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27 de março de 2012

Resumo da Ópera







A admiração começa onde acaba a compreensão.

–– Charles Baudelaire (1821-1867).  





Uma definição célebre de Jean de La Bruyère sobre o espetáculo da ópera, datada de 1691, também poderia servir como uma luva para explicar a magia do cinema, que ainda iria demorar três séculos para chegar às plateias. Segundo La Bruyère, "o que caracteriza esse espetáculo (a ópera) é que ele mantém o espírito, os olhos e os ouvidos em igual encantamento". Foi assim desde as origens: nas encenações dos gregos e outros povos na Antiguidade Clássica, séculos antes de Cristo, passando pela retomada e aperfeiçoamento do gênero na Europa da Renascença, as grandes montagens de ópera perseguem a ambição de renovar a ancestral aliança entre as artes visuais, a palavra e a música.

A definição sucinta e perspicaz do francês La Bruyère (1645-1696) – famoso por uma única obra, “Dos Personagens ou Costumes do Século” (1688) – indica que há séculos as engrenagens e estratégias adotadas em cena aumentam e embelezam a ficção, mantendo o espectador na doce ilusão que é todo o prazer do teatro e da arte, em última instância. As ideias de La Bruyère sobre o que em sua época era um novo gênero são citadas como ponto de partida pelo sábio Jean Starobinski em um livro essencial para quem se interessa pela complexidade da ópera: "As Encantatrizes", editado no Brasil pela Civilização Brasileira.







Resumo da ópera: acima, afrescos e
pinturas no teto do foyer da Ópera
de Paris, França. No alto, detalhe de
aquarela de Erich Lessing reproduzida
como ilustração na capa do livro
As Encantatrizes. Abaixo, uma imagem
da ópera nos trópicos: Teatro Amazonas,
em Manaus, inaugurado em 1896 









Embelezado pelas ilustrações de Karl-Ernst Herrmann e Erich Lessing, a edição em português do estudo do veterano pensador da Universidade de Genebra, Suíça, faz um passeio pelos grandes momentos da história do gênero operístico. O traço analítico de Starobinski encontra as origens do espetáculo e traça o “resumo da ópera”: seus grandes autores e compositores, os libretos que marcaram época e fizeram a glória de maestros, sopranos, tenores e barítonos. 

 

Da tradição às novas linguagens



Rivalizando com o teatro, com o cinema e os espetáculos populares, a ópera, lembra Starobinski, já foi sentenciada como morta e acabada mais de uma vez, no passado recente. Mas sempre retorna, revigorada e surpreendendo plateias, seja em montagens tradicionais, seja na experimentação radical ou no investimento em novas linguagens e artifícios tecnológicos.

Linguista, filósofo, especialista em análises dos clássicos de Montaigne, Diderot e Rousseau, professor de literatura, de semiótica e de história da medicina, crítico literário e de artes plásticas, Starobinski, que nasceu em 1920, é celebrado nos meios acadêmicos como um dos principais pensadores vivos. No novo livro, persegue respostas para o "encantamento" que a ópera vem perpetuando através dos séculos e empreende um vigoroso diálogo com pensadores de diversas épocas.










Resumo da ópera: o lendário tenor
italiano Enrico Caruso (1873-1921),
fotografado como protagonista de
Rigoletto, de Giuseppe Verdi, na
montagem de 1904 do
Metropolitan Opera House de
Nova York. Caruso é apontado por
unanimidade como o maior nome
da ópera em todos os tempos.
Também acima, o célebre maestro
Arturo Toscanini com Caruso,
fotografados em Roma em 1915.

Abaixo, o cartaz original da estreia
em 1854 da ópera Rigoletto e uma
pintura em óleo sobre tela também de
1854 que retrata uma vista panorâmica do
Gran Teatro La Fenice (em português,
"a fênix"), teatro tradicional de Veneza


















Sob o crivo intelectual de Starobinski, teatro, poesia, pintura, escultura, dança, música e todas as diversas manifestações híbridas da arte que convergem ao vivo para a realização da montagem operística são reveladas através da estrutura do conto de fadas. O “faz de conta”, ele alerta, é determinante para o encanto da montagem, que por sua vez influenciou outros gêneros através do tempo e está na origem do próprio espetáculo do cinema, com o qual a ópera rivalizou desde a primeira metade do século 20. 

Autor de “As Palavras sob as Palavras” (1971) e “A Invenção da Liberdade” (1964), entre outros estudos fundamentais lançados no Brasil, em “As Encantatrizes”, que foi publicado e premiado em seu país de origem em 2005, Starobinski abre a discussão sobre o gênero do espetáculo. Com instrumentos tomados de empréstimo dos estudos em história e filosofia, o autor busca o contexto e a estrutura intersemiótica das diversas encenações e retoma o surpreendente verbete "ópera" da primeira "Enciclopédia" organizada por Denis Diderot (1713-1784):










Resumo da ópera: no alto, capa do libreto
da ópera Carmen, de Bizet. Acima,
a diva Maria Callas (1923-1977).
Celebridade da ópera e contraponto
para Caruso, Callas é tida por unanimidade
como maior soprano de todos os tempos.

Na foto acima, Callas em 1953, no
papel-título de Tosca, de Puccini, na
montagem do La Scala de Milão, sob a
regência de Victor De Sabata, que teve
uma gravação de áudio considerada um
padrão internacional de excelência em
ópera. Abaixo, Callas em 1954 no
camarim do La Scala, onde estava em
cartaz com a ópera Norma, de Bellini

  







"É o divino da epopeia em espetáculo. Como os atores são deuses ou heróis semideuses, eles devem se anunciar aos mortais através de uma inflexão de vozes que ultrapasse as leis do verossímil habitual. Suas operações se assemelham a prodígios. É o céu que se abre, o caos, os elementos que se sucedem, uma nuvem luminosa que traz um ser celeste. É um palácio encantado que, ao menor sinal, desaparece e se transforma em deserto", aponta Diderot.



Uma certa sinestesia



Contra o esquematismo do enciclopedista, Starobinski argumenta que "uma ópera sem divindades nem feiticeiros, mas na qual as paixões são grandes e nobres, também pode responder à expectativa do encantamento". A investigação também recorre a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), para quem a ópera se esforça por reunir todos os charmes das belas-artes na ação apaixonada.

"As partes constitutivas da ópera são o poema, a música e a cenografia", determina Rousseau, citado por Starobinski. Nas análises empreendidas pelo sábio do século 18, o autor de “As Encantatrizes” percebe uma atenção ao espetáculo que antecipa uma certa sinestesia de apelo simultâneo aos sentidos: "Pela poesia se fala ao espírito; pela música, ao ouvido; pela pintura, aos olhos, e o todo deve somar-se para comover o coração e levar ao mesmo tempo, através de diversos órgãos, a mesma impressão até ele".








Resumo da ópera: no alto, Maria Callas 
no teatro La Scala de Milão, Itália, onde
interpretou em 1955 a cortesã Violeta na
mais célebre montagem de La Traviata, de
Verdi. Acima, a maior da intérpretes líricas
brasileiras, Bidu Sayão (1902-1999),
grande sucesso internacional das décadas
de 1920 a 1950. Na fotografia, Bidu Sayão
em 1940, na estreia de La Traviata no
Metropolitan Opera House de Nova York.

Abaixo, reprodução da capa do
libreto original da estreia em 1870 de
O Guarani, ópera de Carlos Gomes
baseada no romance homônimo de
José de Alencar. "O Guarani" foi o primeiro
e ainda hoje o maior sucesso internacional
de uma ópera de compositor brasileiro









A partir do século 19, destaca o autor de “As Encantatrizes”, a ópera escolherá seus personagens não somente no repertório da mitologia clássica, mas também na crônica social e mundana – em exemplos patentes como a cigana Carmen, que a partitura de Bizet adaptou da novela romântica de Prosper Merimée, ou a cortesã Violeta de "La Traviata", de Verdi, por sua vez baseada no romance "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho – personagens que também tiveram versões memoráveis no último século no cinema e nos palcos de teatro do mundo inteiro.

As Encantatrizes” de Starobinski convida o leitor a uma extensa e sofisticada viagem no tempo, em visita a alguns dos principais compositores, suas obras e, claro, as grandes atrizes/cantoras – objeto central do estudo apresentado. As cenas políticas, sociais e estéticas da Europa do século 18 e 19 são desvendadas sob a ótica da ópera enquanto gênero de espetáculo, muitas vezes considerada como a melhor tradução para o espírito da época.













Resumo da ópera: do canto lírico para a
mise-en-scène dos estúdios de Hollywood
e do cinema europeu,  a partir do alto,
Greta Garbo e Robert Taylor em cena de
"Camille" (1936), primeira versão do cinema
falado para o romance "A Dama das Camélias",
de Alexandre Dumas, também adaptado por
Verdi para La Traviata. Acima, duas versões
emblemáticas do cinema para a ópera
Carmen, de Bizet: Rita Hayworth em cena com
Glenn Ford no filme "Os Amores de Carmen",
dirigido em 1948 por Charles Vidor; e
Laura del Sol com Antonio Gades em
"Carmen", filme de 1983 de Carlos Saura. 

Abaixo, Vivien Leigh em
"Anna Karenina", filme de 1948, com direção
do francês Julien Duvivier, baseado no romance
do russo Liév Tólstoi que teve sua primeira
versão para ópera em 1904, pelo compositor
italiano Edoardo Granelli. Também abaixo, uma
diva do cinema italiano, Claudia Cardinale,  no
grandiloquente "O Leopardo", filme de 1963 de
Luchino Visconti, cineasta e também diretor de
suntuosos espetáculos de ópera e de teatro.
Em O Leopardo, baseado no romance de
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Cardinale
contracena com Alain Delon (foto do beijo),
além de Burt Lancaster e grande elenco














Didático, minucioso, poético, Starobinski revela os bastidores da apresentação de espetáculos memoráveis, como as primeiras adaptações musicais dos dramas, tragédias e comédias de William Shakespeare (1564-1616), assim como os sucessos instantâneos e duradouros de obras como “As Bodas de Fígaro” – imortalizada pela montagem em quatro atos, de Wolfgang Amadeus Mozart, que estreou em 1786, em Viena, com libreto em italiano.


Semiótica da recepção


Não por acaso citada por Starobinski entre as óperas mais populares de todos os tempos, “As Bodas de Fígaro” foi uma criação original do francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1700), também autor de “O Barbeiro de Sevilha”. Com seu estudo centrado na união das palavras “encantar” e “cantatriz”, em francês “enchanteresses”, como indica o título do livro, Starobinski percorre a trajetória dos grandes clássicos, mas justifica que escolheu retratar em destaque personagens sempre no feminino.

A figura feminina domina a cena e cada partitura que sobreviveu ao tempo, apesar de existirem protagonistas masculinos, também presentes na trajetória que o livro percorre, ainda que em segundo plano. Mais que um esforço de enumeração histórica, ao resgatar dos gêneros da narrativa e do espetáculo às questões de compasso musical e de perspectiva geométrica do campo de visão, “As Encantatrizes” vai muito além dos domínios restritos à ópera.









Contrastes da Ópera Contemporâneaacima,
Phillip Addis, Carla Huhtanen e Patrick Jang em
2010, na montagem de As Bodas de Fígaro,
de Mozartpatrocinada pela companhia
Elgin Theatre de Toronto, Canadá.

Abaixo, Parsifal, de Wagner, na montagem
experimental de 2005, realizada em Los Angeles,
sob o comando de Bob Wilson; e as experiências
em 3D de Pina, documentário de 2011 de
Wim Wenders que reúne dança com ópera
e novas tecnologias em homenagem a
Pina Bausch, coreógrafa, dançarina,
pedagoga da dança e diretora da
Tanztheater Wuppertal, companhia
de balé da Alemanha. Pina morreu em
2009, aos 68 anos, após o término
das filmagens com Wenders










Erudito ao extremo e narrador hábil, Starobinski alcança conceitos e teorias mais recentes sobre a Semiótica da Recepção, terreno que o italiano Umberto Eco e o francês Roland Barthes estenderam de forma pioneira às artes em geral e aos processos midiáticos e técnicos que proliferaram nas últimas décadas. Eco e Barthes também são lembrados e citados no mergulho em profundidade que Starobinski faz no mundo da ópera, assim como Erich Auerbach, René Wellek, George Steiner, Harold Bloom...

Na investigação esquadrinhada por Starobinski, poesia e teoria direcionam o entendimento acerca do fenômeno que o espetáculo há séculos perpetua: “Nas mais belas representações operísticas percebe-se a dupla energia de uma memória que persevera e de uma imaginação que inventa. No momento do espetáculo, e desde que a encenação não o prejudique, se produz o único encantamento no qual, nós, retardatários, somos admitidos”. 


 








Resumo da ópera: três nomes da ópera italiana
que marcaram o século 20 –– a partir do alto,
1) Renata Tebaldi (1922-1974), que rivalizou
com Maria Callas no posto de maior soprano,
paramentada como Tosca, na montagem de 1951 do
La Scala; 2) o tenor Luciano Pavarotti (1935-2007),
que popularizou a ópera e disputou recordes de
venda de CDs e DVDs com estrelas do rock
e da música pop; e 3) o mestre das montagens
líricas e também um grande nome do cinema,
Luchino Visconti (1906-1976), em 1963 (acima),
durante as filmagens de O Leopardo, e com
Maria Callas e Leonard Bernstein (abaixo),
em Milão, em 1955, nos bastidores da montagem
da ópera La Sonnambula, de Vicenzo Bellini.

Também abaixo, três fotografias de Cecil Beaton:
Maria Callas no célebre retrato de 1955 em estúdio,
nas versões em preto e branco e em cores; e uma cena
de flagrante dos bastidores do editorial fotografado
por Beaton em junho de 1948 para a revista "Vogue"



















Ao final do percurso investigativo e analítico que Starobinski empreende em "As Encantatrizes", como nas melhores montagens dos clássicos presenciados ao vivo pelas plateias, resta ao leitor um sentimento que para alguns talvez possa ser definido como fascinação. Para outros, uma impressão difusa pela recompensa de ter encontrado nas teses do pesquisador de Genebra algumas respostas sobre a complexidade do estranhamento que o espetáculo operístico proporciona. 

Na conclusão que o autor alcança, depois das teorias e muitas trajetórias alinhavadas em pouco mais de 300 páginas, a fascinação dos sentidos e o encanto declarado pela complexidade se equivalem. Não por acaso, encanto e fascinação são os mesmos sentimentos que fazem a ópera transcender o passado e ainda assombrar o presente.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. Resumo da ópera. In: Blog Semióticas, 27 de março de 2012. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2012/03/resumo-da-opera.html (acessado em .../.../...).



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Resumo da ópera: acima, dois momentos
distintos e históricos do canto lírico, com
a diva Maria Callas em “Habanera”, ária
da ópera Carmen, que a partitura do
francês Georges Bizet adaptou do
romance de Prosper Merimée; e
Luciano Pavarotti com Grace Jones
interpretando ao vivo, em 2002, em
Angola, África, uma ária da ópera
Werther, do francês Jules Massenet,
baseada no romance do alemão
Johann Wolfgang von Goethe










15 de outubro de 2011

Noite de Stanley Jordan






Música e natureza estão e sempre
estiveram intimamente ligadas desde
o mais antigo dos tempos da civilização

––   Stanley Jordan  
 

O concerto do improvisador Stanley Jordan voltou a provocar momentos contemplativos e comoveu o público durante mais de duas horas no Grande Teatro do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Muitos dos que presenciaram a performance surpreendente do guitarrista no mesmo palco – desde a primeira apresentação do guitarrista no mesmo Palácio das Artes, no final dos anos 1980, ou as recentes apresentações aclamadas em 2007 e 2006 – encontraram na metade do concerto o improvável: a maestria do músico norte-americano tocando e criando novas harmonias e acordes, simultaneamente, na guitarra e ao piano.

Um dos mais inventivos guitarristas em atividade, ele retornou a BH para uma única apresentação que trouxe canções do CD "State of Nature" e suas conhecidas e surpreendentes versões de clássicos do jazz, do rock e da Bossa Nova. No palco, demonstrou mais uma vez sua maestria peculiar na arte da guitarra, acompanhado por Ivan "Mamão" Conti, ex-integrante do grupo Azymuth, na bateria, e Dudu Lima, mineiro de Juiz de Fora, no baixo. Nascido em Chicago, em 1959, Stanley Jordan começou na música aos seis anos, estudando piano, aos 11 passou a dar aulas de guitarra e aos 16 ganhou um prêmio de revelação no Festival de Jazz em Nevada. A partir daí, percorre o mundo com sua personalíssima "touch technique" – uma maneira inovadora de tocar utilizando apenas o braço da guitarra.



Harmonia perfeccionista



Os fãs do guitarrista por certo recordam suas apresentações perfeccionistas em Belo Horizonte, no mesmo palco do Palácio das Artes, ou em outros festivais e teatros pelo Brasil, com seu repertório sempre surpreendente. Um repertório que pode incorporar, na mesma sequência de longos improvisos que hipnotizam a audiência, de versões das canções mais conhecidas dos Beatles ("Eleanor Rigby" é um de seus "standards" preferidos) a peças clássicas de compositores como Wolfgang Amadeus Mozart ou Ludwig van Beethoven, entre outras, além de seu acervo autoral registrado em 14 álbuns de carreira.







Para Toninho Horta e Juarez Moreira, dois dos grandes guitarristas e compositores mineiros que vão assistir ao show, Stanley Jordan é um mestre improvisador. "Ele conserva os padrões do Bebop tradicional, mas tem impressionante capacidade para o improviso. É sua maior qualidade, sem nenhuma dúvida", avalia Toninho Horta, que, de todos, ainda prefere o primeiro disco de Jordan, "Magic Touch", lançado em 1985.

"É um guitarrista atípico, que inventou um novo jeito de tocar o instrumento, que é o que melhor retrata o século XX e a nossa época, elétrica e urbana", elogia Juarez Moreira, que recorda a emoção que sentiu ao tocar guitarra para Stanley Jordan depois do primeiro show do norte-americano em Belo Horizonte, também no Palácio das Artes, no final dos anos 1980.

"Fui ao hotel e ele me convidou para tocar. Foi emocionante. Engraçado que ele achou muito diferente meu jeito de tocar guitarra. Na verdade, o jeito dele tocar é que é diferente de tudo o que conhecemos. É um grande artista", avalia Juarez. "Isso de criar o novo, criar uma terceira margem totalmente nova para a guitarra, é para poucos".









A questão ambiental



Lançado em 2008, "State of Nature" merece elogios incondicionais, concordam Toninho Horta e Juarez Moreira, que destacam no novo trabalho o lado humano e social do guitarrista, conhecido por abraçar as causas sociais, por trabalhar a musicoterapia e ser um de seus eméritos defensores e por sua militância pelas questões ambientais em seu país e durante suas turnês internacionais.

"Parte da razão pela qual fiz este álbum foi pelas revelações que descobri em minha viagem para tentar tornar-me uma pessoa melhor", afirma Stanley Jordan em breve entrevista, concedida por telefone num breve intervalo nas escalas de viagem, às vésperas do show em BH. "A outra razão pela qual gravei este CD é que venho descobrindo informações perturbadoras sobre questões ambientais como o aquecimento global e toda a degradação do nosso planeta".







O assunto preservação do meio ambiente e ecologia, ele concorda, leva inevitavelmente ao Brasil. Fã incondicional da música e dos músicos brasileiros, o guitarrista declara que o Brasil é seu segundo país quando o assunto é música. "Conheço o Brasil há muitos anos. Estive aqui várias vezes, fiz amizade com muitos músicos. Gosto do clima, da amizade, do modo como todos os brasileiros encaram a música. Gosto da música brasileira, que é sofisticada e com variações infinitas e sempre diferente, harmoniosa".

Sobre o maestro Tom Jobim, uma de suas referências, Jordan destaca seu gosto particular por duas canções: "Brigas Nunca Mais" e "Insensatez" - essa última, incluída no álbum "State of Nature". Para o músico, "há muito do samba no jazz e do jazz na Bossa Nova. Sempre gostei muito dessas misturas. Não pode haver nunca preconceito em música", explica.

Místico assumido, sem medo de confessar suas inclinações esotéricas e a contaminação que práticas e ensinamentos zen exercem em seu modo de compor e tocar, o artista costuma se inspirar em movimentos da arte marcial chinesa Tai Chi Chuan para elaborar os movimentos do corpo e da guitarra, durante suas acaloradas performances. De acordo com Stanley Jordan, "música e natureza estão e sempre estiveram intimamente ligadas, desde o mais antigo dos tempos da civilização".







Música e magia



O guitarrista tem deslumbrado plateias do mundo inteiro desde 1985, quando gravou o primeiro disco, "Magic Touch", com suas performances inovadoras, com o toque das duas mãos na guitarra - contribuição técnica ao manejo do instrumento que ele registrou na estreia e com o qual obteve instantâneo sucesso comercial e assegurou posição de destaque na indústria da música como um autêntico herói do seu instrumento. Em "State of Nature", sua estreia pelo selo baseado em Detroit, Mack Avenue Records, Jordan, ao lado do baixista Charnett Moffett e dos bateristas David Haynes e Kenwood Dennard, exibe sua técnica pioneira através de "standards" e composições originais.

Em "State of Nature", as guitarras de Stanley Jordan contam ainda com o baixista Charnett Moffett e os bateristas David Haynes e Kenwood Dennard. Os destaques incluem, além de “Insensatez” de Tom Jobim, uma prolongada abertura de "A Place in Space" e o solo de guitarra em "Andante from Mozart's Piano Concerto #21". O CD inclui outras recriações para os clássicos do jazz "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson – essa última com a doce vocalização da filha de Jordan, Julia. 










Depois de sua terra natal, os Estados Unidos, o Brasil é o país onde ele mais tocou na vida – confessa o guitarrista, perdendo a conta de quantos shows e turnês já fez por aqui. Considerado um dos melhores do mundo em atividade e fã incondicional de compositores e músicos brasileiros, na turnê ele vem acompanhado do baterista Ivan "Mamão" Conti, do lendário grupo dos anos 1970 Azymuth, e o mineiro Dudu Lima no comando do baixo acústico, do elétrico de quatro, cinco e seis cordas e do "fretless", um baixo sem os trastes no braço.

O entrosamento do guitarrista com os músicos brasileiros dá ao espetáculo uma musicalidade especial com um repertório de interpretações de clássicos da música do Brasil e especialmente da Bossa Nova, além dos clássicos do jazz, composições do próprio Jordan e algumas surpresas reservadas para a plateia do Palácio das Artes. O trio já realizou mais de 80 apresentações nos últimos anos pelo Brasil.











Cornucópia



Conhecido por sua técnica, habilidade e originalidade, Stanley Jordan impressiona à primeira audição com seus acordes surpreendentes e complexos do jazz, dedilhados com a mão esquerda, e os velozes solos jazzísticos no estilo Bebop com a direita. Aclamado como um dos guitarristas que fizeram importantes contribuições técnicas e musicais para o instrumento, Jordan construiu uma carreira de prestígio pontuada de fatos pitorescos – entre eles ser descoberto pelas grandes gravadoras quando era artista de rua em Nova York, anos depois de ter se formado em teoria musical e composição na sisuda Universidade de Princeton.

O público dos festivais internacionais de jazz o conhece desde o final da década de 1970, mas para o grande público Stanley Jordan surgiu em meados da década de 1980, com seu primeiro disco, "Magic Touch". Filho de um pai na época desempregado e de uma professora de línguas, o guitarrista que descobriu a música estudando no piano da família, na Pensilvânia, chegou a recusar um primeiro convite do famoso produtor Bruce Lundvall, então executivo do selo Elektra Music. Lundvall o procurou para uma audição e, impressionado, convidou o artista para gravar um primeiro disco. Jordan recusou por se achar despreparado.








Anos depois, quando ainda tocava nas ruas de Nova York, aceitou nova proposta de Lundvall e começou a trilhar o caminho do sucesso internacional. Um ano e meio depois do primeiro convite, Lundvall foi para a Blue Note Records e insistiu na proposta da gravação de um disco. Stanley Jordan se tornou, então, o primeiro artista da nova fase do lendário selo de jazz.

Com o disco de estreia, "Magic Touch", foi primeiro lugar no quadro de jazz da revista "Billboard" por 51 semanas, o que lhe rendeu duas indicações para o Grammy e o Disco de Ouro certificado nos EUA e Japão. O disco, que trazia uma versão personalíssima para "The Lady in My Life", de Michael Jackson, é considerado um padrão definitivo para o gênero que ficaria conhecido no mundo inteiro como jazz contemporâneo.

Outro álbum de destaque foi "Cornucopia", em 1990, que reúne standards do jazz e do blues gravados em estúdio, entre eles "Autumn Leaves", "Impressions", "Willow Weep for Me" e "What's Going On", todos com a interpretação personalíssima e vez ou outra radical de Stanley Jordan. Em seguida, o guitarrista se mudou para a gravadora Arista e, em 1994, lançou "Bolero" – que inclui uma surpreendente versão jazzística para o clássico de Ravel. Na entrevista, Stanley Jordan reconhece que tocar nas ruas foi a melhor escola, apesar de problemas ocasionais com a polícia, que o abordava para cobrar a licença oficial, que ele nunca teve, para as apresentações que chegavam a reunir pequenas multidões.









Piano e violão



Ele diz que não lembra, mas uma rápida pesquisa revela que sua primeira apresentação em palcos brasileiros foi no final dos anos 1980, numa turnê por várias capitais. Depois retornaria com um festejado show em Búzios, no Festival de Jazz & Blues, em 2001, quando se apresentou com sua filha Julia, então adolescente. Voltaria ao mesmo festival de Búzios em 2004 e, como tomou gosto pelo Brasil, passaria a incluir o país como roteiro obrigatório para as turnês internacionais.

Sempre experimentando novos acordes e arranjos com sua síntese inteligente e sensível de variados estilos de jazz, em "State of Nature", lançado em 2008, Stanley Jordan volta a demonstrar seu virtuosismo com as cordas da guitarra e revela uma incrível habilidade com o piano. Para o show no Palácio das Artes, a plateia aguarda ansiosa: as luzes se apagam e alguns comentam entre si sobre as canções do disco em que Stanley Jordan toca duas guitarras ao mesmo tempo, incorporar sons da natureza nas gravações e dá um show quando toca, simultaneamente, piano e violão. Alguns apostam que nesta noite ele também vai surpreender. 















Com repertório centrado em "State of Nature", Stanley Jordan começa o show sozinho no palco do Grande Teatro do Palácio das Artes. Sob iluminação discreta, que alterna cores quentes e projeções de linhas geométricas e abstratas em tons de azul, apresenta três canções do mais novo CD, com arranjos muito diferentes ao vivo. Em seguida, Mozart - Andante from Mozart Piano Concerto #21 - em dedilhado frenético que faz lembrar os transes dissonantes de Jimmi Hendrix, com direito a insólitas frases de "Noite Feliz" pontuadas ao longo da melodia. Para a quinta canção, ele chama ao palco Ivan 'Mamão' Conti (bateria) e Dudu Lima ( baixo acústico e elétrico).

São memoráveis as longas séries de improvisos em "Mind Games 2", com citações que arrancam aplausos de "The Girl from Ipanema". Mais ou menos 12 minutos de fantasia, com o virtuosismo da guitarra encontrando, nos minutos finais, os inconfundíveis acordes de "Mi Cosa", clássico jazzístico que outro guitarrista, Wes Montgomery, tornou célebre. Aplausos demorados e o temor de que o concerto terminasse. Mas o melhor estava por vir.




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Os aplausos na metade da sétima canção demonstram que o público demorou a reconhecer os acordes Bossa Nova de "Insensatez" ("Que você fez, coração mais descuidado..."), recriada pelo guitarrista em variações de acordes tão melancólicos e pausados que deixariam comovidos os próprios Tom Jobim e João Gilberto – referências confessas de Stanley Jordan, além de Milton Nascimento e outros heróis, sobre a música do Brasil. 



Clássicos do Bebop Jazz



Na sequência, Stanley Jordan dispara com três clássicos jazzísticos do estilo Bebop – "All Blues", de Miles Davis, "Song for My Father", de Horace Silver, e "Steppin' Out", de Joe Jackson, as duas últimas com a impecável e inacreditável performance de Stanley Jordan na guitarra e no piano, ao mesmo tempo. Comoção e aplausos. Muitos aplausos. Depois vem os acordes de "St. James Infirmary", com a guitarra de Stanley Jordan recriando os longos solos melancólicos do trompete de Louis Armstrong. O final se mistura com acordes de outro clássico do Jazz, "Summertime", com o guitarrista trazendo à memória da plateia os solos de Satchmo e até a lembrança da voz cristalina de Ella Fitzgerald. Técnica e virtuosismo do músico que revela as proximidades antes insuspeitadas das duas canções. Emocionante.
 





 
"A Place in Space", com duração de inacreditáveis 18 minutos, encerra o show, com o guitarrista a dedilhar durante uma longa sequência de aplausos um mix dos diversos estilos que aprendeu ao tocar na rua para atrair a atenção dos mais diferentes tipos de pessoas. Os aplausos demorados não se interrompem durante os improvisos que antecedem um bis antológico. 

Sozinho no palco, o guitarrista ultrapassa limites e recria "Over the Rainbow" (de "O Mágico de Oz"), terminando na invenção do contínuo em novos acordes para "'Round Midnight" e "Someday My Prince Will Come" (da versão Disney para "Cinderela"). Timbres de rock, riffs de Jimi Hendrix, os graves e agudos de Janis Joplin, acordes de Miles Davis, dim-dim-dim dom-dom-dom de João Gilberto? Tudo evoca e ressoa em harmonia na guitarra hipnótica de Stanley Jordan.

A plateia, meio que acordada de um transe feliz e passageiro, cai de novo em aplausos. Muitos aplausos. Como se não bastasse, quando a multidão lenta e meio sorridente de ouvintes contentes passa caminhando pelo saguão para a saída, lá estava ele: ele mesmo, que há pouco levava a todos a lugares insuspeitados estava ali e ficaria ali, horas pela noite adentro, sentado na mesinha diante da longa fila, posando com fãs para fotos e autografando discos de vinil, CDs e DVDs no foyer do Grande Teatro do Palácio das Artes. Uma noite fria de novembro de 2009 para guardar com uma dúzia de canções memoráveis. Sofisticada e imprevisível, a arte de Stanley Jordan.


por José Antônio Orlando.


Como citar:

ORLANDO, José Antônio. A noite de Stanley Jordan. In: Blog Semióticas, 15 de outubro de 2011. Disponível no link http://semioticas1.blogspot.com/2011/10/noite-de-stanley-jordan.html (acessado em .../.../...).






















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