É
o encontro de dois autênticos reis de estilos que têm mais
semelhanças do que diferenças. O som inusitado que “Waldick
Soriano interpreta Roberto Carlos” registra, autorizado pelo rei
Roberto em pessoa, esgotou assim que chegou às lojas no formato LP,
há quase 30 anos, em 1984. Primeiro lançamento do breve período de
existência da gravadora Arca, inaugurada por Ary Carvalho, e desde
então fora de catálogo, o LP ganhou recentemente uma primeira
versão no formato CD.
Lançado
pelo selo Discobertas, é um daqueles casos que cumpre o que promete.
Com suas canções dor-de-cotovelo entoadas em voz grave e seu visual
revolucionário quando surgiu, há mais de 50 anos, sempre de preto,
com chapéu e óculos escuros, o cantor de sucessos como “A Carta”
e “Eu não sou cachorro não” encontra, nas canções românticas
de Roberto e Erasmo, uma extensão vigorosa de seu repertório de
tantas paixões derramadas de final infeliz.
Com
o LP original de 1984, Waldick passaria a integrar o grupo seleto dos
poucos intérpretes brasileiros que até hoje tiveram autorização
de Roberto Carlos para gravar discos que tenham somente canções do
seu repertório. Waldick foi o primeiro nome masculino a merecer tal
privilégio, integrando um time que tem também as divas Nara Leão
(1942-1989) e Maria Bethânia. As duas lançaram releituras das
canções de Roberto, em 1978 e 1992, respectivamente, com versões
tão personalíssimas quanto as de Waldick, cada uma a seu estilo –
contida e minimalista, quase sussurrando e aproximando as canções
do rei ao “estilo bossa nova”, no caso de Nara, e dramática,
apaixonada, teatral e também surpreendentemente contida, no caso de
Bethânia.
Morto
em decorrência de câncer, em 2008, aos 75 anos, o baiano de Caetité
amargou já na infância a perda da mãe – que sem avisar abandonou
o filho e o marido e sumiu no mundo. Com fama de namorador e boêmio
desde muito jovem, Eurípedes Waldick Soriano, como estava registrado na certidão de nascimento, sobreviveu como lavrador, engraxate, peão de fazenda e garimpeiro, até enriquecer com o comércio de ametistas e embarcar
para São Paulo, onde faria fama e fortuna como ator de cinema,
compositor e cantor, na trilha do estilo que teve os vozeirões de
Vicente Celestino e Nélson Gonçalves entre seus precursores.
Chapéu preto e óculos escuros
Assim
como Waldick Soriano retomou e atualizou, no final dos anos 1950, o estilo
consagrado por Vicente Celestino e Nélson Gonçalves desde a década
de 1930, a partir de 1960 ele teria uma lista de seguidores que não
repetiriam seu personagem folclórico – o machão de chapéu preto
e óculos escuros – mas seguiriam na trilha do amor sofredor de
final infeliz, incluindo alguns dos primeiros astros da Jovem Guarda
(Wanderley Cardoso, Antônio Marcos, Paulo Sérgio, Márcio
Greyck...) e os nomes que surgiriam a partir da década de 1970,
entre eles Lindomar Castilho, Evaldo Braga, Odair José, Nelson Ned,
Agnaldo Timóteo, José Augusto, Fernando Mendes, Reginaldo Rossi,
Amado Batista, Wando...
Waldick Soriano,
seu estilo e seus seguidores ganhariam um bela homenagem em 2011, com
o documentário “Vou Rifar Meu Coração”, de Ana Rieper. Antes,
em 2007, a atriz Patrícia Pillar (foto abaixo) estreou e surpreendeu
como diretora em dois projetos sobre Waldick: a edição em DVD de um
show ao vivo do cantor e compositor e de um documentário premiado, exibido nos cinemas, que
retrata a personalíssima trajetória do artista – “Waldick,
Sempre no Meu Coração”.
A
posição marginal que o estilo “brega” e "cafona" de
Waldick ocupa há décadas no imaginário popular também mereceu uma
análise minuciosa pelo historiador e jornalista Paulo César de
Araújo no livro “Eu não sou cachorro, não – Música popular
cafona e ditadura militar" (Editora Record, 2005), que contesta,
de forma veemente, o papel de adesista ao regime militar que por
algum tempo pairou sobre Waldick. Segundo o autor, um dos exemplos
que contradizem o boato infame é que a música de Waldick "Tortura
de Amor" foi censurada em 1974, apesar de ser uma composição
de 1962. Curiosamente, Paulo César ganharia destaque recente na
mídia por conta de outro livro, “Roberto Carlos em Detalhes”, uma
extensa e polêmica biografia não-autorizada.
Lançada
em dezembro de 2006 pela Editora Planeta, a biografia escrita por
Paulo César causou a irritação do rei Roberto. Com depoimentos de
mais de 200 pessoas que participaram da trajetória do rei e
resultado de uma pesquisa feita ao longo de 16 anos, o livro chegou a
vender mais de 22 mil exemplares em poucas semanas, até ser
recolhidas nas livrarias e sua venda ser proibida terminantemente por
um
dos desmandos recorrentes do Judiciário, por determinação
sem
fundamento constitucional de um juiz da
20ª Vara Criminal da Barra Funda, na cidade de São Paulo.
Eu não sou cachorro não
Desde
o primeiro sucesso em disco, “Quem és tu?”, no final dos anos
1950, Waldick Soriano ficaria marcado no rádio, nos mais de 30 LPs que gravou, nos filmes que fez e
na presença constante nos anos 1960 e 1970, nos programas de auditório de Chacrinha, Hebe Camargo, Sílvio Santos e outros campeões de audiência na TV, como símbolo que identifica um estilo e uma classe social – batizados
como “brega” ou “cafona”. Há quem questione os rótulos,
apontando que a classificação seria elitista e por certo se deveria
muito menos a razões estéticas que a preconceitos de origem social,
nível de instrução escolar, etnia, sexo e sexualidade. Apesar dos
preconceitos, ainda hoje as canções de Waldick e seus seguidores
gozam de muita popularidade e são sempre lembradas como clássicos
da boemia e dos bordéis.
O
estilo e as provocações de Waldick – para além do sucesso
emplacado nos cabarés do Brasil inteiro – transformam ao extremo o
tom de romantismo do repertório que inclui “Proposta”,
“Desabafo”, “Amada Amante” e “Cavalgada”, somando 16
versões personalíssimas de clássicos de Roberto & Erasmo e de
Carlos Colla (“Falando Sério”), Isolda (“Outra Vez”),
Antônio Marcos (“Como Vai Você”), Pilombeta & Tito Silva
(“Escreva uma carta, meu amor”), além da versão de 1966 de
Roberto Corte Real para “Esqueça” (“Forget him”).
Em
“Waldick Soriano interpreta Roberto Carlos”, as versões do “rei
do brega” fazem do romantismo discreto das canções de Roberto uma
coletânea de cantadas arrebatadas em convites para dançar abraçado
e de rosto colado. Cada canção adquire o estilo de Waldick,
transformadas em sambas aboleirados de gafieira, com maracas e
repiques de bateria por conta de Wilson das Neves, arranjos, regência
e teclados do maestro Eduardo Lages (que trabalha com o rei Roberto
desde 1977), sax-alto e flautas de Mauro Senise e arranjos de corda e
órgão de Ugo Marotta.
Na
entrevista que fiz com ele por telefone, para o jornal "Hoje em Dia", de Belo Horizonte, o pesquisador e produtor executivo do selo
Discobertas, Marcelo Fróes, fala sobre as negociações dos direitos
autorais para o lançamento do CD e do lugar que o artista Waldick
Soriano ocupa no imaginário nacional. Confira alguns trechos da entrevista:
Como
foi o processo de negociação dos direitos autorais sobre a obra de
Waldick?
Marcelo
Fróes – Fechamos parcerias com alguns selos fora de
atividade, para resgatar material raro para fãs, colecionadores e
historiadores. Conversamos com os herdeiros da Arca Som e o disco do
Waldick era uma das pérolas que produziram durante a breve duração
do selo. Procurei Roberto Carlos para saber se ele autorizaria
editorialmente, já que sempre que um disco é reeditado, as
autorizações dos compositores têm que ser requeridas e é um
momento delicado.
E
Roberto Carlos aprovou o relançamento em CD, sem objeções?
Aprovou
sem objeções, então pudemos fazer. Tudo fiel ao original, em
respeito ao artista Waldick Soriano e à produção original do
disco. Também cheguei a conversar com a viúva de Waldick,
encaminhado por Patrícia Pillar, que fez um filme sobre ele em 2007.
Fotos,
arte e encarte seguem os originais do disco no formato vinil ou foram
refeitos?
No
CD está tudo fiel ao original. Capa, contracapa e até os rótulos
do LP original foram reproduzidos no encarte a título de
documentação.
Você considera que este disco com as canções do Roberto é uma das obras-primas que o Waldick deixa para a posteridade?
É
um disco especial e muito raro também, pois embora tenha repercutido
muito 25 anos atrás, ainda não havia sido reeditado em CD. Lembro
que “Cavalgada” tocava muito no rádio.
Qual o lugar de Waldick Soriano no imaginário do público brasileiro?
Sem
dúvida o Waldick se tornou uma lenda, e isso envolve não só a sua
voz marcante, única, e as canções que foram sucesso no repertório que ele interpretou e gravou, mas também sua imagem. É impossível imaginá-lo
sem chapéu e óculos escuros.
por
José Antônio Orlando.
Como
citar:
ORLANDO,
José Antônio. Dois reis. In: ______. Blog
Semióticas,
16 de fevereiro de 2012. Disponível no link
http://semioticas1.blogspot.com/2012/02/dois-reis.html
(acessado em .../.../…).
Estranhei o tema, mas quando li o seu texto, como sempre inteligente e imprevisível, entendi o recado. E fiquei pensando: será por que motivo estes personagens mais autênticos da cultura brasileira mais profunda, mais original, são lançados na lata de lixo? Será só preconceito? Será de caso pensado? Sua abordagem brilhante e seu blog dos melhores fazem a gente pensar... O que é um mérito sem tamanho nestes tempos tão previsíveis e de ídolos tão descartáveis. Parabéns, José! Este Semióticas é um luxo!
ResponderExcluir- Há quem questione os rótulos, apontando que a classificação de brega e cafona seria elitista e por certo se deveria muito menos a razões estéticas que a preconceitos de origem social, nível de instrução formal, etnia, sexo e sexualidade. Apesar dos preconceitos, ainda hoje as canções de Waldick e seus seguidores gozam de muita popularidade e são sempre lembradas como clássicos da boemia e dos bordéis -
ResponderExcluirParabéns de novo, José Antônio Orlando. Destaquei o trecho que merece aplausos por é uma bela análise e belo questionamento sobre o preconceito da elite brasileira a tudo o que autêntico e popular na nossa cultura. Seu blog é um show!
Vanessa Freitas
Este Semióticas sempre surpreende, José Antonio Orlando. Parabéns e vá em frente que tudo por aqui é uma beleza...
ResponderExcluirBelo texto e um tapa de luvas no preconceito, José Orlando. Seu blog é sempre um show e sempre imprevisível. Interessante como poucas esta sua abordagem respeitosa sobre o brega e sua herança, sempre jogados na lata de lixo pela elite que prefere os "biscoitos finos importados" a qualquer coisa que seja autêntica na cultura nacional. Os maiores nomes das artes brasileiras que fizeram sucesso no exterior, de Carmen Miranda a Tarsila do Amaral, também sofreram em sua época rejeição por parte dos "críticos" a serviço das elites... Parabéns de novo. Virei sua fã incondicional!
ResponderExcluirLígea Santanna
Encontrei muitos elogios ao seu blog, mas vou registrar mais um: parabéns pelo excelente trabalho. Semióticas é o melhor de todos os que já visitei - vence qualquer comparação. Também virei fã incondicional. Parabéns de novo!
ResponderExcluirAndré Luís de Alencar
Mais uma linda matéria, professor. Saiba que gosto muito de gente como você, que respeita todos os aspectos da cultura brasileira (e não só brasileira). Parabéns de novo por este espetáculo de blog. Marcela Saraiva
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