Os que viajam pelo oceano afora
mudam de céu, mas não de alma.
Quintus Horatius Flaccus (65 a.C. – 8 a.C.).
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O que pode uma casinha tão simples e colorida? A pergunta há décadas intriga a fotógrafa e artista plástica Anna Mariani, que viajou pelo sertão fotografando e organizando as cenas que parecem saídas da ficção. Nascida em 1935 no Rio de Janeiro, passou a infância em Salvador e mais tarde estudou fotografia com Claude Kubrusly, Cristiano Mascaro e Maureen Bisilliat. Em 1969, começou a registrar o Recôncavo Baiano usando apenas filme em preto e branco e, uma década depois, em 1976, passou a fotografar em cores as fachadas e detalhes da arquitetura de habitações populares do sertão nordestino.
O primeiro livro com suas fotografias, "Pinturas e Platibandas", foi originalmente publicado em 1987, logo após a participação de impacto da artista plástica e fotógrafa na 19ª Bienal Internacional de São Paulo, com comentários assinados pelo escritor Ariano Suassuna e pela arquiteta Lina Bo Bardi. Aclamadas como grande arte no Brasil e no exterior, as fotografias de fachadas de pequenas casas de lugarejos do Nordeste brasileiro, sempre retratadas em ângulo frontal, sem a presença de pessoas e com enquadramento que com frequência exclui toda a paisagem ao redor, retornam às livrarias em nova edição do Instituto Moreira Salles para "Pinturas e Platibandas", revista e ampliada pela autora.
Com belos textos, tão breves como inspirados, de Ariano Suassuna, de Caetano Veloso e do pensador francês Jean Baudrillard, as imagens registradas por Anna Mariani correram o mundo depois da Bienal de São Paulo. Desde 1987, a série de fotografias ganhou exposições de destaque na França, Alemanha e outros países, retornando agora às livrarias e a uma mostra no Centro Cultural do IMS em São Paulo, que depois segue para as sedes do IMS em outras cidades e nas capitais.
Sete estados do Nordeste
A mostra do trabalho de Anna Mariani, com curadoria do crítico de arte Rodrigo Naves, reúne uma seleção de 24 imagens de fachadas multicoloridas - enquanto o livro reúne 200 das cerca de 2 mil imagens feitas pela fotógrafa de 1976 a 1995 em sete estados do Nordeste do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. A trajetória surgiu após uma viagem da fotógrafa para registrar o percurso de Antônio Conselheiro, líder de Canudos. Foi a primeira experiência de Anna Mariani com filme colorido e a descoberta das cores e contrastes da fachadas a levou a repetir várias vezes as viagens pelas cidades do litoral e do sertão.
Em 1987, Anna Mariani decidiu reunir em um livro uma seleção de 220 imagens. O livro foi lançado na 19° Bienal Internacional de São Paulo, junto com uma exposição que apresentava 80 ampliações fotográficas que causaram impacto por sua beleza e originalidade no registro documental paisagem e manifestações culturais tradicionais. Como é destacado no texto de apresentação ao catálogo, a busca da beleza em meio a condições adversas, mas sem estetizar a pobreza, é uma das características centrais do trabalho de Anna Mariani.
Outra publicação da fotógrafa sobre o mesmo universo da imagens do Nordeste brasileiro surgiu em 1992, quando lançou o livro "Paisagens, Impressões - O Semi-Árido Brasileiro", no qual apresentava fotografias de paisagens do sertão nordestino que registravam a escassez de recursos e também a diversidade de formas da vegetação daquela região. Ingênuas, caprichadas e extremamente simples, as fachadas e platibandas nordestinas nos registros de Anna Mariani expressam também um modo de vida que comove o observador por sua delicadeza.
"O que dizem essas casas?", interroga Caetano Veloso, em texto que faz parte da edição e que foi escrito para a exposição de Anna Mariani no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1988. "Sob o sol-a-sol do Nordeste Brasileiro, em meio à dura vida humana, o que insinua sua lírica geometria?", prossegue Caetano, descrevendo suas lembranças e emoções que os cenários tão familiares despertaram. "Para mim, são coisas íntimas. Casas que conheço por dentro. Em Santo Amaro, onde nasci, no Recôncavo baiano, as pessoas pintam suas casas a cada fevereiro para as festas da padroeira: é como comprar um vestido novo. A cidade fica endomingada, como se fosse um cenário de teatro ingênuo, com todas as casas recém-pintadas".
No mesmo texto, abordando uma determinada sequência de fachadas, e comparando as imagens com suas memórias afetivas da infância, Caetano constrói uma metáfora com as célebres bandeirinhas e os casarios do pintor modernista Alfredo Volpi. "De frente para a câmera de Anna Mariani, elas parecem esboçar um sorriso silencioso. A câmera não pretende interpretar os seus signos", destaca Caetano, "mas entrar numa espécie de estado amoroso com a delicadeza de sua poesia. As fotografias são como monalisas pintadas por Volpi".
As pinturas à base de cal de cada casinha, elaboradas sobre fachadas e platibandas irregulares, com motivos que lembram aspectos das culturas africanas e árabes, são resultado de práticas artesanais seculares de caiação – técnica que aos poucos, conforme os textos do livro ressaltam, tem sido cada vez mais esquecida e substituída por novos materiais e processos sem as mesmas características. De tão marcantes na arquitetura nordestina, as imagens resultantes da pesquisa de Anna Mariani são tomadas como obras de referência para a cenografia de filmes e de minisséries para a TV, a exemplo de “O Auto da Compadecida” (2000) e “A Pedra do Reino” (2007), entre outras produções, além de reforçar o interesse popular e acadêmico por esse marco na arquitetura nordestina do Brasil.
"São fotografias", aponta Jean Baudrillard (1929-2007), no breve artigo que escreveu para apresentar a exposição de Anna Mariani em Paris, no Centre Georges Pompidou, com sucesso de público e destaque de elogios na imprensa por conceituados críticos de arte e historiadores – "mas são fotografias que apareciam como verdadeiras pinturas ou baixo-relevos, surgidos não se sabe de qual friso geométrico de um palácio de Minos subequatorial", argumenta o pensador francês, aproximando as casinhas singelas do sertão, registradas por Anna Mariani, da grandiosidade enigmática de Knossos, uma das moradas lendárias e mitológicas mais célebres da Antiguidade Clássica, conectada às origens do labirinto e da qual só restaram ruínas e sítios arqueológicos.
Baudrillard, poeta, fotógrafo, sempre citado entre os mais respeitados e
influentes sociólogos e filósofos de nossa época,
referência tanto em teses acadêmicas como na cultura pop (entre outros feitos, é inspiração confessa para os irmãos Wachowski da
trilogia “Matrix”), também destaca a poesia estranha e sutil que
emana das imagens registradas por Anna Mariani. A poesia que sobrevive e, nas palavras de Baudrillard, emana de
uma "miséria que não se expressa como miséria, mas como
riqueza de linhas e aparências de uma fotografia que consegue, ela
também, não ser mais fotografia". Sem nenhuma dúvida, observar com atenção as fachadas ingênuas e coloridas fotografadas pelo olhar afetuoso de Anna Mariani ajuda a entender algo mais sobre a sensibilidade e o mundo do sertão nordestino, tão longe e tão perto de nós mesmos.
por José Antônio Orlando.
Como citar:
Como citar:
ORLANDO,
José Antônio. Onde moram os anjos. In: Blog
Semióticas,
14 de agosto de 2011. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2011/08/onde-moram-os-anjos.html
(acessado
em .../.../...).
Para
comprar o livro Pinturas e
Platibandas, de Anna Mariani, clique aqui.
josé, meu querido. anjo é você, fico te imaginando numa dessas janelas a olhar o tempo. ficou lindo o seu blog. lindo mesmo. beijinho para você e vida longa para o blog que é show...
ResponderExcluirE a grife Maria Bonita usou estas mesmas casinhas como inspiração para sua coleção primavera verão do ano passado. Quanta singeleza!
ResponderExcluirÉ impressionante a noção de uma singela arquitetura que essas pessoas têm no subconsciente! e impressionante tb o que conseguem construir com tão pouco recurso... adorei, Zé! Cada post é um aprendizado!
ResponderExcluir(...)poesia estranha de uma "miséria que não se expressa como miséria, mas como riqueza de linhas e aparências de uma fotografia que consegue, ela também, não ser mais fotografia". Zé, de perto é isso e muito mais. Linda mostra fotográfica! Tem cheiro de chão batido e rachado. Nem sempre a beleza é tradução do belo, não é. A tristeza e o sofrimento as vezes mostram suas facetas divinas! Bjo grande!
ResponderExcluirLindo post, José. Vale a pena visitar sempre seu blog.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Simplicidade nas fachadas e conjeturas sobre a riqueza dos seus personagens invisíveis. Lindo trabalho. A cada visita, uma surpresa. Obrigada, Zé.
ResponderExcluirExtremamente inspirador esse post! Lembro-me sempre do Punctum e Studium. Belas fotografias, e a preocupação com os enquadramentos e periféricos. Revelam um cuidado da arquitetura da época, em contraste com os novos perfis urbanos das mega metrópoles de hoje. Parabéns pelo post! Abraço Prof.
ResponderExcluirCristiano Morley
Muito enriquecedor mesmo sendo tão simples! Zé, muito obrigada por postar links maravilhos a cada dia! Abraços
ResponderExcluirJosé, que lugar delicioso esse seu blog! Vou ter que voltar várias vezes para conseguir ler tantos artigos interessantes.
ResponderExcluirEssas casinhas são a cara do Brasil, a nossa cara.
Abraço.
Singelas, autênticas, melancólicas... Casinhas inspiradoras, fotos idem!
ResponderExcluirRe-postei no meu blog. Sempre admirei essas fachas!
ResponderExcluirwww.nopedaparede.blogspot.com
Abraços!
José, simplesmente amei esta postagem! Estou com uns projetos de fotografia bem parecidos com o trabalho desta artista. E o nosso sertão é maravilhoso demais né! Muito obrigada pela várias "luzes" que aparecem ao ler suas postagens e também por enriquecer nossos conhecimentos a cada dia! O blog está um sucesso e será sempre! Abraços com saudades das aulas de semiótica!
ResponderExcluirHoje as prefeituras teimam em utilizar cores fortes nas novas casas de conglomerados e favelas reurbanizados. A inspiração pode ser esta, mas (total e completamente) fora de contexto tudo perde o sentido, que é cuturalmente belíssimo! Lindas fotos. E o blog ta show, Zé! Parabéns!
ResponderExcluirCom o perdão do "cuturalmente", né...
ResponderExcluirÉ muito lindo e um prazer pra olhar ver essa fotos, simples e tão românticas. É o amor pela terra que vivemos!
ResponderExcluirÉ muito lindo e um prazer olhar essas fotos lindas e românticas. É uma declaração de amor a terra que vivemos!
ResponderExcluirTrabalho de dois olhares fantásticos: o da fotógrafa e o do autor do blog. Em minha primeira visita, já fui recebida com o prato que mais me abre o apetite: fotografia. Com licença, vou passear por aqui - se o dono da casa não se importa. Afinal, deixou as portas abertas... Parabéns!
ResponderExcluirMaravilha! delicadeza!
ResponderExcluirOla Zé Orlando.
ResponderExcluirAdorei o blog, adorei os posts, e me encantei com este daqui. Fotos de paisagens e objetos são as minhas preferidas. Gostei como a fotógrafa retrata essas casinhas, tão presentes na nossa cultura (no nordeste e nos interiores), e principalmente, como elas atraem nosso olhar e nossa imaginação.
Estou apaixonada por essas casinhas!! Bate aquela vontade de sentar na porta e assistir o dia passar.
ResponderExcluirFiquei tão emocionada quando vi estas imagens pela primeira vez que tive a nítida sensação de já ter estado aí, em cada uma destas casinhas. Como é possível?
ResponderExcluirAh, José. Seu blog é uma delícia, nem sei qual das páginas elogiar primeiro porque todas são lindas e seus textos são um encantos, todos, todos. Parabéns e vida longa e prosperidade, a você e a esta maravilha que você batizou de Semióticas...
Anna Clara Moraes Sarmento
muito lindo!!! Sensacional!.. Apaixonante e totalmente nostálgico, pelo menos pra mim, que passe a infância no interior de minas onde muitas casas antigas tinha construções como essas...(e ainda tem)... lindo e inspirador! Estou até animando a fazer umas imagens na minha cidade inspiradas nessas da Anna Mariani. Bjos
ResponderExcluirTudo muito lindo !!! vou postar para minha filha, acredito que ela vai amar também. Conheço algumas cidades dessas aqui em Pernambuco, quero revisitá-las, tudo muito simples e belo.
ResponderExcluirAbraços
Lindas imagens, pura poesia da nossa terra, escrita pelo povo e interpretada por Anna Mariani...
ResponderExcluirImagina o que significa, para esta sertaneja desterrada, se deparar com tamanha belezura que retrata tão fiel e poeticamente seu lugar primeiro...
ResponderExcluirLevei um susto e depois fiquei encantada. Esta página é poesia pura, mas também é jornalismo, da melhor qualidade. E não é só esta página: todas do seu blog são maravilhosas. Este Semióticas, falando sério, é a coisa mais linda que já encontrei na internet, José. Mil beijos!
ResponderExcluirQuanto mais lia mais via e mais cheiro de barro molhado sentia. Este cheiro que gruda, que fica marcado na gente e que tem sabor de infância com pés descalços, numa liberdade sem fim!!
ResponderExcluirÉ... Caetano tem razão, pra quem viveu lá nos interiores desses tantos brasis, tudo isso é muito íntimo, tudo isso é vida em barro batido.
Zé, tu plantas poesia!!!!
Abraço grande e obrigada por este lindo e poético ensaio.
Benilde
Não dizem que a beleza mais verdadeira mora na simplicidade? Tudo aqui neste site Semióticas é assim. Lindo, simples, descomplicado, verdadeiro. Só posso agradecer.
ResponderExcluirAdorei as casinhas!!!
ResponderExcluirQue beleza, quanta poesia neste meu Brasil. Agradeço muito pelos altos toques, meu querido autor do blog Semióticas. Seu trabalho é de uma nobreza sem comparação. Sou fã.
ResponderExcluirMagnífico trabalho, José Antônio. Resgata de forma comovente esse imaginário popular de poesia e brasilidade que inspirou tantos anjos cancioneiros e cordelistas.
ResponderExcluirMuito lindo!
Claudio Bastos.
Havia pensando algo relacionado uma vez, mas com o registro fotográfico de pequenas igrejas que exitem nos inteiores de Minas...Sensacional do trabalho da Anna Mariani.
ResponderExcluirUma linha bem gráfica!
Sobre Baudrillard, pretendo conhecer melhor as obras dele!
Mais uma vez parabens Zé!
Muito bom o trabalho, Zé! Tinha ouvido sobre ele no festival de fotografia de Paraty e ver esse punhado de imagens aqui foi ótimo.
ResponderExcluirA esfera de minha família materna é cearense e, como nos ditos de Caetano, já passei alguns bons momentos endomingados nesse tipo de casinha na minha infância. Eram momentos de prosa e café em cadeiras de vime e nylon à frente dessas fachadas tão simples e ímpares que marcam as casas das famílias nordestinas. Revisitei minhas memórias! Linda poética.
Valeu, professor!
Valeu, meu querido professor! Também recordei com alegria os tempos em que eu ia com toda a família passar o final de ano em casa de minha avozinha no interior da Bahia. Amo este seu blog. Tudo aqui é lindo e emocionante. Agradeço sempre a cada visita que faço a este maravilhoso Semióticas.
ResponderExcluirSônia Terra
Parabéns por esta matéria linda e pelo blog Semióticas todo que é excelente. Agradeço por você compartilhar beleza e sabedoria.
ResponderExcluirTão lindas quanto "casa de vó"! É a esse tempo que as fotografias de Anna Mariani me levam... minha infância na casa da minha avó! Obrigada por trazer isso de volta em mim...
ResponderExcluirExcelente! Uma contribuição -- a nível de fotografia -- quase Volpiniana!...
ResponderExcluirAriel Paulo Marques
Parabéns de novo por mais este artigo sensacional. Desculpe se estou sendo repetitiva por só postar elogios aqui, mas tudo o que encontro neste blog Semióticas só merece elogios mesmo. Texto perfeito, imagens maravilhosas.
ResponderExcluirMarcela Elena Nunes
Vi essas fotografias de Anna Mariani na 19ª Bienal de SP, era uma sala relativamente pequena e toda escura que contrastava com as casinhas coloridas das fotos. Não sabia que o IMS havia publicado um livro com essa série fotográfica. Obrigada!
ResponderExcluirTania.
Parabéns pelo excelente trabalho, meu Nobre Xará!
ResponderExcluirEspetacular esta coleção de fotografias da Anna Mariani e este seu texto impecável na postagem. Edição perfeita.
ResponderExcluirParabéns pelo alto nível.
Emerson Terra
José ( anos te seguindo e esqueci seu nome) que coisa mais delicada. Delicioso ter visto esse seu blog
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