É
uma notícia surpreendente: 300 desenhos inéditos de Andy Warhol
foram descobertos pelo crítico de arte e curador alemão
Daniel Blau. Apesar de
serem os trabalhos mais antigos produzidos pelo Warhol, na época recém-formado
em um curso de design, são desenhos sofisticados, que lembram o traço de
mestres. À primeira vista, o observador poderia até pensar que se
trata de estudos feitos por Matisse, ou quem sabe
Picasso, Schiele, Klimt, Toulouse-Lautrec.
A
coleção de desenhos – a maioria deles em grafite sobre papel, com
45,3 por 40,9cm e algum retoque de tinta ou aquarela – cobre a lacuna que existia sobre o período menos conhecido do trabalho
do artista, que vai de seus primeiros trabalhos e sua formação numa escola técnica de desenho
industrial em sua terra natal, Pittsburgh, até a primeira
exposição individual que ele conseguiu realizar em Nova York, em meados da década
de 1950.
O
mais novo “tesouro” de Andy Warhol foi descoberto quase por
acaso. De passagem por Nova
York, em 2011, Daniel Blau visitou uma exposição na Andy Warhol
Foundation for the Visual Arts e soube, através de um dos
coordenadores da instituição, Vincent Fremont, que os trabalhos de
inventário e catalogação do que Warhol produziu ainda não estavam
concluídos, mesmo depois de tantos anos da morte do artista.
Fremont, que foi um dos secretários pessoais de Warhol, revelou a
Daniel Blau que ainda há um grande número de obras não avaliadas, além de várias séries de gravuras e outros projetos que ficaram inacabados. O galerista alemão, ávido por novidades, programou uma nova temporada em Nova York para investigar os inéditos no espólio de Warhol.
O
garimpo não poderia ter resultado mais inesperado: entre os arquivos
trancados por mais de 20 anos na sede da fundação, em Nova York,
estavam os desenhos, cuidadosamente organizados em envelopes lacrados
desde 1990, mas erroneamente etiquetados como “sem valor
comercial”. Daniel Blau, que foi quem descobriu e identificou o
tesouro, recebeu carta-branca da direção da Andy Warhol Foundation
e não perdeu tempo nem dinheiro: organizou a publicação dos
desenhos em um catálogo de luxo de 280 páginas e apresentou os
originais inéditos na exposição “From Silverpoint to
Silver Screen”, aberta ao público desde o último final de semana no Louisiana Museum of Modern Art, em Copenhagem, Dinamarca (veja no final desta página os
links para o catálogo da exposição e para uma visita virtual ao
museu).
Trabalhos sob encomenda
Warhol é uma lenda e ele próprio amava propagar as
mistificações sobre sua biografia e sua trajetória. Filho de
imigrantes tchecos, estudou desenho técnico e industrial no Carnegie Institute of
Technology de Pittsburgh e, em 1949, aos 21 anos, recém-formado,
resolve dar um passo arriscado: decide trocar Pittsburgh por Nova
York, com a cara e a coragem. Mas, como ele gostava de repetir, sua
sorte brilhou depois de um breve período de dificuldades. Ainda
naquele ano de 1949, recebeu a primeira encomenda de uma ilustração
para a “Glamour”, uma das revistas que representavam para o
designer recém-formado todas as qualidades da sofisticação.
Uma certa aura de misticismo paira sobre esta primeira encomenda. Klaus
Honnef, um dos biógrafos de Warhol, diz que o aspirante a artista
teve a inspiração em um sonho e, em seguida, procurou a editora de arte da "Glamour" para mostrar um portfólio com
seus melhores trabalhos. Aguardou na sala de espera o dia todo e só
foi atendido no final da tarde. A editora, Tina Fredericks, olhou
alguns dos desenhos, fez elogios, mas lamentou que nenhum deles
servisse: ela precisava, com urgência, de ilustrações sobre
sapatos. Na manhã seguinte, Warhol reapareceu muito cedo na redação com mais
de 50 desenhos, ilustrações e aquarelas de sapatos, de todas as
formas, cores, perspectivas. Foi imediatamente aceito. Uma das ilustrações foi publicada
naquela semana e outras encomendas viriam, para as edições
seguintes.
Parece até um trocadilho, bem ao gosto do principal
expoente da Pop Art: “Glamour” foi sua porta de entrada no mundo
das revistas e da publicidade. Naquele momento, o jovem artista
abandonaria o nome de batismo, Andrew Warhola, e passou a assinar
Andy Warhol, começando uma intensa produção de ilustrações sob
encomenda para agências de publicidade e para revistas de prestígio
como “Vogue”, “Look”, “Life”, “The New Yorker”,
“Harper's Bazaar”. Cartazes, anúncios, pôsteres, capas de revista, de disco, de
livros, ilustrações para crônicas e reportagens, layouts para
embalagens, projetos de desenhos industriais para sapatos, cintos e
acessórios, cosméticos, perfumaria – Warhol produzia tudo, com brilho, mas
sua assinatura raramente aparecia nestes trabalhos.
Mesmo sem nenhum reconhecimento fora das agências e das redações das revistas, Warhol não para. Neste começo de carreira, durante o dia ele cumpre a maratona infinita de trabalhos sob encomenda. Mas, para compensar, à noite, em seu apartamento minúsculo – quase sempre compartilhado com amigos e com amigos de amigos para dividir os custos de aluguel – ele se dedicava à arte: aos desenhos sobre os mais variados temas e estudos para aquarela, aperfeiçoando o traço ao tentar reproduzir detalhes das imagens de famosos e de anônimos estampadas em jornais e revistas.
Ilustrador
de revista
A
quase totalidade dos trabalhos desta primeira fase do artista somente
agora foram descobertos e revelam um outro Warhol: extremamente
poético e inventivo no minimalismo do traço, ao contrário de seus
trabalhos que criaram a tradição da Pop Art, nos quais ele
investiria nas décadas seguintes, com a repetição à
exaustão das gravuras apropriadas da publicidade e do cinema para
experiências com policromia e sobreposições – em técnicas
híbridas que fizeram dele uma celebridade internacional e um
capítulo em destaque na História da Arte.
Separar
a “arte-arte” dos trabalhos para publicidade e sob encomenda é
uma prática que ele iria adotar durante toda a sua trajetória,
desde estes primeiros tempos. Mesmo depois, nas décadas seguintes,
no auge do sucesso, quando sua presença e assinatura funcionavam
como grife em lances geniais de marketing e autopromoção, Warhol
sempre manteria esta distinção: uma coisa era a arte, seu empenho
nas experiências formais e de expressão em diversos suportes, artes
plásticas, fotografia, cinema; outra coisa eram os trabalhos que ele
produzia sob encomenda.
Como a maior parte de seus trabalhos nesta primeira fase
foram publicados ou veiculados sem assinatura, se conhece muito pouco
sobre este acervo e sobre o estilo adotado pelo primeiro Warhol – o
que reforça a importância da coleção inédita descoberta por
Daniel Blau. Entre biógrafos e historiadores, o mais frequente é
marcar a trajetória da obra de Warhol a partir dos trabalhos
reunidos em sua primeira exposição, em 1952, na Hugo Gallery de
Nova York – com 50 desenhos baseados nos escritos de Truman Capote.
.
.
Dos seus trabalhos publicados na imprensa, nesta época,
sabe-se que a maioria são ilustrações de sapatos, não por acaso
tema de sua segunda exposição individual, “Golden Shoes”,
apresentada em Nova York com prêmios e distinções em 1956, na
Madison Avenue. “From Silverpoint to Silver Screen”, a coleção
de desenhos inéditos descoberta por Daniel Blau, estende a
trajetória aos primeiros trabalhos e lança luzes sobre a evolução
da técnica e as principais influências do jovem Warhol,
especialmente Toulouse-Lautrec e outros mestres da Belle Époque.
São muitos estudos anatômicos do torso masculino,
retratos de mulheres (quase sempre inspirados em senhoras da alta
sociedade que frequentavam as colunas sociais), rostos de crianças e
cupidos barrocos, mãos em muitos ângulos e variações de
perspectivas, beijos de jovens casais, estrelas de cinema, pessoas
anônimas a dançar. Na imensa maioria dos desenhos, o elemento
humano é o centro da atenção, com raras exceções, quase sempre
dedicadas a um dos fetiches diletos de mister Warhol: sapatos.
Moda,
fetiche, sapatos
O fetiche e sua mística: na infância o pequeno Andrew
Warhola, tímido e de saúde frágil, era um leitor apaixonado de
histórias em quadrinhos – especialmente “Dick Tracy” e
“Superman” – e passava horas a copiar das revistas os sapatos
de seus heróis. Mais tarde, adolescente, substituiria os heróis
pelas colagens com sapatos e rostos recortados das estrelas de
cinema.
Seu primeiro trabalho publicado, em 1949, também foi
uma ilustração de sapatos. Mais: seu primeiro projeto de um produto
industrial foi para uma fábrica de sapatos e a maioria dos catálogos
sobre a arte de Warhol costuma abrir a cronologia de suas telas e
serigrafias com as imagens de sapatos. Com frequência, são duas as
imagens (de sapatos) apontadas como inaugurais da trajetória do
artista: “À la Recherche du Shoe Perdu” (A procura do sapato
perdido), aquarela negociada em 1955 para ilustrar a capa do livro de
Ralph Pomeroy, e “Judy Garland” (1956), colagem em forma de bota
dourada, cravejada de arabescos, com técnicas de litografia e bico
de pena.
Na apresentação ao catálogo que reúne a íntegra dos
desenhos inéditos, Daniel Blau enumera alguns aspectos técnicos que
a nova coleção acrescenta à obra de Warhol e reconstitui a
surpresa e a alegria que experimentou ao constatar que a coleção
era rigorosamente inédita, descrevendo o passo a passo que o levou à
descoberta.
"Toda a coleção estava esquecida em um envelope
de papel e eu, realmente, não entendo como até agora estes desenhos
incríveis não haviam sido descobertos em nenhuma triagem”,
confessa. “Desde a morte de Warhol, em 1987, muitas equipes de
especialistas catalogaram mais de uma vez o acervo, mapearam o
paradeiro das principais obras, dispersas em museus e coleções
particulares no mundo inteiro, mas ainda assim um tesouro como este
estava escondido, esquecido há tantos anos num labirinto de
armários, gavetas e depósitos fechados que Warhol gostava de manter
em segredo”.
Warhol, o artista profissional, Warhol e suas
mistificações, Warhol e suas surpresas. A nova coleção de
desenhos confirma a complexidade de sua obra, sem nenhuma dúvida o
ponto mais alto da Pop Art, com uma influência que continua perdurando,
tanto na arte quanto na publicidade, na TV, nos videoclipes, no cinema, na internet, no desenho industrial. Para o público em
geral, acostumado a associar o nome de Andy Warhol às imagens
fauvistas do rosto de Marilyn e de outras estrelas, às simpáticas
latas de sopa Campbell ou às bananas psicodélicas criadas para
ilustrar os discos do Velvet Underground, pode ser difícil
identificar o traço do artista nos desenhos minimalistas da coleção
descoberta por Daniel Blau.
Contudo, estes primeiros desenhos do artista quando
jovem também sinalizam claramente um confronto: ao contrário da
tendência da maioria e dos grandes artistas em evidência naquela época, entre
eles Jackson Pollock, Willem de Kooning, Mark Rothko – todos
adeptos e militantes ferrenhos do Expressionismo Abstrato – o jovem
Warhol aposta no retorno à figuração e às imagens recortadas da
mídia, publicidade, imprensa, cinema. Estava na contramão, em um
movimento que poucos arriscariam naquele momento. Warhol bancou a
aposta e se posicionou na origem de um novo capítulo na História da
Arte.
por José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. O primeiro Warhol. In: ____. Blog
Semióticas,
23 de janeiro de 2013. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/o-primeiro-warhol.html
(acessado em .../.../…).
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Uau... Soberbo, José. E muito lindo. Esse Andy Warhol... Semióticas simplesmente um show, como sempre. Vale por uma aula deliciosa, aliás, por um curso inteiro. Beijos mil.
ResponderExcluirSimone Marques
Fantástico. Tenho acompanhado todos os seus posts nos últimos dois meses e estou cada vez mais impressionado. Seu blog está cada vez melhor e esta página sobre Warhol está um escândalo. Palma de ouro!
ResponderExcluirParabéns pelo blog, excelente, e por matérias tão belas e inteligentes como este perfil sobre Andy Warhol. Vendo as matérias do seu blog dá vergonha do que encontro atualmente nos jornais e revistas. Virei seu fã e seguidor convicto deste Semióticas.
ResponderExcluirTRABALHO , JA COM ARES DE PERFEIÇAO...
ResponderExcluirCOM CERTEZA, MUITO MAIS DOQUE 15 MINUTOS DE FAMA...
E SIM ETERNAMENTE CRIADOR...
Tem coisas que fazem a gente pensar, querendo ou não. Estas costumam ser as melhores. Seu blog é assim. Um espetáculo porque é bonito e muito inteligente e porque provoca pensamentos. Muitos parabéns!!!
ResponderExcluirSENSACIONAL!!! 2013 quase acabando e Warhol continua anos luz à frente... Parabéns Zé, esse blog vale ouro!!! :)
ResponderExcluirSemióticas é o melhor blog que conheço. Show. Parabéns, parabéns!
ResponderExcluirCarlos William
Muito bom mesmo. Seu blog é sempre um espetáculo. Parabéns. Virei leitor de carteirinha, quase sócio. Sou muito grato pelo que aprendo em cada visita.
ResponderExcluirUm espetáculo essa sua aula sobre os primeiros passos do grande Warhol. Estou encantada. Parabéns pela qualidade de tudo o que estou encontrando aqui. Semióticas é show!
ResponderExcluirAline Borges
Uma surpresa. Andy Warhol é uma figura surpreendente. E o blog acaba de confirmar essa percepção.
ResponderExcluirAmei saber que 4era fissurado em sapatos e que possuía aquela premência que detectei em Dali, uma urgência em produzir Arte (Dali,no caso, era fustigado por Gala, que não lhe dava moleza) .
Riqueza de conteúdo. Sou-lhe grata.
Imagens lindas demais e seu texto como sempre completo, perfeito. Aprendi muito sobre o incrível Andy Warhol. Parabéns de novo porque tudo é excelente neste Blog Semióticas, tudo de alto nível. Cada visita que faço aqui eu saio mais feliz e com mais conteúdo. ShoW!
ResponderExcluirAlessandro Tridapalli
Achei um luxo essa postagem e tudo mais nesse blog Semióticas.
ResponderExcluirAprendi muito, amei tudo e vou ter que voltar muitas vezes.
Parabéns e muito obrigado por compartilhar.
Domingos Messias