Arquitetura é, sempre, a vontade de uma época traduzida em espaço.
Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969). |
Italiana de nascimento e brasileira por escolha a partir de 1946, Achillina Bo, mais conhecida como Lina Bo Bardi (Roma, 1914 – São Paulo, 1992), que exatamente hoje completaria 100 anos, recebeu recentemente uma homenagem de peso na mídia internacional especializada nos circuitos de arte e arquitetura: o suíço Hans Ulrich Obrist surpreendeu a todos quando, em entrevista
à revista britânica “Art Review”, destacou a importância e a
superioridade da arquitetura do Brasil no cenário internacional.
Como se não bastasse, Obrist deixou de lado a obra monumental de
Oscar Niemeyer e elegeu a Casa de Vidro de Lina
Bo Bardi
– onde a arquiteta viveu como o marido, Pietro Maria Bardi, por
mais de 40 anos, em São Paulo – como seu projeto preferido da
arquitetura brasileira.
A
surpresa com a avaliação do especialista suíço sobre Lina Bo
Bardi e sobre a arquitetura do Brasil ganhou maiores proporções
porque Obrist é o que se pode chamar de autoridade: diretor de
projetos internacionais da cultuada galeria Serpentine, em Londres,
ele foi apontado, em pesquisa feita com dezenas de especialistas pela
mesma revista "Art
Review", a
mais conceituada “bíblia” da arte e da arquitetura
contemporâneas, como
a personalidade mais influente das artes plásticas em nossa época.
Obrist também ostenta um currículo invejável, com nada menos que
200 exposições realizadas, além de 30 livros publicados, entre
eles "Uma breve história da curadoria" (lançamento no Brasil pela Editora BEI Comunicação, 2010), e “Entrevistas Brasileiras”, uma série de livros em cinco volumes, com expoentes da arte brasileira, lançada em 2009 pela Editora
Cobogó.
O
casal Lina
Bo Bardi e Pietro Maria
Bardi
na Casa de Vidro, marco da
arquitetura
brasileira, criação de Lina Bo
Bardi e residência do casal durante mais
de 40 anos. Abaixo, o casal Pietro e Lina em 1950;
Lina
fotografada em São Paulo, no mesmo
ano; Lina
em 1960, em Salvador, com o pintor
cearense Antônio Bandeira,
convidado
por ela para expor na
inauguração
do Museu de Arte
Moderna
da Bahia; e com Glauber
Rocha (abaixado)
e equipe técnica de
Deus
e o Diabo na Terra do Sol,
durante
as filmagens em Canudos, no
sertão
da Bahia, fotografados em 1963
|
Se
Oscar Niemeyer costuma monopolizar as atenções quando se fala de
arquitetura brasileira, por que um especialista como Obrist escolheu
Lina Bo Bardi? "Converso com artistas de vários países todos
os dias e muitos me falam de Lina. Existe uma real obsessão em torno
dela, o que não é nada surpreendente. Ela tem tudo a ver com o que há de mais
interessante na cultura brasileira da segunda metade do século 20 e também com a maior parte dos projetos que venho
desenvolvendo", explicou Obrist, na entrevista polêmica
concedida à “Art
Review” (para acessar a entrevista, clique aqui).
Achillina Bo
Lina Bo Bardi tornou-se uma presença incontornável da arte e da arquitetura do Brasil na segunda metade do século 20. Foi
uma liderança capital nos rumos isolados e coletivos de diversos segmentos da cultura brasileira, a partir da
década de 1950, exercendo influência central na segunda geração
do Modernismo no Brasil e em artistas fundamentais de várias áreas, muito além da arquitetura e do design,
como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Zé Celso Martinez Corrêa e Hélio Oiticica, entre muitos
outros nomes de referência do Concretismo, do teatro, do Cinema Novo e do Tropicalismo – apesar
de, para a maioria dos leigos, sempre ter sido ofuscada pelo trabalho
e pela presença de Niemeyer, outro gigante incontestável da
arquitetura.
Depois
de deixar para trás a Itália arrasada pela Segunda Guerra, Lina
passou a construir sua bagagem de referência sobre um entendimento
muito particular do Brasil e da cultura brasileira em geral, a partir
da arquitetura, entre interfaces do erudito e o popular – em
estruturas planejadas sobre figuras geométricas básicas (como
quadrados e triângulos), em lajes planas e em materiais de
simplicidade rústica para complementos e revestimentos, tais como
madeira, cerâmica, sapé.
O destaque de Obrist e outros
especialistas, do Brasil e do cenário internacional, sobre o papel
capital de Lina Bo Bardi, na verdade não surpreende, porque vem da
importância incomparável das obras que ela produziu não só na
arquitetura, mas também em atividades múltiplas. Além
de profissional da arquitetura, Lina assumiu um papel de destaque na política e na cultura brasileira desde que aqui chegou com o marido, em 1946, e teve presença marcante como
professora, como museóloga, como pesquisadora da cultura popular, como artista plástica e em criações e
parcerias para o teatro, o cinema, as artes gráficas e o design,
especialmente nos projetos para mobiliário.
Também merece destaque, na trajetória ímpar de Lina Bo Bardi, sua atuação como mentora de projetos
culturais, sua dedicação à orientação de trabalhos e à
curadoria de diversas exposições. Não menos importante foi sua
contribuição como editora de “Habitat”, uma revista que
circulou durante uma década, a partir de 1950, abordando desde as
artes populares até a arquitetura, com ênfase em questões de
inovação no ambiente sociocultural brasileiro.
Criações, intervenções,
restaurações
Na arquitetura, Lina Bo Bardi é sempre lembrada pela
criação do Museu de Arte de São Paulo, em 1958, considerada por
muitos sua obra-prima. Mas não só: no acervo das obras da arquiteta
também se destacam mais de 20 projetos grandiosos e visionários de
criação ou intervenção em edificações como a Casa de Cultura de
Pernambuco (1963), em Recife; a Igreja do Espírito Santo do Cerrado
(1976), em Uberlândia, Minas Gerais; o Solar do Unhão, transformado
por ela no começo da década de 1960 em Museu de Arte Moderna da
Bahia, em Salvador; o Teatro Oficina e o SESC Pompeia, ambos em São
Paulo, em 1990, além de outros projetos inconclusos, entre eles o
Palácio das Indústrias de São Paulo e o Teatro Politeama, em
Jundiaí (SP).
Além
da obra-prima consolidada na criação do MASP, um dos projetos
centrais na trajetória de Lina Bo Bardi é o Instituto Pietro Maria
Bardi, também conhecido como Casa de Vidro – um conjunto com uma
base horizontal de concreto suspensa por tubos e revestido de vidro.
Projetada em 1950 por Lina para ser a residência do casal, a Casa de
Vidro abriga hoje parte da coleção de arte particular adquirida ao
longo dos anos por Lina Bo e o marido, Pietro
Maria Bardi
(1900-1999). Lina e Pietro casaram-se em 1946 e, em seguida, trocaram
a Itália pelo Brasil. Em 1951, adotaram a nacionalidade brasileira.
Logo
que chegaram ao Brasil, em recepções, no Rio de Janeiro, Lina e
Pietro conheceram personalidades como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer,
Burle Marx e Assis Chateaubriand, de quem Pietro receberia o convite
para fundar e dirigir um museu de arte. Do convite surgiu o projeto
arquitetônico de Lina que abrigaria o MASP,
o museu mais importante da América Latina. A primeira sede foi
instalada em 1947, na rua Sete de Abril. Uma nova edificação
começou a ser planejada por Lina em 1958 – mas a construção
demoraria 10 anos para ser concluída e foi inaugurada oficialmente
pela Rainha da Inglaterra, Elizabeth 2ª, em 1968.
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Entre
tantos projetos e áreas de atuação, Lina Bo Bardi também sonhava em
desenhar casas populares – mas os planos foram definitivamente adiados por questões
de conjuntura política, para além da vontade da arquiteta. Entre outros projetos e utopias que nunca saíram do papel também estão a sede para um
museu do Instituto Butantan e uma “floresta tropical” que seria criada sob os
viadutos no Vale do Anhangabaú, no Centro de São Paulo.
"Eu
tenho projetado algumas casas, mas só para pessoas que eu conheço.
Tenho horror em projetar casas para madames”, ela confessa, em um
dos textos reunidos em “Lina por escrito”,
livro organizado por Silvana Rubino e Marina Grinover e publicado pela editora Cosac Naigy em 2008. "Entre madames, sempre entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vão ser as cortinas...", confidenciava, entre a ironia e as lembranças autobiográficas mais realistas. O mundo sonhado e construído por Lina Bo Bardi tinha outra dimensão e outras prioridades para uma realidade concreta.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Lina
da Casa de Vidro.
In: Blog
Semióticas,
5 de dezembro
de
2014.
Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2014/12/lina-da-casa-de-vidro.html
(acessado em .../.../...).
Registro meus parabéns por seu ensaio brilhante sobre o papel de Lina Bo Bardi, mas não posso concordar totalmente com o juízo de valor de Hans Obrist sobre o papel de Niemeyer, que é inquestionável, comparável a Corbusier e outros gigantes. Somos obrigados a ser locais e universais, e isso Niemeyer fez, brilhantemente. Mas concordaria com Obrist se ele tivesse argumentado que Niemeyer foi vítima da própria fama e que passou a copiar a si mesmo. Quanto ao valor de Lina Bo Bardi, concordo plenamente. Ela é simplesmente genial e insubstituível, com valor para a cultura brasileira que vai muito além da Arquitetura. De novo, parabéns. Este seu site Semióticas é, de longe, o melhor que já visitei.
ResponderExcluirMarcos Quintana
Acho que a obra de Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Paulo Mendes da Rocha e alguns outros (poucos) mestres da nossa arquitetura, apesar de "internacional", tem uma forte carga de brasilidade. Já a arquitetura brasileira da Lina é enriquecida, e não poderia ser de outra forma, pela sua alma italiana, européia.É uma grande mestra! Muito bom que você - brilhantemente, como sempre - a tenha trazido aqui para nós!...
ResponderExcluirDe novo, parabéns pelo belo trabalho, José. Seu blog é minha visita mais nobre, sempre, nas viagens pela Web. Aqui eu fiquei feliz e impressionada com seu ensaio sobre a grande Lina Bo Bardi que parece até uma pequena e sofisticada sinfonia em três movimentos. No primeiro, você faz uma apresentação através dos elogios de Obrist. No segundo, uma apresentação biográfica. No terceiro, uma síntese histórica da arquitetura brasileira nas palavras e atuações de Lina. Senti falta apenas de menções às parcerias sensacionais que ela teve com outros grandes da arquitetura, como Burle Marx, Grigori Warchavchik, Joaquim Cardoso, Affonso Reidy e outros, mas entendi que estão citados, indiretamente. Você tem uma habilidade que consegue aliar um texto sedutor e culto, mas traduzido para todos os públicos, com o diálogo de imagens lindas e que, só por elas, já contariam umas histórias sensacionais. Parece cinema.
ResponderExcluirEste talento é raro.
Parabéns pelo alto nível.
Sou muito fã de Lina e, desde a primeira visita, também de você e deste blog de maravilhas.
Ana Paula Ribeiro
Excelente ensaio. Uma aula completa. A importância de Lina Bo Bardi para a cultura brasileira vai muito além da arquitetura e você destacou muito bem. Seu blog é um show.
ResponderExcluirAmo profundamente a Casa de Vidro e a arquitetura de Lina Bo Bardi. Aqui encontrei uma homenagem à altura da importância dela. Virei fã deste blog sensacional. Parabéns. Elenice Correia
ResponderExcluirA foto em que a coluna diz que é Lina em Salvador (acima da foto com o Glauber) possivelmente é em Paris, uma vez que ela está ao lado do pintor cearense Antonio Bandeira, que era radicado na capital francesa.
ResponderExcluirMeu caro professor Tarso Freire,
ExcluirGrande honra contar com sua presença entre os leitores destes ensaios de Semióticas. Seja sempre muito bem-vindo. Sobre a foto em questão, ela foi feita por um fotógrafo anônimo em 1960, em Salvador, na inauguração do Museu de Arte Moderna da Bahia. O pintor Antônio Bandeira foi o convidado de honra de dona Lina Bo Bardi para a inauguração e para a primeira exposição, com 31 de seus trabalhos em Arte Abstrata. Bandeira havia retornado ao Brasil em 1959, depois de uma longa temporada na Europa. Com o golpe militar de 1964, o pintor voltou para Paris, onde morreu em 1967.
Caro Prof. José Orlando, obrigado pela informação à respeito da foto e do contexto no qual ela foi tirada. E parabéns pelos seus ensaios de Seminóticas; acompanho com prazer e leio sempre as postagens. Aproveito para desejar a você e a seus leitores um Feliz Natal.
ResponderExcluirSensacional este blog Semióticas em todas as matérias que encontrei aqui. E este artigo sobre dona Lina Bo Bardi está antológico, meu querido José Antônio Orlando. Parabéns pelo alto nível.
ResponderExcluirLígia Maria Gomides
Parabéns pelo alto nível. Texto maravilhoso e imagens muito lindas. Aprendi muito sobre a arte de dona Lina. Amei tudo neste artigo e no blog todo. Amei.
ResponderExcluirÓtima postagem, texto e imagens impecáveis.
ResponderExcluirMuito obrigada por compartilha esta e outras pérolas.
Este blog Semióticas é show em tudo. Parabéns demais!
Marcia Pedrosa