As
nuvens do céu azul que se agigantam sobre o horizonte do casario
barroco. Os grãos do asfalto que segue serpenteando até sumir no
infinito das matas e no horizonte de montanhas distantes. O espaço aberto da imensidão dos vales avistados
na Serra do Cipó. Os enigmas das pinturas rupestres e, nas páginas seguintes,
uma jararaca escondida, quase invisível, nas ranhuras que se abrem sobre o
granito. Prosaicas garrafas de cachaça, enfileiradas no balcão,
cachos e cachos de bananas, borboletas e flores, bandeirinhas coloridas, buritis.
Há também detalhes da arte feita pela gente simples, os monumentos seculares de Aleijadinho, os traços cromáticos de Manuel da Costa Athaíde e, na sequência, uma
fileira de mandacarus, um estranhamento momentâneo na perspectiva provocado por um espelho transversal, que reflete a bancada
respingada de tinta dos artesãos em Prados, as pessoas e os lugares, a mata cercada pelo pasto, o vaqueiro, o prosaico cavalo branco que lembra os seres mitológicos, perdido na vereda, o gado, o curso do rio, o
maciço suspenso das cachoeiras em Conceição do Mato Dentro. A
fotógrafa Rosa de Luca reuniu em livro uma surpreendente seleção de pontos de
vista em cenários e sutilezas extraídas das
tradições e do imaginário das Gerais.
São
belíssimos enquadramentos coloridos que traduzem o poético e as diferenças de um
certo traçado no mapa do Brasil, que desde o Setecentos vem demarcado pelo Coroa Portuguesa como
Terra das Minas Geraes de Ouro, Diamantes e Pedras Preciosas. “Arte
Vida Minas Gerais” (editora Alles Trade) reúne cerca de 200 imagens produzidas no intervalo de oito meses, entre muitas
viagens pelos cenários e lugarejos que Rosa de Luca registra. “Meu trajeto
sempre começava por Belo Horizonte”, recorda a fotógrafa, em
entrevista por telefone.
Sertões de Minas Gerais: no alto e acima,
Sertões de Minas Gerais: no alto e acima,
João
Guimarães Rosa fotografado por
Eugênio
Silva para a revista O Cruzeiro,
em reportagem de Álvares da Silva que
junto com o fotógrafo acompanhou a viagem
de dez dias do escritor pelo sertão, em maio
de 1952, seguindo de Três Marias a Araçaí, na
região central de Minas Gerais, com um grupo
de boiadeiros que levava 300 bois e vacas
em um percurso de 10 fazendas e cerca de
junto com o fotógrafo acompanhou a viagem
de dez dias do escritor pelo sertão, em maio
de 1952, seguindo de Três Marias a Araçaí, na
região central de Minas Gerais, com um grupo
de boiadeiros que levava 300 bois e vacas
em um percurso de 10 fazendas e cerca de
240
quilômetros. A travessia de Rosa seguindo o
grupo, que incluía o vaqueiro Manuelzão (na quinta
foto acima), um dos integrantes da comitiva, daria
origem a diversas anotações em cadernetas que,
anos depois, seriam fundamentais para algumas
obras-primas do escritor, entre elas Corpo de Baile,
livro publicado em 1956, Tutameia, de 1967, e um
grande clássico da literatura em língua portuguesa:
livro publicado em 1956, Tutameia, de 1967, e um
grande clássico da literatura em língua portuguesa:
o
romance Grande Sertão: Veredas, de 1956.
Abaixo, outra imagem de valor histórico: um grupo
anônimo de tropeiros em Itabira do Mato Dentro,
terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em
anônimo de tropeiros em Itabira do Mato Dentro,
terra natal de Carlos Drummond de Andrade, em
retrato feito no começo do século 20 por
Brás Martins da Costa, um dos pioneiros
da fotografia em Minas Gerais. Também
abaixo, fotografias do Santuário do Caraça,
no município de Catas Altas, e outros cenários
típicos do interior de Minas extraídos do livro
de Rosa de Luca "Arte Vida Minas Gerais"
Começo a entrevista comentando sobre a beleza dos cenários de Minas nas fotos e pergunto se ela conhece a história lendária e as imagens da viagem que o escritor Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro, acompanhando uma tropa de vaqueiros, em 1952. Ela diz que conhece as fotos, do também mineiro Eugenio Silva, que foram publicadas na revista "O Cruzeiro" e que sempre estão presentes nas edições dos livros de Guimarães Rosa e nas reportagens sobre a obra do escritor, mas explica que seu roteiro não teve nenhuma intenção de seguir o trajeto de Rosa pelo sertão.
"Meu roteiro era sempre assim: eu chegava de avião, entrava no carro em Belo Horizonte e buscava o destino da Estrada Real, com algumas variações no trajeto", recorda Rosa de Luca. "As belas paisagens e as cenas mais espontâneas que pediam enquadramento pela câmera são só uma parte do encanto”, destaca, descrevendo com lembranças de sons, cheiros e sabores as iguarias da culinária, as cores da natureza, as pessoas e o artesanato que encontrou pelo caminho.
"Meu roteiro era sempre assim: eu chegava de avião, entrava no carro em Belo Horizonte e buscava o destino da Estrada Real, com algumas variações no trajeto", recorda Rosa de Luca. "As belas paisagens e as cenas mais espontâneas que pediam enquadramento pela câmera são só uma parte do encanto”, destaca, descrevendo com lembranças de sons, cheiros e sabores as iguarias da culinária, as cores da natureza, as pessoas e o artesanato que encontrou pelo caminho.
Moda,
Milão, Bahia, Minas
“Arte
Vida Minas Gerais” é
o terceiro livro de Rosa de Luca, que nasceu na Itália e está
radicada há décadas no Brasil, com dedicação ao registro das
paisagens mais deslumbrantes e da diversidade do brasileiro nas
cidades e nos confins dos sertões, das montanhas e dos litorais. Ela
conta que teve formação em Artes pelo Liceu Artístico de Salerno,
na Itália, fazendo questão de destacar que o início de carreira na fotografia teve como marco
importante uma exposição que ela conseguiu realizar
no Brasil em 1984: “São Paulo Cromática”, realizada no Centro
Cultural São Paulo.
No alto, cena rural no Sul de Minas.
Acima, vista do adro da Igreja Matriz
de Santo Antônio em Tiradentes.
Abaixo, uma seleção de portas e janelas
do casario nos cenários do barroco
. |
Depois
desta primeira experiência em terras brasileiras, Rosa de Luca retornaria à Itália para trabalhar em Milão e só
voltaria ao Brasil em 1990, desta vez para se dedicar à fotografia
de moda. Foram diversos trabalhos, alguns deles premiados e selecionados em
exposições individuais e coletivas, no Brasil, na Itália e em
outros países. Até que surgiu como projeto a determinação de
publicar o primeiro livro.
“Foi
em 2007. Elaborei um longo trabalho de pesquisa que concluí com uma
sequência de 60 retratos de nomes das artes plásticas de
importância na atualidade”, recorda. Adriana Varejão, Cildo
Meireles, Arthur Omar e outros foram flagrados em circunstâncias de
trabalho e, no livro – intitulado “Contemporâneas Artes
Artistas” (Alles Trade) – todos aparecem com um pequeno perfil
biográfico produzido pela historiadora do Museu de Arte Moderna
(MAM), Margarida Sant'Anna.
“A ideia inicial era produzir uma série
de catálogos, abordando arquitetos, designers etc”, conta. Uma
viagem à Bahia, contudo, mudou os rumos do projeto e deu origem ao
segundo livro, também publicado pela Alles Trade, em 2008. Rosa
de Luca explica que o livro “Arte Vida Sul da Bahia” nasceu quase
por acaso. “Tudo começou com uma viagem a trabalho e um passeio
que fiz depois. Foi quando decidi reunir uma série de retratos sobre
a região Sul da Bahia, tendo como foco principal os artistas e suas
produções artesanais. É quase um roteiro de viagem pelas regiões
de Belmonte, Santo André, Porto Seguro, Trancoso, Caraíva e tantos
outros lugares perto do mar e da mata”, descreve, lembrando
enquadramentos e situações mais incomuns que deram origem a belas
imagens.
|
O
livro sobre as paisagens de Minas Gerais também nasceu de uma viagem
a trabalho. “Minas é um mundo, são várias, como aquela passagem
do Guimarães Rosa que todo mundo gosta de repetir. Foi difícil,
tive que investir, viajar, voltar outras vezes, mas espero que o
resultado possa traduzir uma pequena parte das impressões que mexeram
comigo”, conta Rosa de Luca. Ela diz que prefere trabalhar sozinha,
sem uma equipe de produção. Usa duas câmeras digitais – uma
Nikon e uma Canon.
O
inusitado e a tradição
Ela
conta que, até o projeto do primeiro livro, trabalhou com filme
analógico. Depois passou para a tecnologia digital pela facilidade
maior para pré-editar o material: além de produzir as fotos
originais, ela também assina direção de arte e o projeto gráfico
de seus livros. Nas belas imagens emolduradas nas páginas de “Arte
Vida Minas Gerais”, a fotógrafa registra cenas que remetem à
tradição, ao barroco, à religiosidade, mas também à pedra
preciosa, ao detalhe inusitado, como convém ao trabalho de qualidade
na arte como no fotojornalismo mais cotidiano.
Da
Serra do Cipó ao Vale do Jequitinhonha, e daí a Milho Verde,
Carrancas, Catas Altas, Barão de Cocais, Bichinho, Ouro Preto,
Mariana – cenários muito diferentes entre si que remetem a
diversos extratos de história, coletânea extensa e preciosa de
paradoxos entre metrópoles e pequenas cidades, punjança industrial
e delicadeza artesanais. É como aponta o prefácio do livro: “nas cidades históricas, com as suas ruas
de pedra, estão intactas, bem-guardadas, as histórias de heroísmo
e brasilidade, iluminadas pelo nosso primeiro compromisso, que é, e
sempre será, com a liberdade. Elas nos trazem, todo o tempo, para o
início de tudo, e seus sinos nos embalam, apontando o caminho e o
rumo, não importa a encruzilhada”.
O
livro também traz breves textos assinados pela atriz, cineasta e
escritora Bruna Lombardi, pela própria Rosa de Luca e por Margarida
Sant'Anna. Bruna e Margarida participaram dos projetos anteriores da
fotógrafa. A apresentação de Bruna é um poema em prosa: “Assim
como as pedras preciosas escondem seu brilho dentro, Minas Gerais
esconde infinitos tesouros, que vão se mostrando aos poucos a todos
aqueles que a descobrem", registra, em uma das passagens.
Margarida
Sant'Anna, em texto tão breve quanto didático, recorda a relação
entre os cenários de Minas e os modernistas da Semana de Arte
Moderna de 1922. Em seu projeto de “descoberta do Brasil”, Mário
de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e vários outros
fizeram em 1924 a lendária viagem às cidades históricas de Minas,
onde encontraram os encantos esquecidos da arquitetura, da pintura e
da talha barroca, mas também das manifestações populares.
Margarida destaca que Tarsila, anos mais tarde, registraria suas
impressões de viagem:
“As
decorações murais de um modesto corredor de hotel, o forro das
salas, feito de taquarinhas coloridas e trançadas, as pinturas das
igrejas, simples e comoventes, executadas com amor e devoção por
artistas anônimos; o Aleijadinho, nas suas estátuas e nas linhas
geniais de sua arquitetura religiosa, tudo era motivo para as nossas
exclamações admiradas”... Para os modernistas da década de 1920
e ainda hoje – aponta Margarida, com propriedade – a
originalidade da cultura mineira tem seus polos de interesse no
legado barroco e no patrimônio da expressão popular.
Lembranças e enquadramentos
Mas entre tantas belas imagens que remetem à literatura e aos sentimentos de Minas, qual ou quais as preferidas de Rosa de Luca? “Todas, com certeza”, brinca a fotógrafa, ao telefone, rindo e fazendo piada com a curiosidade sem tamanho do repórter. Depois ela reconhece que, realmente, uma ou outra imagem publicada no livro trazem com mais força à lembrança circunstâncias que ultrapassam os cenários do enquadramento.
Mas entre tantas belas imagens que remetem à literatura e aos sentimentos de Minas, qual ou quais as preferidas de Rosa de Luca? “Todas, com certeza”, brinca a fotógrafa, ao telefone, rindo e fazendo piada com a curiosidade sem tamanho do repórter. Depois ela reconhece que, realmente, uma ou outra imagem publicada no livro trazem com mais força à lembrança circunstâncias que ultrapassam os cenários do enquadramento.
“Duas
delas me comovem de modo especial, talvez por isso estão nas últimas
páginas. Uma é o longo varal de roupas secando, dependuradas, no
meio do sertão. Outra são os dois vaqueiros na curva da estrada de
asfalto. Mas cada foto pode ter seu encanto. É como o trabalho dos
artesãos em lugares como Bichinho ou Pitangueiras, com a beleza tão
diferente em cada uma daquelas peças, que comove e encanta”,
explica, para completar, depois de uma breve pausa em pensamento.
“Basta olhar com atenção para descobrir a qualidade única do
que, na verdade, sempre esteve ali”.
Depois
desta entrevista, que publiquei em um jornal de Belo Horizonte em 2010,
Rosa de Luca lançou um novo livro no Bienal de São Paulo, em 2012,
retomando a trajetória iniciada com os belos registros fotográficos
sobre o Sul da Bahia e sobre Minas Gerais. “Brasil Arte Vida”
(Alles Trade) também retrata com maestria a ocupação humana e
paisagens deslumbrantes, captadas no Parque Nacional da Serra do
Bodoquena (MS), Lagoa Bonita (MA), Rio Tapajós (PA), Alta Floresta
(MT), Pantanal (MT) e Rio Amazonas.
Tanto
nos projetos anteriores, como no atual “Brasil Arte Vida”, as
imagens mantêm um forte apelo cromático, com a habilidade incomum
de Rosa de Luca para fundir o mais poético e o trivial, cotidiano.
Pós-produção, manipulação em sistema, photoshop? Sim, há
páginas reservadas a sobreposições, justaposições, profundidade
em macro. Mas talvez sejam os detalhes que menos interessam, porque a
maior parte das fotografias é resultado de captação e transposição
direta. Em outras palavras, uma lição para aprender e um deleite
para os sentidos, definitivamente saborosos.
por
José Antônio Orlando.
Para comprar "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, clique aqui.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Das
Minas Gerais.
In: Blog
Semióticas,
15
de janeiro
de 2013. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2013/01/das-minas-gerais.html
(acessado
em .../.../…).
Para comprar "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, clique aqui.
Acima, arte gráfica de Rosa de Luca,
a partir de fotografias de detalhes do casario
barroco de Minas Gerais, e o pequeno índio no telhado, uma das imagens do novo
livro da fotógrafa, Brasil Arte Vida |
Uma beleza. Cada imagem mais linda que a outra, mas seu texto tem uma sofisticação que é rara. Enviei uma proposta para seu email. Aguardo a resposta. E muitos parabéns pelo blog. É um show!
ResponderExcluirElaine Garcia
Belíssima reportagem que traduz com estilo e linguagem poética fotografias e cenários igualmente belos. Só as referências à travessia de Guimarães Rosa e à viagem dos modernistas na década de 1920 incluindo a citação dos diários de Tarsila já mereciam o Jabuti. Muito sucesso virá. Parabéns, José. Este Semióticas é impressionante de tão bom.
ResponderExcluirPedro Paulo de Senna
'Beleza pura'. Depois de escrever e apagar algumas vezes, cheguei à sinceridade dessa expressão que não ouço desde deixei, seis anos atrás, as minhas Minas Gerais para viver em Portugal. O primeiro parágrafo rendeu-me, logo de início, antes de rolar a página e descobrir as maravilhas que viriam, uma longa pausa para apreciar as inúmeras fotografias formadas por minha memória e imaginação. Realmente, estar em Minas é estar apaixonado ou em vias de, a qualquer momento em que o olhar se perca (ou se encontre)no encantamento das coisas mais simples e naturalmente belas.
ResponderExcluirA seguir, a leitura soube-me a banho esperto de cachoeira, desses que energizam o corpo e a mente. Ui! Estava mesmo a precisar.
É certo que virei, muito mais vezes, beber desta riquíssima fonte com feições e aconchegos de casa de amigos.
Um abraço e parabéns pelo blog, que está mesmo um espetáculo.
Oh! Minas Gerais
ResponderExcluirOh! Minas Gerais
Quem te conhece não esquece jamais...
Oh! Minas Gerais...
Belissimo blog. Parabéns.
Que maravilha, José. Texto incrível, imagens lindas, com uma inteligência completa nos assuntos e nas abordagens. Semiótica é muito bom. Parabéns.
ResponderExcluirMaravilhosa postagem. Cheguei aqui depois de uma longa pesquisa sobre a viagem de Rosa e encontrei esse mundo de beleza e sabedoria tão longe e tão perto dele. Estou aqui, aprendendo encantado.
ResponderExcluirCarlos Chiaradia
Parabéns outra vez. Mais uma postagem que me deixa emocionada e feliz. Muito obrigada a você por compartilhar tanta beleza e sabedoria. Amo tudo neste blog Semióticas.
ResponderExcluirSonia Fernandez
Quando encontrei o link no Facebook para esta postagem, pensei que fosse uma coisa e era outra muito diferente, muito mais elaborada e muito mais fundamentada do que eu poderia imaginar.
ResponderExcluirParabéns, amei tudo! Artigo maravilhoso, imagens belíssimas.
Aprendi muito. Agradeço de novo.
Eliane Fonseca