Eugenia Haya (Cuba),
Annemarie Heinrich (Argentina), Armando Herrera (México), Terry
Holiday (México), Graciela Iturbide (México), Maripaz Jaramillo
(Colômbia), Agustin Jiménez (México), Alejandro Kuropatwa
(Argentina), Melitta Lang (Argentina), Fabrizio León Diez (México),
Sandra Llano-Mejía (Colômbia), Marcos López (Argentina), Rogelio
López Marin (Cuba), Sergio Marras (Chile), Agustin Martínez Castro
(México), Daniel Merle ( Argentina), Jorge Maria Múnera (Colômbia),
Juan Ocón (México), Martin Ortiz (México), Pablo Ortiz Monasterio
(México), Adolfo Patiño (México), Valle Polifoto (Colômbia), Juan
Ponce Guadián (México), Santiago Rebolledo (Colômbia), Miguel Rio
Branco (Brasil), Carla Rippey (México), Manuel Jesus Serrano
(Equador), José Sigala (Venezuela), Francisco Smythe (Chile),
Guadalupe Sobarzo (México), Grete Stern (Argentina), Rubén Torres
Llorca (Cuba), José Trinidad Romero (México), Sergio Trujillo
(Colômbia), Jorge Vall (Venezuela), Manolo Vellojín (Colômbia),
José Luis Venegas (México), Leonora Vicuña (Chile) e Rogelio
Villarreal (México).
Fotografia
em paraísos tropicais:
no alto, |
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